A manhã tépida, rosada e ressoante — porque os sinos badalavam festivamente em todos os campanários iluminados pelo sol magnífico dum sábado de verão — tinha para Anselmo um encanto novo. Seus vivíssimos olhos pardos, fulgurantes como os dos tigres, filtravam, através das lentes do pince-nez, a alegria, toda espiritual, que lhe ia na alma. Errando pelo céu muito azul, repousando na copa frondosa das árvores do parque onde cantavam, à compita, cigarras e passarinhos, deslizando pela verdura macia dos tabuleiros, boiando nas águas quietas, lisas, espelhentas dos lagos, raro em raro frisadas pelas palmouras dum cisne, que ia airosamente da margem à ilha, tão sereno como se vogasse ao som da correnteza, não viam seus olhos senão a casa para onde o levavam ansiosamente os passos sôfregos, do outro lado do parque, perto dos Bombeiros.
Que lhe importava o esplendor da manhã se outro maior lhe estava reservado além daquelas grades, num retiro maravilhoso de Arte, povoado de mármores divinos, como um templo?
Ali, sim! Dilataria a alma sequiosa e seus olhos teriam a desejada visão duma oficina sagrada. O soalho, de caprichoso e miúdo mosaico de madeira, encerado, luzidio, devia ser forrado por um largo tapete de altas felpas moles, semeado de flores, por entre as quais ninfas, graciosamente nuas, andassem fugindo aos egypans, não porque os temessem, senão para que, demorando a posse, mais os desejos neles inflamassem.
Nas paredes preciosos e raros gobelinos, panos da Ásia, de seda e ouro, com deuses truculentos e aves abrindo caudas imensas resplandecentes, oculadas de ouro. E telas de artistas célebres sóbrias; bronzes e mármores, panóplias de armas autênticas, uma severa biblioteca de madeira negra sabiamente abastecida, a mesa, vasta e pesada, manuelina; cadeiras altas como faldistórios e, acima da mesa, suspenso do teto por uma grossa corrente de velhíssima prata, a lâmpada serena das meditações.
Assim imaginava Anselmo a casa de Ruy Vaz, à qual se dirigia pela primeira vez.
Conhecera o romancista na rua do Ouvidor, dias antes, e ia vê-lo na intimidade do gabinete, nas suas vestes maneiras de trabalho.
Ia penetrar esse ádito em que habitava o escritor que ele seguia de longe, enamoradamente, quando o via passar na multidão com grandes olhos femininos, de longas, sedosas e curvas pestanas, sempre enevoados de sonhos, cofiando o bigode negro, num andar rápido como se sempre fosse à pressa anotar uma idéias, registrar uma observação, rematar uma página, esboçar um romance, consultar uma nota. E tinha revoltas violentas vendo a indiferença da multidão que nem sequer abria alas ao autor de tantas e tão soberbas páginas humanas.
Seguia e, se fosse a uma apetitosa aventura de amor, discreta e arriscada, sorver extasiadamente o primeiro beijo criminoso, enlaçar, com ânsia, o corpo branco e fragrante, molemente lânguido, da mulher amada, não levaria o coração tão sobressaltado. Quando passou o portão deteve-se um momento ao sol, hesitante. "Mas àquela hora o romancista devia estar almoçando..."
Uma corneta soou gravemente, em notas prolongadas e o dobre de um sino passou rolando nos ares lúcidos. Meio-dia!
Atravessou a rua e, de olhos altos, consultando as placas, parou diante de um largo portão que, abrindo sobre um pátio ladrilhado, dava ingresso à casa, de dois altíssimos andares.
Um homem barbado, em mangas de camisa e descalço, varria preguiçosamente a entrada, com a cabeça derreada, um olho fechado para evitar a fumaça do cigarro que lhe rolava, úmido, nos beiços. Anselmo abordou-o:
— Não mora aqui o senhor Ruy Vaz? O homem cuspiu para um lado a ponta do cigarro e, levantando a cabeça hirsuta e ruça de poeira, encarou o estudante com indiferença:
— Quer falar ao senhor Ruy Vaz?
— Sim.
— É por aqui, a terceira porta. E, enristando a vassoura, indicou uma passagem estreita ao lado da escada que levava aos pavimentos superiores. Com a direção indicada, Anselmo dirigiu-se a um corredor cimentado onde amareleciam pontas de cigarros, ao longo do qual corria uma banqueta de tinhorões que o calor escaldante da hora amolecia. Seguindo, metia os olhos indiscretos por todas as janelas, surpreendendo interiores modestos: camas desfeitas, mesas abarrotadas de livros, malas aos cantos. Em um deles um estudante, em camisa, com as pernas nuas, curvado diante de um lavatório de ferro, fazia o laço da gravata ao espelho, enquanto outro, moreno, de óculos, ia e vinha alarmando o silêncio com um vozeirão tormentoso à medida que escovava, com fúria, o casaco que sustentava nas mãos suspenso pela gola:
A vindima eis terminada É beber, toca a beber!
Mentalmente Anselmo concluiu a copla da opereta:
Boa pinga preparada Vai provada agora ser.
Justamente chegava diante da janela que arejava e iluminava o retiro espiritual do romancista. Deteve-se e o sangue, violentamente sacudido pelo choque duma grande surpresa, estuou-lhe no coração.
Ó sonho! Ruy Vaz ali estava, não como um deus no santuário venerável, mas homem, simples homem, modesto e pobre, entre móveis reles, de calças de brim, camisa de cetineta aberta no peito, curvado sobre a bacia do seu lavatório de vinhático escovando os dentes com fúria.
Ao centro da sala a mesa acumulada de livros e de papéis, duas estantes de ferro, a cama ao fundo e as paredes nuas, tristemente nuas como as da cela de um monge.
O estudante, passada a primeira impressão, sentiu-se mais à vontade. Aquela singeleza ascética tornava o homem mais acessível, humanizava o deus e, repentinamente, como nesse relâmpago cerebral dos moribundos que revêem a vida inteira no transe extremo da agonia, Anselmo lembrou-se dos grandes escritores: Camões, seguindo lentamente as ruas de Lisboa na fria, nevada tristeza das manhãs de inverno, estendendo a mão gloriosa e forte da pena e da espada à caridade; Cervantes, encolhido num cárcere, com um cantil e um pão; Shakespeare, sofreando os cavalos das seges à porta dos teatros e, mais próximo, o dulcíssimo Lamartine acabrunhado e esquecido; Balzac decompondo o cérebro para abrandar os credores que o perseguiam implacavelmente; Murger acabando na triste sala dum hospital e.
— Oh!
— Bom-dia!
— Entra. Vendo-o, Ruy Vaz precipitou-se para a porta arrastando chinelas e convidou-o descerimoniosamente: Entra... Então? Ofereceu-lhe uma cadeira. Anselmo, porém, repousando o chapéu sobre a mesa, ia sentar-se em outra, mas o romancista opôs-se:
— Essa, não! Joga muito, é o meu navio. E a cadeira das sensações de aventura e um edificante exemplo dos funestos resultados do vício. Serve para dar-me a ilusão das grandes viagens pelos mares fortes e, ao mesmo tempo, previne-me contra as bancas. Joga tanto que até perdeu os fundos. Que há de novo? Está um dia magnífico para um passeio ao campo. Atulhou de fumo um cachimbo, repoltreou-se na sua cadeira de trabalho, esticou as pernas, cruzou os pés e ficou-se baforando.
Anselmo achava-o íntimo demais. A sua mobília não era das mais preciosas, isso não era, mas o talento dava-lhe direito a uma restiazinha de orgulho; era, entretanto, de tão lhana franqueza, de tão simples camaradagem... Ainda orgulho, pensou o estudante. O romancista, notando-lhe a timidez e o vexame, queria pô-lo à vontade. Magnânimo, isso sim; magnânimo como um leão.
— Vim interromper o seu trabalho, disse Anselmo tomando da mesa uma espátula de osso.
— Não, por hoje tenho a minha conta. Ia agora justamente fazer o meu pequeno passeio à chácara. Quer vir?
Pois não. Saíram seguindo para o fundo da casa. O que o romancista chamara pomposamente, imaginosamente "chácara" era um terreno bravio, que fora, em tempos mais prósperos, jardim cheiroso e de trato. Um caramanchel, sobre o qual alastrava, viçosa, a verde folhagem de uma passionaria, fazia uma arcada rústica dando passagem para esse canto isolado e mudo de meditação e entulho. Ao centro, sitiado pelo mato daninho, velho tanque escalavrado e seco, com um outeirinho ao meio de onde subiam, largas e duras, as folhas de ferro de uma planta que, outrora, esguichara a água sussurrante por um bico insinuado entre as hastes derreadas e enferrujadas. Um banco forrado de conchas, com assento de mosaico, escaldava ao sol, junto ao muro; outro fronteiro, resguardado pela ramada frondosa dum tamarindo, com muita erva em torno e, derrubado, meio oculto pelas ervas, um hércules de louça, fendido e enegrecido, com a pele do leão sobre os ombros, um coto da massa ao punho, em atitude contemplativa, jazia em esquecimento triste.
Os olhos alcançavam os fundos das casas vizinhas: janelas abertas à luz, chaminés fumegando, mulheres debruçadas falando para os quintais; e, de instante a instante, cortava fundamente o silêncio o grito de uma araponga, metálico como a pancada sonora e ressoante do malho na bigorna. Sentaram-se os dois e Anselmo pôs-se a falar saudosamente da terra amada e longínqua, berço de ambos, província farta que é um celeiro e um Parnaso onde, com a mesma exuberância, pululam o arroz e o gênio; terra de algodão e de odes donde; com ingrata indiferença, emigram os fardos para os teares da América e os vates para a rua do Ouvidor; terra das líricas, terra das palmas verdes, terra dos sabiás canoros.
O romancista ouvia a facúndia do patrício, fumando com a impassibilidade de um turíbulo, os olhos altos como se seguisse um sonho. O silêncio de êxtase em que ficou foi interpretado pelo estudante como uma prostração de saudade.
Ele fora despertar na alma do patrício a nostalgia que o tempo consumidor havia esmaecido, lembrando-lhe a terra nativa onde lhe haviam corrido os dias da infância, onde haviam rolado as suas primeiras lágrimas. Céus que seus olhos lânguidos tanto namoraram nas doces manhãs cheirosas quando, das margens remotas dos grandes rios vinham, em abaladas, brancas, sob o azul macio, as garças peregrinas; campos de moitas verdes onde, nas arroxeadas tardes melancólicas, ao som abemolado das flautas pastoris, o gado bravio, descendo das malhadas, em numeroso armento, junto, entrechocando os chifres aguçados, mugia magoadamente quando, por trás dos serros frondosos, lenta e alva, a lua subia espalhando pela terra morna o seu diáfano e pálido esplendor; frescas ribeiras, sonorosas onde o mururu expande o seu aroma, à noite; serras e alcantis agrestes, sítios do alto sertão, cabanas hospitaleiras das estradas, noites de idílio, noites de festa... Ah! Tabaroas morenas de olhos negros, colos que cheiram como baunilhais, bocas que recendem mais que bogaris... Ah! Minha terra! Cantilenas de amor junto à fogueira, balsas vogando rio abaixo, ao sabor da corrente... Ó tempos nunca esquecidos! Ah! Minha terra!
Dois pombos passaram no ar batendo as asas.
— Em que pensa? — perguntou Anselmo.
— Na minha terra. Enfim... que hei de fazer se o coração entende que, apesar de tudo, hei de ter saudades dela.
— Apesar de tudo... Tem então alguma queixa?
— Se tenho alguma queixa?! Da terra, não: dos homens, muitas. Depôs o cachimbo e, miudamente, em narração sentida, recapitulou a sua história de sofrimento e heroísmo. Primeiro no comércio, vida acabrunhadora e rude, toda material. De manhã, à hora dormente d'alva, quando ainda, com a luz dourada que nasce, brilha a pálida estrela, de pé, os olhos mal abertos, lá ia varrer os cantos da casa, espanar o balcão, os móveis e arrumar à porta as amostras. Depois todo um longo dia a servir, entre o tédio dos fregueses e a grosseria dos patrões, ganhando apenas o alimento escasso que parecia ser dado como esmola. À noite, num quarto abafado sobre uma enxerga, com uma candeia lúgubre, enquanto os companheiros, extenuados, roncavam trovejantemente abalando o tabique, entregava-se à furtiva leitura. Lia, lia sem ouvir os sinos da Sé que, no silêncio adormecido, gravemente anunciavam as horas. Lia, mas com que receio, estremecendo ao menor ruído, preparando-se para soprar a candeia a fim de que o não apanhassem em flagrante de tão nefando crime. E os galos cantavam, rompia a manhã. Cerravam-se-lhe, então, as pálpebras. Mas um dos companheiros, que dormira balordamente a noite toda, ia arrancá-lo ao leito impelindo-o para a vassoura com o pulso acostumado às arrobas dos fardos.
— Eh! Molenga! Quem sabe se temos aqui um filho de morgado!
Só aos domingos dava um pulo à casa e, com o rosto no colo maternal, soluçava, sentindo uns dedos brandos e carinhosos andarem-lhe pelos cabelos e, de vez em quando, um beijo na fronte. Mas quando os lábios fugiam, no ponto em que soara o beijo, lágrimas ficavam.
Mas quis Deus que o livrassem do tormento — lá foi aos estudos e, à medida que no Liceu escutava a palavra lenta de Sotero, o mestre amigo que sabia de cor Horácio, Ovídio e Virgílio, no atelier de um artista passava as horas de folga familiarizando-se com o desenho: estirando as primeiras linhas, contornando imagens, debuxando academias, entre esboços de telas, estudos, manchas, até que, um dia o mestre, dando-lhe tintas, uma tela nova e liberdade, escancarou a porta larga do atelier que abria para um terreno amplo, mostrou-lhe a Natureza, a esplêndida e viva Natureza na sua agitação alegre, num esplendor de cores, numa harmonia de sons e disse-lhe: trabalha! Foi nesse dia de deslumbramento que ele sentiu no coração o surto artístico. Era a vida. Trabalha!
E, maravilhado, dilatando os olhos e lançando-os livremente pelas aveludadas relvas, pelas frondosas copas do arvoredo, pelas águas claras que fugiam e pelo céu alto, magnífico, de um azul forte, sem mancha de nuvem, tomou dos pincéis e, febrilmente, com enlevo, foi transportando a Natureza, tal qual a via ao ar livre, sem sentir o ardor cáustico do sol que lhe dourava a cabeça ardente. De quando em quando ouvia a voz animadora e simpática do velho mestre: "Trabalha!"
Ele não precisava que lhe dissessem — era com ânsia que ali estava, possuído, num delírio, como se receasse que a tarde viesse rápida e apagasse aquelas cores admiráveis que eram as galas da terra e as maravilhas do espaço. Ainda uma vez, porém, a sorte foi-lhe ingrata e adversa. Uma manhã, desolada manhã!
Os sinos dobraram de espaço a espaço, lúgubres, e, rápida, correu a notícia da morte do pintor.
Tinha em tão alta consideração o mestre que não se contentou com os ofícios fúnebres que celebraram em duas ou três igrejas, com órgão, mas, cultualmente, porque lhe faltava quem, com resignação, se prestasse a ser vitimado com um golpe de faca, à maneira gaulesa, sobre a laje branca e fria do túmulo do artista, tomou dum metro de tela e, rebuscando na história do mundo um episódio que lhe fornecesse farta mortalha, achou a revolução francesa que, prodigamente, lhe cedeu a hóstia desejada.
Pôs-se então a pintar com abundância de vermelhão da China. Escolheu uma rua da velha Paris, apertada e sombria. As casas, altas, de quatro e cinco andares, desaparecem sob o acúmulo de mortos, porque há cadáveres até ao alto das goteiras. Aqui, os pés de um patriota; ali, a cabeça de uma criança; além o ventre estripado de uma mulher; e, saindo da hecatombe, hirto como um fueiro, o braço de uma das vítimas ameaçando a tirania. O fundo do quadro oblativo, de perspectiva trágica, é um coágulo de sangue, expressão, em rubro, do anunciado jour de gloire.
O quadro tem gênio, o que o mata é o zarcão hemorrágico. É um necrotério. O autor tinha vinte anos e, nessa idade, quem faz questão de mais ou de menos mortos? Ele queria o grandioso e atirou à tela toda a população da França espatifada, a população da França e gente das colônias, porque há lá um pé, certamente da Martinica, muito em destaque no sarapatel heróico.
Exposto o quadro foi tão grande o espanto que a cidade ficou deserta como um cemitério e os mortos foram transferidos para o gabinete do artista, onde esperam o juízo final.
Por esse tempo andavam-lhe no cérebro umas idéias novas e um impulso novo levava-o a outros exercícios mais intelectuais que o do pincel. Em abandono desolado, sem o conforto do mestre, refugiou-se no seu gabinete donde, como um profeta vingador, vivendo em cenóbio para fugir aos vícios torpes do mundo e às seduções do pecado, mandava, em largas páginas, nervosamente escritas à luz serena da Moral, a terrível e fulminante "polêmica" contra os padres que, de batina arregaçada e solidéu relambório posto à banda, com ares devassos e desabridos de capadócios, iam anuviando as almas simples com pregações obscuras quando a quaresma fúnebre chegava, enchendo a cidade de melancolia e dum cheiro insípido de incenso.
A cleresia uivou e uivaram as classes conservadoras. O jovem demagogo era olhado com asco pela gente pacata e as velhas, se, por acaso, viam-no passar, caminho do jornal, que era o oráculo de onde ele anunciava os crimes dos intrujões de sotaina, que tocavam para o arrabalde, em noites claras, com mulherio e vinhaça, bebendo e folgando até à hora em que o sol os devia trazer humildemente, santamente, aos confessionários, as boas velhas, se o viam passar, procuravam, trêmulas e aflitas, as contas dos seus rosários e pediam a graça de Deus para aquele espírito endemoniado.
A celeuma foi grande e redobrou de violência quando, inesperadamente, ele atirou ao meio pacato, como uma bomba, o seu primeiro romance, libelo formidável contra o preconceito. As famílias bradaram, o comércio rugiu, a cleresia esbravejou e um jornalista dos mais conspícuos, ferreteando-o com a vilta de "zote", conjurou-o a deixar "a vidinha peralvilha de escritor indo, de preferência, para a foice e o machado. Já que tanto amava a natureza e não acreditava na metafísica, nem respeitava a religião, tendo entusiasmo apenas pela saúde do corpo e pelo real sensível ou material, que se fosse a cultivar as terras ubérrimas". E clamava, terminando: "À lavoura, meu estúpido! À lavoura! Precisamos de braços e não de prosas em romances." E, conceituosamente, em rasgo de sabedoria, perorou: "Res non verba." E o jornal em que saíram estas palavras tinha, no cabeçalho, em grandes letras gordas, o preclaro e sugestivo título de: Civilização.
Apesar dos acirrados vitupérios da crítica e dos esconjuros indignados do beatério o livro teve saída: em menos de um mês esgotaram-se mil volumes e, na capital, um brado uníssono saudou triunfalmente o romancista que, desde então, não teve outro pensamento senão o de transportar-se ao Rio de Janeiro, com o produto da venda do seu livro maldito.
E fez-se de rumo para o Rio, a cidade ideal dos que têm na alma uma aspiração. E como ele a divisava através da fantasia! Uma cidade suntuosa, culta, intelectual e nobre, onde os artistas eram olhados com admiração e respeito, como em Florença, no tempo dos Médicis, quando, diante de Cosme, o Magnífico, Miguel Ângelo animava com o seu cinzel vital os mármores impassíveis e fazia irradiar a tela com a magnificência grandiosa das suas tintas.
Logo que saltou no cais com as malas e a tela sanguinolenta que recebera, para todos os efeitos, o título de A Barricada, sentiu grande peso no coração e os olhos foram-se-lhe saudosos pelo mar imenso. Vago pressentimento de infortúnio punha-lhe densas névoas na alma, mas a grande luz animava-o — reconhecia o céu, reconhecia o sol, eram os mesmos, que lhe importava o resto?
Se, por vezes, combalido, o seu espírito cedia à tristeza e ao desânimo, como a voz espectral do velho Hamlet, correndo subterrânea e soturna bradava aos de Elsenor: Jurai! Subia do fundo da sua memória a voz meiga e animadora do mestre: — Trabalha!
E foi o espírito amado que o apresentou. Não quis estrear com a pena, preferiu o lápis, e fez-se desenhista de um jornal ilustrado.
Mas a vida começou ingrata e árdua. Quantas noites de desalento! Quanta amargura! Quanta saudade! E, nem sequer o colo da velha mãe para repousar a cabeça, nem os seus beijos, nem os seus carinhos... De longe em longe, uma carta trazendo a bênção; e era só.
E se uma doença o prostrasse?! Quem havia de ficar à sua cabeceira como ela ficava, noites e noites, de olhos abertos, solícita e acariciante? Mas a voz do mestre levantava-lhe o ânimo:
— Trabalha!
Deixou o lápis, molhou a pena e, noites longas, num quarto pobre, que era como a gruta dos ventos, enchendo tiras e tiras, concluiu outro romance e, desde essa época, ora num alto sótão, ora ao rés do chão, suspendendo A Barricada a centenas de paredes, correu a cidade com as tintas secas na palheta, com os fios dos pincéis endurecidos, seguindo a grande Alma do povo nas suas ruidosas alegrias, nos seus inconsolados sofrimentos.
Entrava na oficina do operário, subia às pedreiras e, enquanto a broca ia furando o granito, sob a radiação vivíssima do sol, auscultava o coração do homem rude. Ia aos mercados, aos quartéis e, à noite, disfarçado, de blusa e tamancos, um gorro à cabeça, o cachimbo à boca, penetrava as estalagens confundindo-se com os que fervilham nesses formigueiros de almas; sentava-se à mesa das tavernas lôbregas, fazia-se das farândolas e assim, mergulhando nesses oceanos, trazia as pérolas que encravava nas páginas dos seus livros. Era essa a sua história. Anselmo, que ouvira extasiado, quando o romancista terminou disse, com inveja de todos aqueles sofrimentos:
— Sim, mas venceu! Hoje descansa e tem um nome glorioso. Ruy Vaz sorriu reacendendo o cachimbo e Anselmo, pondo-se de pé, exclamou:
— Pois eu agora é que vou começar a viver.
— Das letras?!
— Sim.
— Dize então, e dirás melhor e com mais acerto: vou começar a morrer.
— É possível, será um suicídio, mas não posso com o Direito. O Corpus Juris é o meu pesadelo. Tenho horror a tudo aquilo. O Oriente, o luminoso Oriente!... A Grécia com os seus deuses e com os seus heróis, a Índia com os seus mistérios. Isso sim! Sinto-me arrastado para essas idades. Amo o antigo e esse entranhado amor faz com que eu acredite na metempsicose. Eu fui grego, pelejei nas Termópilas...
— E apanhaste um golpe na cabeça que te levou uma aduela.
— Palavra de honra! Afirmou convencidamente o estudante e, assomado, pôs-se a discorrer e, enquanto referia episódios clássicos de Homero, de Hesíodo, de Xenofonte, Ruy Vaz, que lhe mirava os sapatos muito lustrosos, perguntou:
— Qual o teu número?
— Meu número? 128.
O romancista ergueu-se violentamente.
— Como?! 128...! Não são tão grandes os pés dos versos do Rodrigues. Falo do teu calçado.
— Ah! Pensei que se referia ao meu número de matricula: 38.
— Trinta e oito. Então somos gêmeos. É também o meu. Levantou-se e, depois de lançar um novo olhar aos sapatos do estudante, convidou-o:
— Vamos! O sol começa a abrasar. E caminharam vagarosamente para o quarto onde o criado, como um ciclone, atirava furiosas vassouradas levantando uma nuvem de poeira.
Tiveram de esperar um instante ao ar. Logo, porém, que o criado deu por terminada a limpeza, entraram e Ruy Vaz foi ao lavatório fazer uma ligeira ablução e, enquanto mergulhava as mãos espalmadas, batendo na água com a volúpia de um cisne acalmado, o estudante, de cócoras, examinava as estantes passeando os olhos pelas lombadas dos livros, atirados ao acaso em mistura incongruente e confusa: a Manon, de Prévost, estava apertada entre decrépitos volumes de Helvécio e um massudo relatório do ministério do império; Homero, numa intangida brochura, tinha familiarmente ao lado um volumete: Urzes e flores, dum Mendes, de Araraquara, contemporâneo e piegas.
Era assim em todos os raios — a douta filosofia acotovelada pelo romantismo ridente; a religião com os seus mistérios da vida superior e as suas consoladoras promessas de eternidade e bemaventurança esbarrava com as duras palavras céticas de Schopenhauer e de Hartmann, e Musset, meigo e amoroso, gasto do muito uso que dele havia feito toda uma geração de sentimentais, dormia sobre um atochado volume de Annaes da câmara dos deputados do ano de 1851.
— Tens alguma coisa urgente a fazer na cidade? — perguntou o romancista enxugando as mãos.
— Não. Por quê?
— É que eu preciso dos teus sapatos.
O pasmo do estudante não passou despercebido ao autor de A Barricada.
— Imagina a minha situação. Tenho um caso de amor, amor fino; o meu lunch de hoje vai ser um fruto proibido. É uma dama da élite: loura, de olhos azuis, uma cabecinha de Botticelli. Vive a bocejar entre os sessenta anos gelados e impertinentes do marido e a ferrenha catadura do avô reumático, que enche a casa de gemidos quando a não abala com os roncos. Esse lírio formoso espera-me hoje às 3 horas da tarde, enquanto o marido discute no Senado uma prudente medida de salvação nacional e o avô toma o seu choque elétrico. A ocasião é das mais favoráveis. Dá-se, porém, o caso grave de eu não ter, no momento, calçado idôneo. As mulheres têm o olhar curioso e essa então, que é pudica, no primeiro instante baixará os olhos e dará pelos meus sapatos, que começam a descambar em alpercatas. Tenho ali um par de botinas, mas apertam-me como credores, e tu compreendes que um homem que vai para tão arriscada fortuna deve ir preparado para todos os casos, principalmente para correr. Imagina que morre um senador e suspendem a sessão ou que, por excesso de umidade não funciona a máquina elétrica, como hei de eu, com os pés entalados, fugir à cólera do marido ou à fúria do avô? Um é bravio na oposição, deve ser tremendo em se tratando da honra doméstica; o avô foi revolucionário, viu muito sangue, e feroz. De mais, as minhas botinas (falo-te como a um irmão) têm um vício inveterado que me faz perder um tempo precioso sempre que delas me sirvo. Tenho os minutos contados, devo seguir diretamente, aladamente se possível for, para Laranjeiras e, se eu as puser nos pés, sei que vou ter à secretaria de Agricultura.
— Como?!
— É uma história. Empresta-me os sapatos e, às cinco, estou aqui com eles.
— Pois não. Mas a história...?
— Ah! Falando, Ruy Vaz, para não perder tempo, ia vestindo-se. A história é simples. Já pensei em escrevê-la com o título: A psicologia das botas. Há botinas de primeira mão, ou antes: de primeiro pé, e há botinas sabidas. Sabido é o calçado experiente que já serviu a outrem, e por velho, passou à tripeça do remendão que lhe pôs uma tomba e uma sola, vendendo-o por preço cômodo aos que vivem a esperar sapatos de defuntos. Não penses que te quero chamar defunto, nem contava hoje contigo. A felicidade vem sempre inesperadamente. As sabidas guardam os hábitos do primeiro dono. Se serviram a um militar forçam os pés ao ritmo da marcha; se foram de um amanuense levam-nos à secretaria e assim por diante; é macabro, mas é verdadeiro. Tive um par de botas que me arrastava sempre para as praias, para as casas de armas, para as farmácias, para os trilhos dos bondes. Preocupado com essa contumácia dei-me ao estudo do caso e convenci-me que o primeiro dono fora um desgraçado que tinha mania do suicídio. Essas que agora possuo foram, com certeza, na primeira encarnação, de algum empregado da secretaria de Agricultura. Os teus sapatos são novos?
— Comprei-os ontem.
— Ah! Então são puros, não estão ainda viciados. Vou com eles como se levasse nos pés as asas de Mercúrio. Dá-me-os. O estudante, meio desconfiado, tirou os sapatos e mergulhou os pés nas desbocadas chinelas do romancista. Rápido, Ruy Vaz calçou-os e pôs-se de pé radiante.
— Então, servem?
— Ora! Estou como no Paraíso! Não há como a gente ter o mesmo número e é maravilhosa a exatidão das matemáticas. Grande coisa o algarismo! Mas fez uma careta: — Diabo, o teu 38 é caixa baixa, tem pouca altura. Tens o pé muito seco, isto é mau. O pé é a base do homem, deve ser forte. Enfim... como o calor dilata os corpos e todo eu ardo em ansiedade... até logo! Tomou a bengala, acendeu um cigarro e estendeu a mão ao estudante:
— Olha, tens aí poetas e filósofos. Sobre a mesa há o volume de odes de um vate goiano, se quiseres dormir. O fumo está aqui nesta velha faiança. Até logo! Se vier alguém não estou em casa, podes mesmo dizer que fui para Petrópolis ou para São Paulo, embarca-me para onde quiseres. Até logo! Já à porta, voltou-se: Se queres fazer exercício de idílio apurando a ternura, das quatro em diante costuma aparecer a uma janela dos fundos daquela casa, que tem a parede blindada de zinco, uma menina ruiva, arrepiada, de olhos chorosos que se presta pacientemente a ouvir declamações: Vai lá para o banco da chácara. Franziu de novo o nariz, torcendo o pé: Diabo! Decididamente tens o pé muito seco... e isto está me incomodando deveras. Até logo, às cinco. E foi-se.