― Ordena alguma coisa? disse a joven em voz baixa. Peço-lhe que não interrompa o somno de minha desventurada mãe.
― Parece-me que ella dorme fóra de tempo!... Mas não a perturbarei. Vim só para dizer-lhe uma coisa.
― Quer que torne a subir?
― Não é preciso. Em poucas palavras lhe explico o que me fez descer. A menina quer juntar á dehonra que lhe lega seu pae a propria deshonra?
― Que encarniçamento, meu Deus!.. Se v. exc.a tem filhas, por amor d'ellas deixe-me em paz. Nunca alguem lhes faça soffrer a milesima parte do que v. exc.a me tem feito hoje soffrer.
― Por ter uma filha é que vim dar-lhe um aviso. Espero nunca dar motivo a que haja quem a consuma por minha causa; mas, em caso de desgraça, antes queria que a atormentassem do que a seduzissem. Antes queria que ella tivesse a haver-se com um Custodio da Cunha, do que com um Amaral.
― Que diz, senhor?! Onde está a seducção? Conhece-se que o snr. Amaral é bom e generoso; teve dó da nossa desgraça e quer minoral-a. As suas palavras só indicavam compaixão.
― Pense bem. Não era uma compaixão assucarada?.. Tome bem sentido no que vou dizer-lhe. Não me importa que a menina aceite ou regeite os obsequios d'Amaral; não é minha parenta nem adherenta; mas quero abrir-lhe os olhos. Se se despinhar não seja com os olhos fechados. Vendo-a á borda d'um precipicio, é do meu dever indicar-lh'o.
― Meu Deus, meu Deus! seria possivel?!.. Mas não póde a maldade cobrir-se de tão bondosa apparencia. O snr. Custodio da Cunha engana-se. Conhece-se que o snr. Amaral é uma alma nobre e bemfazeja.
― Não lhe digo que elle seja avaro, nem incapaz de dar algum do seu ouro aos infelizes, por philantropia; confesso-lhe até que tem caracter generoso, mas o que nego é que seja capaz de fazer bem a uma rapariga sem segundas vistas, sobre tudo se ella tem olhos que lhe cairam em graça. Se a menina fosse feia, mandar-lhe-hia talvez uma avultada esmóla, mas não lhe offereceria a sua casa de Villar, que costuma ter sempre com uma linda moradora, e que, pelos modos, está agora devoluta. Porém, repito-lhe, faça o que quizer; não me importa a vida alheia. Se antes quer a deshonra do que a miseria, emquanto fôr nova e bonita....
― Pelo amor de Deus! balbuciou a menina cobrindo o rosto com as mãos, não diga mais!.. Faltava-me este espinho no meu caminho.
O pae de Maximino olhou-a alguns segundos em silencio, depois tornou a dizer:
― Posso perguntar-lhe o que tenta fazer?
― Em sendo noite irei, como já tencionava, para casa d'uma pobre viuva. A boa mulher empresta-nos a cama de seu filho, que é marinheiro e está ausente; depois Deus é que sabe o que será de nós. Os offerecimentos, que podem ser equivocos, do snr. Amaral, de certo nunca acceitaremos. Antes morreremos á mingoa, do que nos exporemos a um insulto. Respondo por mim e por minha pobre mãe.
― Muito bem. Assim quereria que minha filha se portasse, se cahisse na pobresa. E de que vive e onde mora essa viuva?
― E' costureira, e móra na rua Escura.
― Numero...
― Não sei o numero. Disse-nos que móra no centre da rua e que todos alli conhecem a costureira Carolina.
― Está bom. Como sabe aonde se ha-de recolher é quanto basta. Não a detenho mais. Desculpe tudo o que lhe disse na força da minha cólera. Adeus menina. Vejo que tem honra. Deus a proteja.
E elle deitou a mão ao chapeu e tornou a subir.
A donzella entrou no sotão. Sua mãe dormia ainda d'um somno agitado e afflictivo. Maria Isabel não sabia se devia acordal-a. Aproximou-se-lhe mansamente.
― Minha filha, murmurava ella anciada, minha filha!... Não m'a roubem!.. é a minha unica riqueza... Não tenhoa mais nada... mais nada... nada!..
― Minha boa mãe! disse Maria Isabel curvando-se para ella.
Maria Carlota acordou e olhou com vistas espantadas em volta, exclamando:
― Onde estamos?... Isto que é?...
Não se lembrava de que sonhára, nem da realidade. Depressa se recordou das suas desgraças, e abraçando sua filha disse entre soluços:
― Oh! minha querida Isabel! se Deus nos levasse ambas para si n'este momento!...
No entanto que havia feito Maximino? Pegára nas contas que seu pai lhe déra e quiz obedecer-lhe, mas não via os algarismos. Olhava a todo o momento para seu pai, que estava pendido sobre o corrimão. De repente vira-o descer. Sobresaltou-se, e correu a prostrar-se no observatorio que abandonára seu pai. E, sem se lembrar da inconveniencia da acção, fez-se espião, como seu pae o fôra primeiro[errata 1]. Quando o viu tornar a subir, afastou-se um pouco, mas não muito.
― Que fazes aqui? disse o ancião. Fizeste as contas?
O mancebo, incapaz de mentir, respondeu córando:
― Fal-as-hei em casa, meu pai. E' abominavel o que aquelle ricaço queria fazer. Seduir uma innocente e infeliz menina com a capa la beneficiencia!...
― E que importa isso ao snr.? Essa cabeça anda sempre a juros!... mas não rende nada! Aonde está uma rapariga, sobre tudo se tem bonitos olhos, ficas tu sem saberes de que freguezia és.
― Não sei em que mereço essa reprehensão. Meu pai não foi tambem avisar a infeliz da cilada que lhe preparavam?
― Isso é differente!... não sei mesmo se ela tem lindos olhos, ou, se o sei, é pelo ouvir dizer ao conhecedor do genero. Avisei-a, por conhecer que cahia por ignorante. Se não fosse isso, não me intrometteria aonde não era chamado. Pertendo só governar meus filhos. E a proposito, quero dizer-te o que é bom que saibas. Se o que fez aquelle senhor, que não é preciso nomear, o fizesses tu, cortava-te as orelhas. Entendes?
― Eu, replicou o moço com respeitosa dignidade, não tenho os costumes de...
― Basta! Já disse que não era preciso nomear ninguem: as paredes tem ouvidos.
― Mas peço-lhe, meu pae, que me não faça a injuria de me comparar nunca com um devasso endinheirado.
― Está bom, está bom! O teu porte é que me ha-de dizer com quem te hei-de comparar. E agora rua! O snr. não tem aqui nada que fazer.
O mancebo abaixou a cabeça e desceu. Já todos os curiosos, e a maior parte dos interessados, tinha saido. Maximino ao passar pela porta do sotão suspirou. Queria deter-se para ouvir o que se passava dentro, mas pareceu-lhe que seu pae estava no logar d'observação, e seguiu seu caminho sem fazer uma ligeira pausa.