Se v. exc.as, minhas leitoras, querem, por um pouco, adormecer no coração as maguas da vida real com extranhas alegrias e novas impressões, entrem comigo no salão do baile e deixem-se mergulhar na onda tumultuosa do prazer, impellidas por ideialidades que as hão-de embriagar em quanto cá dentro houverem risos e lá fora brilharem estrellas... Depois, quando desmaiarem no ceu as vagas doiradas da noite, quando a lua esconder a face de traz da cortina azul do espaço, desvanecem-se as utopias e morrem como as flôres que ha pouco rescendiam e extinguem-se como as luzes, que ha pouco illuminavam. Estamos no baile. Ouçam o arfar dos seios que languesceram na vertigem das danças e as phrases soltas e ardentes de duas almas, que se entendem. Reparen nos olhares incendidos que se cruzam, nos sorrisos meigos que se encontram, nas mãos que se apertam voluptuosamente... Sorvam a longos haustos a poesia do quadro, em quanto as imagens não descoram e se extinguem deixando apenas ligeiras sobras na téla... Reparem n'esta mulher que está sentada á entrada do salão e que apenas agora vêmos de lado. Que gracioso perfil! Que harmonia e regularidade de traços se nota á primeira vista n'esta physionomia... Um sympatico moço, para quem ha pouco ella olhava, offereceu-lhe agora o braço e convidou-a á dança, por que a orchestra entoára as primeiras notas d'uma polka. Esta mulher tem os cabellos loiros como a ingleza, os olhos languidos como os da andaluza e sabe-se apresentar com a elegancia da parisiense. Oh! Entrou agora na sala um meu amigo. Desculpem v. exc.as, minhas leitoras, mas vou sair-lhe ao encontro para rogar-lhe que me inicie sobre particularidades da biographia d'esta mulher.
— Esta mulher chama-se Branca e é, como vês, uma formosa criança de quinze annos. Augusto da Cunha, o homem com quem dança, é aos olhos do mundo um amante desvairado, na minha opinião, porém, julgo-o um poeta, que a sociedade não conhece, porque não comprehende. Ha comtudo um homem «d'ouro», um namoradiço insupportavel (eil-o que passa, repara) preferido pela familia de Branca ao obscuro escriptor, que o talento nobilita, mas que para se alimentar escreve folhetins em diversos jornaes. Branca e Augusto sentam-se. Avancemos depressa para o vão d'aquella janella e ouviremos assim, disfarçadamente, a sua conversação.
— Branca, peço-lhe que seja forte para não ser victima das «conveniencias sociaes.» O dinheiro d'este homem é uma nuvem negra, que vem empanar-nos a felicidade, que eu via transluzir de longe... Ver cahir desflôridas as nossas verdes esperanças!.. Isto ensandece e mata...
— Socegue, Augusto, socegue. A victima não hade caminhar para o holocausto, porque prefere o suicidio á sujeição ignobil... Tenha confiança em mim... «A intelligencia é sempre preferivel ao dinheiro..» Assim o creio, Augusto.
— Obrigado Branca, obrigado. As suas palavras foram balsamo para as ulceras da minha alma. Sseja forte.. sim? Depois d'esta noite pesada, d'estes estremecimentos da incerteza, hade raiar a manhã da nossa felicidade. Obrigado, Branca, obrigado. Sou contente de si, porque sabe comprehender que a «intelligencia é sempre preferivel ao dinheiro.»
N'este comenos uma senhora de quarenta annos, pouco mais ou menos, por um imperioso volver d'olhos chamou Branca para junto de si. Ella estendeu a mão ao poeta e despediram-se em silencio. Despois atravessou a sala vagarosamente e foi sentar-se pensativa, n'uma cadeira, ao pé de sua mãe.
No dia seguinte appareceu, não me lembra agora em que jornal, um folhetim intitulado ― Recordações do baile. ― Não tinha assignatura. Eu queria saber de quem eram aquellas palavras em que o author vasára todo o fogo da sua alma. Lio e só quando cheguei á ultima columna encontrei então a chave do enygma, porque m'a deram estas duas quadras.
Vem sempre lindo o sol depois de noite escura...
Auxilio sempre tem, quem chora aos pés da cruz.
Espera, minha Branca, após a desventura
O dia hade sorrir... O ceu hade ter luz...
Eu sou o gran d'areia em revolto oceano...
Do teu olhar o fogo erguer-me póde só.
O amor, o amor é vida... O mais é tudo engano,
O mais é tudo sombra... o mais é tudo pó...
― Branca! ― disse eu quando acabei ― E' ella a mulher do baile, ninguem o póde duvidar... Este poeta é com toda a certeza Augusto da Cunha. Que santa alma de poeta que se inebria nos extasís do seu amor... Oh! o amor de poeta é o abraço invizivel de duas almas irmãs... Não venha o mundo levado por desejos sensuaes motejar estes amores innocentes do alvorecer da nossa vida. Para o poeta Platão è um mytho. O mundo, que queima a sua alma no fogo da crapula, atira-se voluptuosamente aos braços da bachante e diz lhe murmura-me ao ouvido palavras d'Epicuro e de Condillac, de Cabanis e de Tracy. E o mundo adormece nos braços do materialismo sem saber que a philosophia d'Epicuro é um insulto atirado ás faces da mocidadade poeta. O amor será sempre o germen da felicidade que Deus atirára aos dezertos aridos da vida... A mulher hade ser sempre o anjo d'azas brancas, que hade espancar as trevas da vida com a luz do seu coração...
E Byron ― até o descrido Byron! ― que tinha o coração tão frio como a avalancha dos Alpes, comprehendeu a mulher assim... Senão leiam o D. Juan e fiquem a pensar algum tempo sobre o poetico typo de Haydée
A historia de Branca e Augusto não é uma simples ficção romanesca. A verdade do facto não foi adulterada pela phantazia do escriptor. A epoca, essa sim, mudei-a, porque me convinha mais. Este baile a que nós assistimos, deu-se no Porto em 1863.
Não sei porque vicissitudes e felicidades passaram os dois amantes durante um anno. Anno passado, porem, vi-os uma tarde sentados na ponte de Leça e conheci-os logo.
Perguntei e disseram-me que tinham casado. Assentei-me no banco immediato ao d'elles. Appliquei o ouvido para poder ouvir a sua conversação, mas elles fallavam baixo. Já me ia a levantar, desgostoso, quando ouvi Branca proferir estas fatidicas palavras: A intelligencia é sempre preferivel ao dinheiro. Adivinhei que fallavam do seu amor.
Porto 29 de Junho de 1865.
Alberto Pimentel.