As palavras do Médico Misterioso a respeito de Laura traziam ultimamente o pai desta em constante preocupação.
Por que seria que o Dr. Gaspar tanto receava da convivência de D. Ambrosina... matutava o bom homem. Está claro que ela não era nenhum favo de inocência, mas também não seria tão malvada, que só por gosto, lhe fosse agora perder a filha. Em todo o caso, convinha estar de alcatéia, porque lá dizia o outro: "Mais vale prevenido no mar, que desprevenido em terra!"
Ora, D. Ambrosina, considerava ainda o cocheiro; o defeito que tinha era ser um tanto doida; por mau coração não havia que lhe dizer, coitada! que ele sabia de atos de caridade praticados por ela. Lá o fato de achar-se unida ao Gabriel, isso nada punha, porque a moça afinal precisava do auxílio de algum homem... E por que razão se achava ela hospedada ao lado de Laura? Seria por cálculo ou por maldade?... Não decerto; era puramente à força de circunstâncias.
E Jorge concluía com esta frase:
— Aquela, mais dia menos dia, é vítima do demônio do doido!
Quando lhe constou a visita de Gabriel, o homem ficou mais tranqüilo, na esperança de vê-los brevemente juntos e longe da pequena. Resolveu deixar que as cousas Corressem por si. Que pressa havia agora em afastar a pobre de Cristo, se o seu moço já se havia entendido com ela, e em breve a levaria consigo? Quanto à burla da gravidez, ele nada sabia.
A visita do Melo Rosa efetuou-se no mesmo dia em que Ambrosina lhe escrevera. Haviam os dois muito antes combinado o plano de larapiar de Gabriel uma boa quantia, fugindo ambos em seguida. O amante traído pagaria à sua custa os meios da traição.
Mas o cocheiro, que andava de orelha em pé, bispou de qualquer modo os projetos de Ambrosina e, revoltado na sua surpresa, tratou de destruí-los.
A sua primeira idéia foi de contar tudo a Gaspar, hesitou, porém. — Quem sabia lá se aquela revelação não iria dar motivo a qualquer fato lastimável?... Contudo, não lhe podia sofrer a paciência que o velhaco do Melo abusasse, assim sem mais nem menos, da boa-fé do pobre Gabriel, a quem Jorge deveras apreciava.
— Nada! concluiu ele. Quero que um raio me parta, se eu não desmanchar esta pouca vergonha!
E foi à procura do patrão, com o desassombro de quem vai resolvido a cumprir o seu dever.
Gaspar não estava em casa, e Jorge não queria entender-se diretamente com Gabriel; este, porém, com tal ansiedade lhe falou de Ambrosina, tão impaciente se mostrou pelas notícias delas, que o pobre do homem, depois de coçar a cabeça, torcer o chapéu entre as mãos e limpar o suor da testa, exclamou:
— Com todos os diabos! A verdade diz-se!
Gabriel assustou-se.
— É que não posso ver ninguém iludido! despejou o cocheiro. Sei que vossemecê projeta uma viagem com D. Ambrosina, e sei também que o Melo Rosa anda a desencabeçar a moça para não ir!
— O Melo Rosa?... Mas que diabo pretende esse tipo?
— Ora, o que há de ser? Quer que a Sra. D. Ambrosina, em vez de acompanhar a vossemecê, fique na companhia dele! Aí está!
— E Ambrosina o que diz?...
— Isso lá é que não sei! Tola será ela, se largar um moço formado, bem parecido, bom e rico, como vossemecê, por um troca-tintas daquela força!
— Tu não sabes o que são as mulheres, Jorge!
— O que lhe afianço é que faz tudo, o tratante, para seduzi-la. Tenha a bondade de ler esta carta...
Gabriel leu no papel que lhe passou o cocheiro:
"D. Ambrosina.
Apesar de me haver a senhora proibido falar-lhe sobre qualquer assunto; apesar de ter confessado que me aborrece, eu não desisto das minhas esperanças, e venho ainda uma vez pedir-lhe, de joelhos, que não acompanhe o G*** e siga comigo para onde melhor lhe parecer em toda e qualquer parte do mundo. Os recursos pecuniários para a viagem não faltarão, porque, como saberá, acabo de ser largamente premiado pela loteria. E estará à sua disposição, desde que a senhora assim o decrete com uma simples palavra.
Espero a sua resposta até depois de amanhã. — Melo Rosa".
— Esse "depois de amanhã" é hoje, disse Jorge, porque esta carta chegou anteontem.
Gabriel ficou pensativo, mas no íntimo sentiu-se feliz com aquelas palavras; provavam-lhe elas que a requestada repelia o Melo.
Entretanto, tudo era arranjado pela própria Ambrosina; foi ela quem imaginou a carta, quem a escreveu e quem a pôs ao alcance do cocheiro, calculando que este desconfiado como andava, a iria mostrar logo ao patrão, e o patrão ao enteado.
Gabriel resolveu ir dali mesmo à Praia do Russell.
— Olhe, Doutor, disse-lhe Jorge; pode vossemecê contar comigo para o que der e vier! Se for preciso que o velhaco do tal Melo não importune, é só mo dizer porque eu me encarrego de tudo!...
— Como assim?
— Descanse, que lhe não tocarei num cabelo! Apenas o que faço é afastá-lo durante o tempo necessário para tratar vossemecê de seus interesses. Depois... ele que esbraveje à vontade! Siga viagem o Doutor com a sua Do.... e o resto fica por minha conta!
Gabriel aprovou a idéia, e conversou demoradamente sobre ela com o cocheiro. Em seguida, foi ter com Ambrosina.
— Estimo que chegasse! exclamou a bela rapariga, a envolver-lhe o corpo com os braços. Não imaginas o que vai por cá! Assenta-te, descansa um pouco, porque tenho cousas muito sérias a comunicar-te...
Gabriel assentou-se, em silêncio. Ambrosina chegou uma cadeira para junto da dele, e, com uma voz misteriosa e cheia de movimentos reservados, disse-lhe:
— Sabes que o Melo, desde aquele dia de loucuras lá em casa, persuadiu-se de que o amo?...
O rapaz meneou afirmativamente a cabeça.
— Pois bem; meteu-se-lhe em idéia que eu devia separar-me de ti para viver com ele!... Aquela peste não se enxerga! Ora, tenho pena de haver perdido uma carta que me remeteu o traste! Guardava-a justamente para te mostrar... Não sei onde a pus! Estou doida de procurá-la! Entre outras banalidades, diz o tolo haver tirado um prêmio na loteria. Querer seduzir-me com dinheiro!... A mim, que tu bem sabes quanto sou desinteressada! a mim, que te amaria da mesma forma, se fosses o mais pobre dos homens! Bem! Eu não dei um passo; nada quis resolver, sem falar contigo... Tu és o senhor de meus atos, e como tal, fica a teu arbítrio fazer o que entenderes!
— Não se fará cousa alguma. Já está tudo determinado. Precisamos é sair hoje mesmo daqui. Estamos com o aluguel de nossa casa pago até o fim do mês. Os trastes foram já vendidos, mas só serão arrecadados pelo dono depois da nossa partida.
— É verdade! lembrou a traiçoeira; na falta de outra casa, podemos ir para a de mamãe. Ela veio ontem visitar-me, e pediu-me que fosse para lá.
— Não, não convém; pois se temos casa própria, para que ir para a dos outros? Além disso, precisamos tratar em plena liberdade de nossa viagem. O Gaspar vai hoje para Nova Friburgo e demora-se alguns dias; amanhã já aí está o vapor, e nós partiremos.
— E se o Melo lembrar-se de perseguir-me lá em casa? Tu não sabes quem é aquele sujeito!
— Não te incomodes com o Melo! A respeito (dele estão tomadas todas as medidas.
— Lembra-me uma cousa nesse caso. Levo a Laura para me fazer companhia até o momento do embarque.
— Bem; mas o que preciso saber é se tu és capaz de escreveres duas palavras ao Melo, convidando-o para ir amanhã lá à casa. Não te assustes, ninguém lhe fará mal!
— Para que é? indagou Ambrosina, rindo, a prever alguma boa partida.
— Já agora te digo tudo com franqueza: O Melo se for amanhã, será delicadamente agarrado e conduzido a um lugar confortável, onde não lhe faltará absolutamente nada, mas do qual só será posto em liberdade depois que tenhamos partido...
— Bravo! Magnífico! Ah! como o bobo não ficará furioso!
— Mas, escreve-lhe o bilhetinho, não?
— Meu Deus! Quantos quiseres! Tu não pedes, mandas! Podemos escrevê-lo imediatamente.
E, toda expedita e desembaraçada, foi buscar pena e papel.
— Estou às tuas ordens. Podes ditar... disse a finória, assentada já defronte do tinteiro.
— "Melo Rosa, ditou Gabriel. Está tudo arranjado. Amanhã às quatro horas da tarde, me encontrarás em casa, sozinha e pronta para fugir contigo. Fico à tua espera. Não faltes! — Ambrosina".
— Pronto! disse esta. Afianço-te que ele irá.
— Bem! agora dá-me esse bilhete.
— Aí o tens.
E Gabriel guardou-o no bolso.
— A que horas queres que te venha buscar? perguntou ele.
— Logo mais, a qualquer hora... Vem às quatro.
— Pois bem, até às quatro, disse o rapaz, beijando-a na testa.
E meteu-se no carro.
Ambrosina, logo que ele se retirou, correu ao quarto de Laura.
— Prepara-te para ires hoje mesmo comigo lá para casa. Teu pai consente. Mas agora desejo que me ajudes a vestir a toda pressa...
— Onde vais?
— Tenho muito que fazer. Só mais tarde saberás todos os passos que dou por tua causa...
Um pequeno, filho da vizinha, foi chamar um carro, e Ambrosina apareceu pronta na sala.
Rua da Misericórdia..., disse ela em voz baixa ao cocheiro.
O carro seguiu, e vinte minutos depois parava defronte de um grande sobrado antigo, cheio de janelas quadradas.
Era uma casa de alugar cômodos.
— Espere por mim, soprou a moça ao cocheiro, e subiu a longa escada do sobradão.
Atravessou, sem fazer caso, o primeiro e o segundo andar; chegou cansada ao último.
— Qual destas portas será!... pensou ela, hesitando em bater a qualquer das quatro que tinha defronte de si.
Nisto, abriu-se uma delas, e Melo Rosa, vestido de casimira clara, apareceu com um sorriso.
— Ah! pensei que já não viesses! É quase uma hora!
— Não me fales, homem! Uma visita de Gabriel.
— Sim, hem! Mas, vai entrando, filhinha. Não podemos perder tempo: temos muito que falar!
— Uf! fez Ambrosina, atirando-se sobre uma cadeira. Arre! que esta casa mata uma criatura! Estou a botar os bofes pela boca! Aqui não me pilharias duas vezes!
— Sim! Mas toda cautela é pouca... Nós temos de tratar de negócios, que nos podem meter a ambos na cadeia!...
— Deixa-me descansar um pouco.
— Toma um grogue...
— Dá-me qualquer cousa. Uf!
Melo Rosa serviu-lhe o grogue e, depois de acender um charuto, foi colocar-se ao lado dela.
— Ora, vamos lá a saber em que pé se acham os nossos interesses!...
— Está tudo pronto. Logo mais receberás um bilhete meu, que te marco o nosso encontro definitivo lá em casa, amanhã às quatro horas da tarde...
— Em Laranjeiras?
— Sim.
— E daí?
— Daí é que se torna indispensável que não deixes de ir!
Ambrosina chamava a si a paternidade do bilhete ditado por Gabriel.
— Mas, continuou ela; para que Gabriel não nos embargue a fuga, é mister que, antes de me procurares, já tenhas providenciado sobre e1e...
— Como assim?... perguntou Melo Rosa, seguindo com todo o interesse as palavras da rapariga.
— Diz-me uma cousa, Melo! estás seriamente resolvido a fugir amanhã comigo, ocupando tu o lugar de Gabriel?!...
— Se estou resolvido? É boa! Achas então que eu chegaria a este ponto e recuaria agora defronte de qualquer dificuldade?... Nunca me arrependo do que faço; disse que ia contigo, e irei! Afinal para isso é preciso cometer um crime? Bem! eu cometerei! O amor fez de mim um ladrão? Seja! Eu roubarei os vinte contos de réis de Gabriel para poder acompanhar-te! Estou resolvido a tudo!
— Ah! exclamou Ambrosina; acredito agora que me ames! Só nestas situações melindrosas, em que jogamos a vida e a honra, é que se pode reconhecer amor verdadeiro; esse que não aceita barreiras, nem conveniências de nenhuma ordem! Eu serei a tua cúmplice, e nunca me arrependerei disso. "Tudo que é inspirado pelo amor, disse George Sand, é sempre belo e sublime!" E foi só o amor que nos inspirou!
— E perguntas ainda se estou resolvido a fugir contigo!...
— Pois bem! assentou Ambrosina, segurando com veemência as mãos de Melo Rosa; para podermos fugir, é necessário que Gabriel amanhã as quatro horas da tarde esteja preso sem lugar seguro donde não possa sair antes de nossa partida... E esse o único meio que temos para não nos ser embargada a viagem!
Melo Rosa concentrou-se.
— E onde será ele encontrado por essa hora? perguntou afinal, depois de uma pausa.
— Onde eu quiser! respondeu friamente Ambrosina.
O que preciso saber ao certo é se te podes encarregar, com segurança, de dar as providências necessárias para que ele seja preso.
— Posso... disse Meio, depois de uma nova pausa.
— Mas, repara bem para o que prometes... observou-lhe a embusteira com um olhar sério. Se não conseguires retê-lo, não poderemos fugir, e tu serás preso como ladrão! Vê lá!
E fez por sua vez uma pausa, para estudar na fisionomia do rapaz a impressão causada por suas palavras.
— Gabriel, prosseguiu ela, conta partir amanhã, comigo pelo transporte da linha francesa. Eu me encarregarei das malas, e ele ganhará a rua logo depois do almoço. Hoje à noite já o dinheiro estará em meu poder. Tens por conseguinte de arranjar as cousas de modo que o bobo às quatro da tarde já esteja preso em lugar seguro, e nós perfeitamente senhores do campo, sem risco de que alguém nos possa tolher o vôo. Passaportes, licenças, bilhetes, tudo amanhã se achará em minhas mãos. Gabriel é muito pouco conhecido, tu facilmente passarás por ele... Se te falta, porém a coragem para tudo isto; se és homem medroso, um homem de meia resolução, melhor será que desde já desistas dos teus projetos. Sem uma boa dose de energia, nada se fará.
— Parece que zombas de mim, Ambrosina! Algum dia já me viste hesitar diante de qualquer embaraço? Juro-te por minha honra que Gabriel, amanhã às quatro horas da tarde, estará incomunicável!
E tu, por essa mesma ocasião, à minha procura lá em casa, não é verdade?
— Sim! Podes ter certeza. Mas ainda preciso do teu auxílio...
— Para quê?
— É preciso que deixes uma carta dirigida ao Gabriel, e que a faças chegar diretamente às mãos deste, amanhã pela volta das duas da tarde.
— Pois não, respondeu Ambrosina, sem conter um sorriso, que lhe provocava a consciência do fato. E assentou-se a uma mesa para escrever.
— Vamos lá! disse ela.
— "Gabriel" — ditou Melo Rosa.
— Nunca o trato, assim, observou Ambrosina; e escreveu, repetindo em voz alta:
— "Meu amor".
— Bem! concordou o Melo. Escreve agora:
"Hoje, às duas horas da tarde, é necessário que estejas presente à penhora que vai sofrer o nosso Jorge. Gaspar acha-se longe e não lhe pode valer. Fui tão protegida e obsequiada por aquela boa gente, que não tenho ânimo de ficar silenciosa em semelhante ocasião. Vai, pois, e socorre-os".
— Agora, assina.
— Espera, disse a rapariga. Preciso acrescentar alguma cousa por minha conta. E escreveu mais:
"Laura não assistirá à constrangedora ação da justiça, porque estará em minha companhia. É urgente que vás; precisamos, como sabes, dos serviços de Jorge para a nossa viagem...
"Escrevo-te, pela impaciência em que me vejo de comunicar-te esta desgraça. Agora mesmo foi que me chegou aos ouvidos tal notícia. Estimarei muito que esta carta seja completamente inútil, e que tu a estas horas tenhas restituído já a pobre família do cocheiro à sua primitiva tranqüilidade.
"Ao menos, em nossa viagem, levaremos ainda na alma o gosto de uma boa ação. Creio que melhor não nos poderíamos despedir da pátria.
?Tua - Ambrosina."
— Agora, sim; disse ela, metendo a carta no envelope, depois de ler em voz alta o que escreveu. Pronto!
E subscritou-o com o nome de Gabriel.
Feito isto, a pérfida levantou-se declarando que não tinha tempo a perder. Havia muito ainda em que cuidar!
Melo Rosa queixava-se de que ela fosse assim, sem pagar ao amor os devidos tributos.
— Teremos depois muito tempo para isso, respondeu a visita já na porta do quarto. Coragem e energia, que será bem recompensado!
— Então, nem um beijo, Ambrosina?...
— Nada! Faze por merecê-lo... Adeus.
E, enquanto descia as longas escadas do sobradão, ia ela tecendo consigo as seguintes reflexões:
— Muito bem! Se os dois cumprirem com o que prometeram, amanhã estou eu completamente livre deles e senhora dos vinte contos de réis que me farão muito boa companhia! O Melo prenderá Gabriel, e Gabriel prenderá o Melo! E depois disso, ainda não estarão talvez bem convencidos de que são ambos uns grandíssimos tolos! Ah, homens! homens!