A Dança do Destino/Maria Julia

Maria Julia
Maria Julia
 

 

Tinham jantado no Tavares. Um jantar alegre, regado de champagne.

Os ditos picarescos cruzavam-se com as gargalhadas francas e retinidas, como só a mocidade as sabe soltar.

A Maria Julia estava com um espirito diabolico, como asseguravam os tres rapazes que a acompanhavam.

Arthur, o amante, já com uma pontinha de ciume, em presença da extraordinaria alegria da rapariga, pensava no presente que teria de lhe dar, não fosse, caprichosa como era, substituil-o por algum dos amigos.

Não que ela, sem causa aparente, largava de repente os amantes sem lhes dar satisfações. E se êles se faziam autoritarios, apanhavam com a porta na cara e acabava-se tudo.

Pálida, cabelos d'um lonro cendrado, d'uma excessiva elegancia, se não era admiravelmente bela, tinha, em compensação, um tal encanto de sedução que não havia meio de resistir-lhe.

Naquele dia estava esplendida de graça, nunca o seu espirito caustico e atrevido brilhára tanto, nem os seus atractivos, de mundana caprichosa, tinham entusiasmado os seus admiradores como naquele alegre jantar.

— Que faremos agora? — consultavam ao levantarem-se da mesa.

O Arthur, muito atenciosamente, respondia:

— A Maria Julia que diga, ela é quem manda.

— Vamos á Trindade? — alvitrava um.

— Um passeio a Cascaes, pela fresca, faz um calor! — lembrava outro.

E ela, que não. Era tudo massada, não havia divertimento algum. Em setembro era estupido permanecer em Lisboa, mas o Arthur tardava já em levál-a ao estrangeiro, e, francamente, já não ia gostando nada da graça.

— Mas, emfim, onde iremos? — repetiam êles — Vamos ao animatografo?

— Vamos á feira, à feira de Agosto — declarava, por fim, a rapariga — a gente sempre tem de se massar; vamos aquela semsaboria.

— Semsaboria com ela — exclamavam êles — impossivel!

Meteram-se no auto e partiram para a feira.

— Tem ideias, esta Maria Julia! Impagavel! repetia pela centesima vez um dos companheiros, rapaz de monoculo petulantemente encravado, que lhe franzia a face esquerda, de uma fórma detestavel, dando-lhe um ar de sublime idiota, que êle supunha d'um chic irresistivel para as mulheres. — Muito galante tudo isto! Vamos ter uma noite divertidissima e...

— Sim, já sei, muito chic — interrompia ela, encolhendo os hombros.

Chegaram. Maria Julia desceu ligeira, som tocar na mão que lhe ofereciam e, muito alegre, seguida dos tres rapazes, transpoz a entrada da feira.

Agitava-se uma multidão mesclada e confusa. Sujeitos pacatos, caminhando lentamente, eram acotovelados pelos ranchos irrequietos que iam gosar. Confundiam-se gritos estridentes com os pregões enrouquecidos, e havia uma alegria simulada que causava tedio, naquele ambiente saturado do cheiro nauseante de peixe frito.

— Quentes e boas! — berrava o vendilhão das castanhas cozidas, á entrada da feira.

— Quer queijadas da Lapa, minha querida fregueza? — bradava uma mulher — Olhe que são das legitimas; compre, minha fidalga!

— O grrrande sucesso, meus senhores! — gritava um rapaz de cara enfarinhada, à porta d'uma barraca — venham ver os noivos: o monumental gigante, que jamais olhos humanos contemplaram, ao qual, para se lhe poder apertar a mão, é preciso subir a uma escada; e a sua microscopica noiva, a princeza Recoralta, que é mais pequenina que uma orelha do seu futuro esposo! Venham ver! Venham admirar!

Maria Julia parou, e ao ver a acanhada barraca onde se abrigava o famoso gigante, exclamou:

— Deve estar de cócoras para caber ali, coitado!

Passaram mais adeante, e ela, encaminhando-se para uma vendedeira de pevides e fava torrada, pedia:

— Um vintem de fava torrada, tiazinha.

— Pronto, minha santa; faz muito bem á voz.

Depois continuou a percorrer as ruas da feira, com o seu estado maior ao lado. Tasquinhava nas favas com os seus deutinhos brancos e aguçados, e, olhando o amante, que todo se desvanecia, dizia-lhe muito gaiata:

— Vês como eu mordo? assim é que eu lhes faço a vocês! deito fóra a casca e trinco o miôlo... e eu tenho bons dentes!...

— É muito chic esta Maria Julia! — casquinava o de monoculo.

Entraram, por fim, no animatografo.

— Oh! senhores, que enorme calor! mas em companhia da Maria Julia tudo é divertido, — exclamavam os amigos do Arthur.

Depois, o figurino, assestando o monoculo para as burguesinhas que lá estavam, dizia alto:

— Bem boas estas pequenas! Não teem muito chic, é verdade, mas vá lá, vá lá... são galantes!...

As meninas olhavam despeitadas.

— Credo! — disse a mais altiva, — que peralvilhos estes!

— Ó Mimi, — dizia a outra, depois de ter estado cinco minutos a examinar o chapeu da Maria Julia, — tu não vês o descaro d'estes tipos, virem para aqui com as cocotes?

Então a tia, que estava ao pé, uma senhora do oculos e com um nariz de cavalete, muito vermelho, dando uma cotovelada na sobrinha, disse-lhe baixinho, num tom repreensivo:

— As meninas não devem olhar para essas mulheres!

E curvou-se-lhe mais o nariz, numa expressão extraordinaria de desdem.

Maria Julia continuava mordiscando as favas, sem dar pelas indignações que despertava.

A sala ficou às escuras, começava o espectaculo.

Lá estava o Cretinete a fazer piruetas. Caia das janelas, caía dos telhados, metia-se pelas chaminés, pelos canos de esgoto, trambulhão aqui, ponta-pé acolá, gente esbaforida atrás d'êle, um sucesso!

Riam as meninas galantes, ria a austera tia, ria o publico em peso. Um delirio de risos!

Só a Maria Julia bocejava.

— Que massada! — dizia ela.

Outra fita Uma scena de adulterio. O marido saía radiante, ia fóra ganhar a vida; mas voltava inesperadamente e lá se davam as jocosas situações em que o amante, atrapalhado, se esconde debaixo das camas, nos armarios, em toda a parte, com graude gaudio dos espectadores e principalmente dos homens casados, que achavam uma graça espantosa ás scenas d'este genero.

Mas, de repente, a sua atenção ficou completamente absorvida.

Uma ruga cavou-se-lhe na testa. Estremecimentos nervosos agitavam-n'a. Impacientava-se se lhe falavam e a distraíam.

O que teria a Maria Julia?

Desenrolava-se uma fita de arte.

Era a protagonista uma rapariguita de 14 a 15 anos.

Uma quadrilha de gatunos explorava-a, fazendo-a atrahir os incautos para os roubarem. A pobre creaturinha era obrigada, por maus tratos, a acompanhá-los nas emprezas mais arriscadas.

Não faltava a repelente megera, alcoolica e coberta de farrapos, a moê-la de paucadas, fazendo-a dançar nas tabernas, com os apaches, até cahir exhausta e sufocada pela tosse. E n'um desdobramento de torpezas e degradações, a misera creaturinha, rolava de vergonha em vergonha, até expirar, minada pela tuberculose, uum triste leito do hospital.

Todo um drama pungente de miseria e desgraça, cuja heroina era uma pobre creança, abandonada pela mãe!...

Maria Julia levantou-se de repelão, os olhos razos de lagrimas, e numa voz titubiante dizia:

— Ar! preciso de ar! snfoca-se aqui.

Arthur, muito inquieto ao dar-lhe o braço, propunha irem para casa, mas ela precisava de respirar livremente, e dizia:

— Não, não quero! com um pouco de ar passa; não é nada.

Abancaram cá fóra, e com grande alegria dos amigos, Arthur mandou vir champagne. Agora sim, com o champagne tudo passava e a Maria Julia ia ficar optima.

— Que era muito chic, dizia o do monoculo; — uma mulher de espirito póde adoecer, deve ter sincopes, deve ter nervos!

― Mas quem lhes diz a vocês que eu estou doente? ― respondia ella ― talvez fatigada de lhes ouvir tantas baboseiras, não digo que não.

― Obrigado pela amabilidade ― respondiam êles radiantes.

Mas a Maria Julia não dava a resposta trocista do costume; olhava-os com um ar abstracto e enjoado. A taça de champagne espumava-lhe nas mãos e através do dourado liquido, ela estava agora a ver, nessas perolas que subiam e se evolavam à superficie da taça, os anos passados da sua existencia, numa efervescencia de paixões e desregramentos que lhe tinham posto o vacuo na alma, onde a amargura fôra sufocada pela quimera dos prazeres faceis e estereis, onde o tedio se acumulava, a desfazer-se, por vezes, em ondas de lagrimas e de remorsos.

Sim, porque a María Julia era uma mulher educada. Por que série de circumstancias chegava a nem pensar no que a si propria se devia? Que sabia ela? Era a fatalidade, que tudo explica.

Fôra justamente ha 15 anos. Vivia com a mãe, uma santa creatura, viuva de um honrado militar, e que, com a educação da filha, gastava quasi toda a pensão que lhe ficára. Fôra a pequena creada com as mais austeras noções da honra e da honestidade; mas a Maria Julia era vaidosa e preguiçosa. Amava a sua beleza sobre tudo e adorava o luxo. Sonhava com um casamento rico, um banqueiro, um principe, que sei eu? Com uma existencia, emfim, em que o fausto e a opulencia puzessem bem em destaque a sua exquisita e atrahente beleza.

Recusou o casamento com um bom rapaz, mas de fortuna modesta; e um dia, julgando encontrar o milionario dos seus sonhos, amou-o loucamente. Por êle ou pela fortuna? É natural que esta produzisse a maior intensidade do amor dedicado àquele, atenta a psicologia da rapariga, que não era das mais dificeis de compreender. Fosse como fosse, a verdade é que ela julgou amál-o, e fingindo ceder aos rogos e ameaças da mãe, que opondo-se tenazmante àqueles amores, logo via o abutre em volta da preza, que era a filha da sua alma, disfarçou como poude, e um belo dia desapareceu de casa, fugindo com o amante.

Voltou d'aí a mezes abandonada e descrente.

A mãe pouco viveu, mirrada de privações e desgostos.

Maria Julia ficou só, sentindo nas suas entranhas o fruto desses malditos amores que a tinham perdido.

Sem recursos, nasceu-lhe uma filha no catre da miseria. Deu-a a uma ama e começou, enfraquecida e desalentada, a trabalhar aqui e ali, onde e como podia, até que adoeceu. Recolhida por alguns mezes no hospital, não podendo pagar á ama da filha, não lhe apareceu mais. Pouco depois, um caixeiro de comissões levava-a comsigo e ela, abandonando a Patria, abandonou a filha...

Passados anos voltou. Trazia dinheiro e joias. Na sua vida de bohemia tinha juntado para a educação d'essa creança, que ela não pudera esquecer.

Parecia-lhe facil tarefa encontra-la, e foi num alvoroço de coração, em que o amor de mãe brotava como uma flor preciosa, que se pôz a procura-la.

Mas a ama da filha havia 3 anos que tinha morrido e a creança tinha ficado com uns visinhos, mais pobres e miseraveis que a propria ama, e dos quaes não se sabia o paradeiro, havia mais de um ano. Para onde tinham ido?... Dirigiu-se à policia, mas ali então as trevas tornaram-se mais densas. Inuteis todas as pesquizas. Os vestigios da creança tinham desaparecido.

Talvez tivesse morrido, diziam-lhe êles lá.

Emigraram talvez as creaturas com quem estava e era natural que a pequena não tivesse resistido, atenta a vida de miseria e privações levada por esses desgraçados que se expatriam clandestinamente.

Para que preocupar-se mais com o irremediavel? Sim, devia ter morrido.

E ela chorou, pensou ainda uns tempos nisso, e por fim... esqueceu.

Mas eis que essa fita, do animatografo, desdobra ante seus olhos, espavoridos, todo um drama dilacerante, de uma creança abandonada...

Não poderia tudo isso ter sucedido à sua filha ? E ela, vendo a mão morta de desgosto, no passado, essa pobre mãe que nunca a abandonou, nem depois da sua ingratidão, e vendo a filha agora, quem sabe? moribunda num leito do hospital, ou rolando na infamia de todas as torpezas humanas!...

Que despreso então sentiu por si propria, e por todos esses cumplices da sua vida de ignobil perdição!...

Oh! não ela não era má, porque sofria tanto agora, que era demais para aquela pobre cabeça de misera pecadora, e que, talvez pela primeira vez, se curvava ao peso do verdadeiro remorso!

Então os homens que a rodeavam pareceram-lhe monstros que lhe gargalhavam injurias; o champagne, um liquido viscoso, a lama que lhe escorria pelas mãos, lama onde ela se tinha lançado e nela envolvera a sua filha tambem...

Ergueu-se. O olhar em fogo. Cambaleante e indecisa, fitava os companheiros d'uma fórma estranha! O do monoculo soltou uma gargalhada, esperando um discurso excentrico, mas o riso secou-se-lhe prontamente nos labios, quando a taça, arremessada com impeto, lhe foi bater na testa, fazendo-lhe saltar o monoculo a distancia, emquanto o champagne, escorrendo pelas faces, ia manchar a elegante gravata e a alvura do peitilho, tirando-lhe todo o seu chic de precioso figurino.

Levantaram-se atonitos! Arthur correu para ela, exclamando ancioso:

— Mas que foi, que te sucedeu?...

Ela afastou-o gritando, enrouquecida:

— Deixem-me!

Caminhava quasi correndo, seguida pelo amante e os outros um pouco vexados.

Passou a saída da feira e atirando-se para dentro do automovel, antes que o Arthur subisse, gritou:

— Para casa.

O automovel partiu como uma flexa, abafando os gemidos da pobre Maria Julia, que, enovelada a um canto, soluçava...

Os tres ficaram estáticos.

O Arthur permanecia cabisbaixo e absorto, emquanto o amigo íntimo, batendo-lhe no hombro, dizia:

― Não faças caso, homem! Eu conheço as mulheres! aquilo são nervos. Dá-lhe amanhã uma boa joia, e tudo passa lindamente!...

O outro encolhia os hombros desdenhoso, e olhando melancolicamente para o áro do seu monoculo, sem vidro, murmurava:

― Impagavel a Maria Julia! mas... isto não foi chic!...