Na manhã seguinte, fresca e luminosa manhã, depois do banho, o último sob o jorro copioso da calha que rivalizava com Paulo Afonso, Ruy Vaz e Anselmo, vestindo as calças menos surradas, foram bater à casa vizinha. Quem lhes havia de aparecer? Uma mocinha loura, alva e franzina. Duas rosas ornavam-lhe as faces duma pele acetinada e tênue, sob a qual como que se via o sangue circular em retículas azuis. Os olhos, duas turquesas, pensativos sob as compridas pestanas curvas, tinham uma entristecida melancolia e pareciam lavados em lágrimas. Os cabelos eram de ouro e brilhavam em duas tranças fartas, o colo cheio ondulava e a voz era lenta e doce como o som das citaras.
Descerrou a pequenina boca fresca e sangüínea e, firme, com o seu avental imaculado, perguntou: "Se queriam alguma coisa?" Anselmo, arroubado, já cantarolava o:
Salve dimora casta e pura!
Foi Ruy Vaz, mais frio e resistente ao amor, quem respondeu:
— Sim, senhora. Desejamos ver os cômodos anunciados.
Gretchen acenou de leve com a formosa cabeça, onde havia mais ouro do que em todo o Reno, no tempo dos deuses, e grave, em passo sutil e airoso, chegou a uma porta, deu volta à chave convidando, com um gesto cheio de divina majestade, a entrarem. Ruy Vaz passou primeiro e Anselmo seguiu-o com o coração abrasado. Não viu o estreito corredor sombrio, nem o quarto acanhado, nem a sala que tinha o papel desprendido, voando ao vento e buracos pelos cantos e placas de zinco pregadas no soalho esfregado. Ruy Vaz examinava como um mestre de obras, elevando os olhos da barra ao teto, de onde a pintura esborcinada, escorchada se destacava em lâminas. Anselmo via tão só a face branca e as rosas, os olhos azuis e as tranças, a boca breve e rubra e o colo que arfava. Estava longe, andava em Goethe, pelo Fausto...
Salve dimora casta e pura...
Ruy Vaz trincou o bigode e, pondo os olhos negros no rosto puríssimo da moça, ponderou, sorridente:
— É caro...!
Ela, muito séria, encolheu os ombros e foi abrir as janelas. O sol entrou iluminando a sala, pondo uma grande alegria nos aposentos e brilho nos cabelos de Gretchen. A aragem fresca levou o cheiro de umidade deixando um leve aroma de rosas.
— Caro não é, disse Gretchen, como espantada.
— Não é, concordou Anselmo.
— Com café de manhã...? — aventurou Ruy Vaz e ela, sorrindo, com muita vivacidade e um fulgor novo nos olhos:
— Si, si... com café de manhã.
— E o banheiro? — perguntou o romancista.
— Si, disse ela, no quintal; banheiro do chuveiro; elevou o braço e fez graciosamente o gesto de quem puxa uma corda.
— E as condições?
— Como queira. Não faz questão.
— É a senhora quem aluga?
— Não, papai. Mas ele não está. E encarando Ruy Vaz:
— O senhor não mora aqui ao lado?
— Sim, senhora. Tomamos esta casa para um amigo que se casou no Norte. Ele devia chegar até o fim do mês. Anteontem, porém, telegrafou-nos comunicando-nos que resolvera passar a lua-de-mel nas margens do Reno, no castelo de um parente da mulher.
— Nas margens do Reno? — exclamou Gretchen maravilhada.
— Sim, senhora: nas margens do Reno.
— Muito bonito! — disse ela abrindo os olhos serenos.
— Muito bonito. A senhora compreende que dois rapazes num casarão como esse...
— Ah! Si... si... Seu nome?
— Ruy Vaz.
Ela repetiu lentamente, sonoramente:
— Ruy Vaz. E o senhor?
— Anselmo Ribas.
Gretchen sorriu e, como nada mais tivesse a perguntar, ficou a brincar com uma das tranças.
— Bem; então podemos fazer hoje a nossa mudança? — disse Ruy Vaz.
— Sim, senhor. E, tirando do bolso do avental uma pequena chave, entregou-a ao romancista dizendo com um sorriso adorável: Só tem uma.
— E basta, respondeu ele. Então até já. Deu alguns passos para o corredor, mas voltou-se amável: A senhora...?
E ela, compreendendo, avançou a cabecinha, com um dedo no colo farto:
— Meu nome?
— Sim, senhora.
— Carlota.
Anselmo estremeceu lembrando-se de Werther. E, quando estendeu a mão a Carlota, sentiu um frêmito percorrer-lhe o corpo, que vibrou de amor. Carlota! E, saindo, cantarolava apaixonadamente:
Salve dimora casta e pura.
Quando entraram no palácio João de Deus, macambúzio, passeava lentamente pelo corredor e o gato ia e vinha miando, a esfregar-se-lhe nas pernas.
— João de Deus, tem paciência, estamos com a corda na garganta, e só tu nos podes salvar.
— Eu? Ah! Seu doutor, eu estou que não posso comigo. É para ir à cidade?
— Não, mais perto: aqui ao lado com os nossos trastes.
— Carregar!!?
— Sim, João, tem paciência.
O negro tirou uma ponta de cigarro detrás da orelha e, com um suspiro, foi subindo as escadas vagarosamente. Os dois rapazes desceram ao jardim e Anselmo, encostando-se à barra fixa, suspirou, melancólico, como se previsse desgraças:
— Ah! Meu caro Ruy... essa casa é um perigo.
— Perigo? Perigo por quê? — e o romancista ia catando as rosas e as gardênias do jardim que a erva crescida asselvajava.
— A mocinha impressionou-me. Viste que lindos olhos? Não lembra a Margarida?
— Que Margarida?
— Do Fausto...
— Ora! Tu sofres de amor crônico, crônico e literário. Na primeira mulata que te aparece vês Sacuntala. Já andaste a pensar em uma Haydéa que cozia para o arsenal; viste uma Morna na Praia Formosa; escreveste um conto à Miranda e agora estás suspenso dos olhos de uma Margarida que aluga cômodos. Isso é doença.
— Mas que queres?
— Quero que não me aborreças com os teus amores. Olha, se vais para lá com idéias de idílio, estás arranjado: os alemães são ferozes. Já é tempo de tratarmos da vida a sério.
— Eu vou escrever e vou ver se o Heller monta A Profecia.
— Qual Profecia! Cuida de outra coisa.
— Achas, então, que ele não monta a minha peça?
— Garanto. A literatura dramática, dramática é um modo de dizer e literatura é eufemismo, mas admitindo a expressão, a literatura dramática entre nós está monopolizada por um pequeno grupo. Nem Shakespeare, se ressurgisse, conseguiria impor-se aos empresários. A tua peça há de morrer no arquivo. Cuida de outra Coisa. Que fizeste do romance?
— Não sei. Com o primeiro capítulo João de Deus andou tapando fendas nos vidros, em casa de Dona Ana; Amélia cortou o segundo para fazer papelotes...
— Por que não escreves contos? Tens tantas idéias.
— Mas quanto pode dar um conto?
— Um conto? Nada.
— Então não pagam?
— Não. Se queres ganhar alguma coisa emprega-te como noticiarista, mas vê lá: não digas que fazes literatura.
— Mas isto não é país! — rugiu Anselmo.
— É a terra afortunada, meu amigo. Quem nos governa é um monarca letrado que traduz Petrarca e Byron e comenta Platão no original.
— Mas de que hei de eu viver então?
— Sei lá!
— Mas tu ganhas.
— Ah!, Sim: escrevo um romance de seiscentas páginas e vendo-o por oitocentos mil réis. Achas que vivo...? Que lindas rosas, hem?
— Lindas, concordou Anselmo distraído. Mas tornando logo ao assunto:
— E se eu fosse pedir colocação num jornal...?
— Tens empenhos?
— Não.
— Então, meu amigo...
Ruy Vaz, com um esplêndido ramo de rosas, encaminhou-se para a sala de jantar deixando Anselmo no jardim, preocupado, a pensar na vida que lhe aparecia temerosa e nos olhos doces de Carlota, azuis como dois pequeninos céus cheios de esperança, com um Deus em cada uma das pupilas.
— Vem daí, homem. João de Deus já nos está mudando.
— E não é que estou apaixonado mesmo!? — murmurou o estudante encaminhando-se lentamente para a sala de jantar.