Foi uma noite de insônia e divagações para a filha do cocheiro.
Logo que ela se deitou ao lado de Ambrosina, sentiu um estremecimento nervoso encrespar-lhe a dourada penugem do corpo. Encolheu-se toda, como uma rola acariciada.
A luz frouxa de uma lamparina de azeite derramava-se no quarto, deixando perceber confusamente os objetos.
Laura, apoiada sobre o cotovelo esquerdo, amparando a cabeça com a mão, tinha, no gracioso abandono íntimo do leito, um profundo ar de enlevo e de melancolia. O colo, meio descoberto, aparecia-lhe através das modestas rendas da camisa, em toda a deliciosa frescura da sua virgindade. Os cabelos caíam-lhe em torno do pescoço, fazendo-lhe destacar a palidez do rosto. A boca, semi-aberta, deixava passar um sorriso amargo e ansioso. Viam-se-lhe os dentes brancos, mais brancos na meia sombra que lhe banhava as feições, e os olhos negros, mais negros no luzir daquele anseio.
Ambrosina, a princípio sossegada, começava a agitar-se, e a dizer palavras destacadas e sons inarticulados. Era o delírio da febre.
Laura tomou-lhe nas mãos a cabeça e pousou-a em seu colo. A enferma abriu os olhos e encarou-a surpreendida, mas o seu olhar era doce como o beijo de amor.
Laura sorriu, assentou-se melhor na cama e puxou de todo Ambrosina para o regaço. Esta, mole de fraqueza, deixou-se-lhe cair sobre as pernas, cingiu-lhe com um dos braços a cintura. Tinha os olhos fechados, a respiração convulsa; a outra lhe acarinhava os cabelos e lhe afagava o corpo, como enfermeira amorosa.
E a noite absorvia no seu negro silêncio aquele mistério de ternura. Ouvia-se a voz sibiliante dos ventos, que esfuziavam por entre as ripas do telhado, e o marulhar monótono da costa, cujas ondas morriam ali perto, à pequena distância da casa.
Ambrosina, afinal, serenou e adormeceu tranqüila, abraçada estreitamente à doce companheira.
No dia seguinte, estavam muito amigas e muito unidas. Aquela, entretanto, continuava prostrada pela febre. Jorge, por conta própria, resolveu chamar o patrão, o Médico Misterioso, para ver a enferma.
Alfredo retirou-se muito cedo para as suas obrigações desfazendo-se em agradecimentos e protestos de estima; a velha Benedita pôs-se em ação, para tratar do almoço e dos arranjos da casa, e Laura encarregou-se de prestar à enferma todos os cuidados que a moléstia exigia.
Era de ver a solicitude, o amor, com que a carinhosa enfermeira trazia o caldo à sua bela valida. Laura punha nesses pequeninos serviços todo o segredo da sua meiguice. Que mimo nas palavras! Que graça no repreender a doente por fazer cara feia ao remédio!
Ambrosina pagava esses desvelos com beijos. Laura fazia-se então vermelha e uma ligeira vertigem lhe entrecerrava as pálpebras.
Pela volta das quatro da tarde, apareceu Gaspar e receitou, a despeito dos protestos da doente.
Ficou de voltar.
Ao sair, notaram-lhe um olhar estranho. Gaspar ia preocupado. No dia seguinte, depois da segunda visita à casa do seu cocheiro, chamou a este de parte e disse-lhe:
— Jorge! creio que tens bastante amor à tua filha.
— Está claro, patrão! por quê?
— Porque vais perdê-la, se a deixares na companhia de Ambrosina.
Jorge abriu os olhos e ficou pasmado.
O pobre homem não compreendera.
Entretanto, duas semanas depois que Ambrosina se achava hospedada pelo pai de Laura, Gabriel vagava pelas ruas, a passo frouxo; mãos cruzadas atrás, o chapéu derreado para a nuca, o olhar caído, e por toda a fisionomia uma grande expressão de tédio.
Ao primeiro golpe de vista, percebia-se logo que alguma agonia profunda lhe pungia o coração, que uma idéia fixa se lhe havia agarrado ao cérebro e lhe chupava os miolos, como caranguejos aos dos cadáveres de náufragos, que o mar vomita à praia.
O caranguejo que lhe chupava os miolos era a lembrança de Ambrosina. O desventurado não conseguia furtar se à tensão dolorosa, que a linda malvada lhe impunha ao espírito com a sua ausência. Tudo lhe trazia a idéia dela. Um perfume, um trecho de música, uma frase, um modo de olhar, um tom de rir; tudo era pretexto para mil recordações, mil desejos, mil ânsias de amor despedaçado.
E Gabriel admirava-se até de que houvesse homens que tivessem conseguido viver até ali, sem nunca experimentarem a deliciosa intimidade do amor de Ambrosina. Como lograriam esses desgraçados não morrer de tédio, ficando sempre na ignorância dos mistérios daquela carne, do gosto daqueles lábios, do encanto daquele colo e da atração do abismo daqueles olhos, negros e profundos como a noite?...
E a pensar nestas cousas, esquecia-se de tudo e desabava num desânimo sombrio, em cujo fundo de charco estava a idéia do suicídio.
Morrer! É tão doce cuidar em morrer, quando se tem um duro desgosto ferrado ao coração!... É tão grato ao espírito, sobrecarregado da mais bela dor, pensar num imperturbável descanso.... É tão leve a morte, quando a existência nos pesa como grilhetas... E por que não haveria ele de morrer? Acaso deixaria na terra alguém que vivesse da sua vida!... Teria ele mãe, porventura, que ficasse com o coração para sempre rasgado de meio a meio? ou pelo menos alguma tímida irmã, cuja inocência caísse ao desamparo defronte do cadáver do irmão? A quem, pois, prejudicaria com a sua morte?... A ninguém! Gaspar, por muito seu amigo que fosse, haveria de conformar-se com ela, e de resto já tinha o sentimento petrificado pelas dores velhas! Sim, o seu suicídio era lógico e necessário; era, daquele seu indigno desespero, a única saída que não ia dar vergonhosamente aos pés de Ambrosina!
Era preciso morrer!
E, caminhando pela rua, ia amadurecendo esta idéia, com que se propunha destornilhar a outra do seu pobre espírito cansado.
Sim! pensava ele; era chegar à estação das barcas de Niterói, tomar a primeira destas que aparecesse, fazer-se ao largo e, quando tivesse a certeza de não o poderem salvar — zás! um mergulho na baía! E pronto!
Sim, porque no fim de contas, a morte, nas suas circunstâncias, era inevitável! Ele só poderia continuar a viver em companhia de Ambrosina; ora, Ambrosina era simplesmente uma mulher indigna, uma mulher infame!
E ele, apesar de saber disso, amava-a cada vez mais... Logo, ou Ambrosina tinha que regenerar-se, o que seria muito difícil; ou ele tinha de morrer, o que era facílimo! Por conseguinte, não havia refletir — era aviar!
E Gabriel encaminhou-se para a ponte das barcas de Niterói.
Ia perfeitamente resolvido a morrer; mas, pelo caminho, à medida que se aproximava do seu triste destino, assistia-lhe um estranho interesse por tudo que o cercava. Ele, que naqueles últimos tempos não ligava importância a cousa alguma, sentia agora reviver no seu organismo, mais forte do que nunca, a sensação do mundo exterior. A gente que passava, homens, mulheres e crianças, todos lhe prendiam a atenção diretamente, como se de súbito em cada um deles descobrisse a seu respeito íntimas correlações na luta pela existência.
E quanto mais se avizinhava da morte, mais preso se sentia à vida, sem coragem todavia para arrostá-la de frente. E, cheio de inveja por todos aqueles destinos que pela última vez lhe passavam fugitivamente defronte dos olhos, comparava com eles a sua sorte e, sucumbindo por dentro à compaixão de si mesmo, julgava-se a mais desgraçada e desprezível das criaturas humanas.
Sim! Era preciso morrer!.
— Além disso, considerava o mísero, afirmei a Gaspar, sob palavra de honra, que partiria com ele para a Europa dentro de poucos dias; jurei igualmente que nunca mais me aproximaria de Ambrosina, e não tenho ânimo de ir, nem de ficar aqui sem ela!
E caminhava resolutamente para o ponto das barcas.
— Sim, sim, disse-lhe então dentro uma voz assustada e débil, que vinha do fundo do coração; tudo isso é verdade, mas tu bem podias dizer adeus àquela infeliz, antes de partires para sempre... Ela, coitada, está muito mal, e talvez se reanimasse um pouco só com saber que o teu último pensamento lhe foi consagrado... Seria uma obra de caridade!
— Nada disso! intervinha por sua vez a Razão, com uma voz terrível. Nada de imprudência! Se lá fores, será capaz muito de perdoar tudo e... Adeus, dignidade! Adeus vergonha!
— Juro-te que não! replicava o Coração, sempre com a sua vozinha hipócrita; prometo que não havemos de demorar ao lado d?Ela! Aquilo é chegar, fazer as despedidas, e pedir as suas ordens para o outro mundo!
— Sim! sim! bradava a Razão. Já te conheço as lábias, meu finório! Não é a mim que embaças! Está bem aviado quem se guiar por ti!
E o Coração protestou, jurou, suplicou, e afinal começou a soluçar.
A Razão reagiu ainda, apresentou seus melhores argumentos; mas o diabo do Coração, tanto fez, tanto chorou, tanto prometeu, que a tola da Razão teve de ceder, e Gabriel tomou o caminho da Praia do Russell.
E o rapaz, desde que se resolveu a ver pela última vez Ambrosina com pretexto de despedir-se dela, sentiu um grande alívio em todo o seu ser, e logo um suave contentamento a refrescar-lhe a alma; mas a Razão, que continuava de nariz torcido, aproveitou-se da distração dele e tirou sorrateiramente do seio um alfinete.
Gabriel não deu por isso e lá ia aos encontrões pela rua, procurando acompanhar a sua fantasia que, mal tomara o tímido aquela resolução, partira na frente, a galope, para junto de Ambrosina. E, donde estava, via-se ele já ao lado dela, sentindo-lhe o aroma e a doçura.
Imaginava então entre os dois um mudo encontro orvalhado de lágrimas. Ele afinal balbuciara o Adeus supremo, envolvendo-a num beijo de toda a alma, sombrio, imenso e silencioso como a própria morte que o esperava lá fora.
— Perdoa! exclamaria ela.
— Não! Eu te amo muito, para que te possa perdoar! Eu tudo sofreria, tudo resignado aceitaria de ti contanto que nunca foras senão minha!
— Perdoa! Perdoa!
— Não! Ouve! ouve, porque nunca mais nos veremos! Hei de antes de partir atravessar esse coração de pedra com um centelha da minha dor! hei de levar uma gota de fel ao íntimo do mármore da tua indiferença! hei de verter dentro de tua alma a minha lágrima mais sentida, mais amarga e mais ardente! E essa lágrima há de envenenar-te a alegria, há de rasgar-te as entranhas, porque vai armada com todas as garras do ciúme! No meio das tuas orgias, na febre das tuas noites de devassidão, há de essa lágrima cruel queimar-te os olhos e afogar-te o riso na garganta!
— Perdoa, Gabriel!
— Não! eu não sou Cristo, para te perdoar; nem tu és Madalena, para te arrependeres! Cristo perdoou sempre, porque nunca o traíram no seu amor! Amasse ele uma mulher como eu te amo, e, quando a tivesse junto ao peito, lhe cravasse ela o dente da perfídia, que ele a havia de esmagar com o pé, ou não seria homem! Tudo se perdoa, menos a traição do amor!
E Gabriel estugava cada vez mais o passo, enquanto seus doidos pensamentos prosseguiam na cena imaginária.
Ambrosina já não dava palavra, soluçava devorada de remorsos, ansiosa de perdão.
As lágrimas corriam-lhe quentes e apressadas dos olhos, como um desfiar de aljofar.
Gabriel gozava de imaginar aquela dor. Via-se altivo, e a ela sobranceira.
Depois, Ambrosina atirava-se-lhe aos pés, ofegante, pedindo-lhe por amor de Deus uma carícia. E o desgraçado, à vista daqueles olhos, daquela boca e daquele colo, reconstruía vertiginosamente toda a felicidade perdida, e rolava em delírio nos braços da perjura, exclamando entre beijos:
— Eu te amo — Eu te amo! Suma-se tudo que não seja nosso amor! Vivamos somente para nós! Esqueçamo-nos do resto do mundo, fechados um para o outro!
Mas Gabriel, ao chegar a esta conclusão do seu desvario, estremeceu e estacou em meio da rua, como se por dentro lhe picasse uma víbora.
Era a Razão, que continuava de alcatéia, e lhe ferrava na consciência a primeira alfinetada.
Ele passou a mão pelos olhos, corou, e disse entredentes:
— Não! Juro que serei forte! Juro que terei brio!
Havia chegado defronte da porta de Jorge.
Bateu na rótula.