Três dias depois, realizando o que havia imaginado, Anselmo instalava-se em casa de Pedroso. O professor recebeu-o com alegria e, como ele levava apenas a canastra e alguns livros, tendo deixado o mais com o alemão, não houve necessidade de modificar a disposição móveis, que eram poucos. Viviam na pequena casa, além de Pedroso, o macambúzio Alfredo que, sendo irmão do professor, parecia-se tanto com ele como com o terceiro, um hóspede, o Raul, rapaz de vinte anos, que era uma montanha de carne. Com uma decidida vocação para o teatro estreara, aos dezoito anos, na Fênix Dramática, com o Galvão, fazendo pequenos papéis com discrição e suor à ufa.
Lembrava-se, com orgulho, de um "salteador" que interpretara com tanto talento que o empresário, depois da primeira récita, para animá-lo, disse:
— Raul, não fosse a tua corpulência e irias longe no teatro, mas assim, filho, com tanta enxúndia, cansas depressa.
Efetivamente cansou; ou antes: desanimou. A gordura caminhava com tamanha pressa pandeando-lhe o ventre, enchendo-lhe as coxas e os braços que, se uma peça lograva fazer carreira, à vigésima representação Raul era forçado a recorrer ao alfaiate para que lhe alargasse as roupas. Retirado do teatro, com o qual o toucinho o incompatibilizara, vivia melancolicamente, engordando e recitando monólogos pela casa, quando não ia para a cozinha aguar o ensopado ou salgar a sopa.
Mas a alma era grande e, não raro, rebentava-lhe dos olhos em ternura lacrimosa ou expluia-lhe do peito largo em suspiros estéticos sobre algum papel tonitroante de tirano, em peça truculenta. Sentia-se-lhe na melancolia do olhar a nuvem de um pensamento triste que se poderia traduzir livremente nesta lamentação: "Que grande artista se perde neste jacá de toucinho..." Em verdade, era um jacá e atochado.
Pedroso conhecera o Raul na caixa da Fênix, quando por lá andara enamoradamente, com grandes ramos de rosas, seguindo os passos de uma atriz. O professor tinha também certa "queda" para o palco. Não fossem delicados escrúpulos: a família, os alunos... e teria aceitado um convite que lhe fez o Galvão no tempo do idílio, mas o macambúzio Alfredo chamou-o à ordem salvando-o, em tempo, de uma queda fatal no conceito do público e na comparsaria. Consolava-se fazendo "galãs" em teatrinhos particulares. Era melífluo, ajoelhava-se, com muita expressão, aos pés das damas, rente da caixa do ponto para falar com segurança do seu amor. Alfredo era circunspecto — estudava ciências exatas, não fumava, recolhia-se muito cedo e evitava os olhares das mocinhas da vizinhança. Comiam em casa: o Raul cozinhava por economia e, à mesa, os companheiros, gratos, ouviam a história dos seus triunfos no teatro da rua da Ajuda.
Anselmo, posto que não tivesse os cômodos que sonhara, viveu com certo conforto, dormindo à sombra do Raul que roncava como um vulcão.
Foi nesse homizio que ele fez os seus melhores estudos literários. O Raul, que o admirava, ficando em casa enquanto os dois irmãos iam explicar os substantivos e os teoremas, metia-se num canto com um maço de comédias e lia, rindo às gargalhadas, enquanto Anselmo, de papo para o ar, devorava Shakespeare, Dante, Ariosto e quantos poetas lhe caíam nas mãos, por empréstimo, porque os seus livros estavam lidos, relidos e vendidos.
À noite, às vezes, serenatas passavam pela rua silenciosa enfurecendo os cães que investiam e Pedroso, sempre jocundo, abria as portas da casa ao grupo ou seguia com ele a percorrer o bairro adormecido. Anselmo nem sempre o acompanhava, preferia ficar preguiçosamente em casa lendo ou palestrando.
Raramente descia à cidade. Refazia-se física e espiritualmente preparando-se para o grande dia em que tencionava aparecer sobraçando os originais do primeiro volume da grande série.
Os rapazes falavam do seu sumiço, faziam conjecturas e ele continuava tranqüilamente os seus estudos.
Ruy Vaz, instalado definitivamente no palacete do visconde, engordava e tinha quase concluído o seu romance. Um incidente, porém, alvoroçou o estudante: o Alfredo, sempre taciturno, descobriu, uma manhã, na fronha alva do travesseiro, uma mancha de sangue e, como houvesse na família vários casos de tuberculose, ficou alarmado decidindo, desde logo, mudar-se para o campo onde houvesse ar puro e árvores e, com precipitação, não querendo dar tempo à moléstia, meteu-se num trem e foi correr os subúrbios achando uma casa modesta, de feição campestre, com muito terreno arborizado e uma cacimba, em Cascadura, numa larga estrada quase deserta que levava aos montes.
A mudança foi feita num dia. Anselmo, à lembrança de viver em tão arredado sítio, hesitou antes de permitir que a sua canastra fosse despachada, mas Raul e Pedroso convenceram-no, falando-lhe do silêncio do campo, propício à meditação e ao estudo, bom ar saudável, da água excelente, dos saborosos frutos e Anselmo deixou-se levar, não prometendo demorar-se porque tencionava arranjar um lugar na imprensa que, ao menos, lhe desse para casa e comida.
A casa era realmente pitoresca. Toda branca na verdura de um pomar e única na estrada areenta onde andavam soltos carneiros, cabras e grandes cevados grunhidores. Nas dimensões era um cacifro.
Raul reclamou contra as portas estreitas. Sempre prosperando em banhas, receava que, uma manhã, acordando, fosse obrigado a demolir a parede do quarto abrindo brecha para passar. Comiam em um hotelzinho, onde a gente da Estrada de Ferro costumava fazer os seus regabofes. De manhã, saindo em grupo, iam a um quiosque para o café. À noite dirigiam-se à estação para conversar e viam chegar e partir os trens e, quando os expressos silvavam, ao longe, paravam agarrados às colunas, com os olhos além, até que, na grande sombra, luzia o olho imenso da locomotiva, e vinha crescendo, crescendo, ouvia-se o rumor e o chiado, e rápido, repentino, o comboio passava levantando um grande vento. Mal se avistavam vultos brancos e lá ia ele curveteando, era uma luzinha que fugia como um vaga-lume e desaparecia na sombra. Logo, porém, outro comboio chegava lentamente, parando junto à estação, à espera de passageiros e outro vinha da cidade, bufando. Saía gente, a locomotiva, desengatada, parda veloz para a manobra no virador e os empregados iam examinar os carros, batendo-lhes nos eixos. Na plataforma iluminada reuniam-se rapazes, moças passeavam, e uma velha negra, aleijada, cochilava a um canto diante de uma bandeja, apregoando, de instante a instante, com uma voz triste, cocadinhas e balas. Anselmo achava aquilo hediondo.
A vida insípida e monótona enchia-o de tédio e desalentava-o. Da manhã à noite era o mesmo, invariável espetáculo da natureza campestre, a mesma vida de rusticidade. Se chegava à janela, os olhos encontravam apenas a estrada larga e deserta, branca, escaldando ao sol. De quando em quando, um homem que descia da sua roça, na vertente dos morros, sozinho, cantando ou com a bestinha lenta carregada, ou negras que tinham ido às compras e tornavam aos seus casebres com embrulhos, o cachimbo nos beiços, descalças, levantando uma poeira fina e dourada
E ali ficava horas e horas, sob a ardência da luz, bocejando, sonolento e mole, ouvindo os silvos dos trens que passavam ao longe. Nos fundos, era a larga e verde planície cultivada, dividida em hortas e quintais. Laranjais de um verde forte e metálico, carregados de frutos, milhos louros, canaviais que sussurravam num mar verde e irrequieto. Um cheiro forte de seiva subia da terra morna. Aves andavam cacarejando e mariscando nos monturos e a uniformidade da paisagem dava uma impressão fatigante à vista, enfarada de arvoredo e de ervas rasas, onde não aparecia um vulto humano, como se o mesmo sol fosse o único encarregado da lavoura daquelas terras fecundas, que se estendiam dilatadamente perdendo-se num horizonte azulado de montanhas.
Anselmo vivia vegetativamente como aquelas árvores fortes que ali estavam agarradas à terra, sugando-a. Mas o que, em verdade, o prostrava era, por assim dizer, a própria fecundidade. Justamente ele estava como aquelas árvores, cujos ramos roçavam o solo vergados ao peso dos frutos; sentia a inadiável necessidade de expansão, o seu espírito começava a produzir exuberantemente, as idéias caíam-lhe do bico da pena como caem dos galhos os frutos maduros, mas a sua atividade espiritual, que se ia esperdiçando, dava-lhe grande tristeza. Tarde, às vezes, não podendo conciliar o sono, enquanto os companheiros dormiam, abria a janela à noite silenciosa e, debruçado à mesa, lia e escrevia e, quanta vez o sol o encontrou absorvido na leitura ou rematando páginas. Um dia resolveu descer. Não podia mais com aquela vida amolentadora e estéril. Pedroso tentou dissuadi-lo propondo-lhe alguns discípulos.
— Não, vou arranjar trabalho. Sinto-me morrer aqui. Esta inércia acabrunha-me, não posso mais. Preciso trabalhar...
— Mas para onde vais?
— Não sei, hei de arranjar um jornal. Que diabo! É impossível que não haja um lugar para mim. E que não haja! Aqui não fico... não posso, apodreço!
Pedroso encolheu os ombros resignado e Anselmo, resmungando, foi vestir-se.
— Vais sem almoço?
— Vou.
— Almoça primeiro, homem.
— Não.
— Que coisa! Até parece que vais daqui ofendido. Houve alguma coisa contigo?
— Não, nada.
— Então?
— Não posso com isto, Pedroso. Estou ficando neurastênico. Há ocasiões em que tenho vontade de chorar.
— Por quê?
— Sei lá, à toa. É este silêncio, é esta monotonia, é tudo isto que me enfeza, que me irrita. Demais, já é tempo de começar a fazer alguma coisa. Se continuo aqui apodreço. Preciso ir.
— Mas não vais zangado conosco?
— Zangado, por que? Vou para não morrer de tédio. Não posso ficar aqui a olhar milhos que amadurecem e galinhas que chocam. Há mais de seis meses que ando nesta vidinha lânguida de fainéant. É tempo de reagir.
— E se não achares emprego?
Com grande confiança ele afirmou:
— Hei de achar!
— Mas vens dormir aqui?
— É possível.
— Bem. Já que insistes não quero contrariar-te. Mas a quem vais falar?
— Ao Patrocínio.
— Já o conheces?
— De vista.
— Por que não arranjas uma apresentação?
— Qual apresentação! Vou e falo. Se me quiser aceitar, muito bem; se não quiser, melhor.
— Qual! Tu tiveste algum aborrecimento, Anselmo.
— Não tive, palavra.
Raul, que acompanhara toda a cena sem intervir, sussurrou humildemente:
— Comigo não foi.
— Ó senhores, pelo amor de Deus, que mais querem vocês? Estou aborrecido, mas é disto! E, avançando impetuosamente para a porta, mostrou, num gesto largo, a paisagem quieta, ao sol, e as cabras que iam lentamente com as crias ao longo da estrada deserta e sem sombra. Isto é que me enfastia, é esta coisa reles... Preciso sair daqui, senão estouro. É hediondo tudo isto. Hediondo!
O silvo de uma locomotiva atravessou os ares mornos. Anselmo tomou o chapéu:
— Adeus.
— Então até logo.
— Até logo.
— Não vais zangado?
— Não vou, homem.
— Palavra?
— Palavra. Adeus, Raul! E, tomando a bengala, como a casa distasse muitos metros da estação, deitou a correr pela estrada poenta ao sol dourado e quente da manhã gloriosa.