V
A boa esposa

Entrou Adelaide no escriptorio de seu marido, que estava assentado á escrivaninha, só, e com ar cuidadoso. Ella assentou-se perto. Sentia immensa compaixão por aquelle homem que se esforçava por occultar pesares e receios. A boa esposa adivinhava o que o seu marido queria encobrir-lhe: sorriu-se porém para elle, recalcando no coração as dores que estava soffrendo, e lhe disse serena:

― Chamaste-me. Precisas que te ajude n'alguma coisa? Dizes que tenho lettra rasgada, e o anno passade me confias-te o teu copiador. Se tens qualquer serviço que dar-me, bem sabes...

― Sei que és uma santa: interrompeu Custodio apertando-lhe uma das mãos com força.

Olhou-a em silencio por algum tempo e acrescentou mais socegado.

― Chamei-te para conversarmos. Estava cançado d'algarismos. Quiz distrahir-me para voltar á minha tarefa.

― Fizeste bem. Não deves cançar-te demasiado. Cuidas muito pouco de ti.

Tornaram a ficar em silencio. Adelaide conhecia que seu marido queria dizer-lhe alguma coua que não ousava; mas receiava affligil-o com perguntas. Ouvia-se em cima o som do piano. A mãe de Rufina arrependia-se de ter mandado sua filha tocar. Talvez aquella expressão de alegria descontentasse seu marido, n'aquelle momento. Elle lhe disse, porém, encostando a barba á mão e encarando sua mulher sem sinal de descontentamento:

― Rufina está tocando muito bem.

― Não toca mal.

― Poderia talvez despedir-se o mestre. Não será nunca uma professora, e para se divertir parece-me que sabe quanto basta.

― De certo. Hoje mesmo mandarei pagar ao mestre as visitas que se lhe devem, dizendo-lhe que o avisarei quando nossa filha tornar a dar lições. Escusa elle e Rufina saberem já que as lições acabaram de vez.

― Seja como dizes... Tens muita descripção... Tambem... parece-me...

― Que nossa filha sabe sufficientemente o francez, não é isso? Tambem penso o mesmo. Podemos despedir o mestre. Eu e Maximino sabemos bastante para a não deixarmos esquecer do que ella aprendeu.

― Obrigado!... murmurou Custodio da Cunha.

E tornaram a ficar em silencio. Foi Adelaide, que resolutamente o interrompeu dizendo:

― Sê franco commigo. Queres indicar-me alguma economia mais?

― Ah! minha boa Adelaide! que economias podia eu lembrar, que tu não tenhas posto em pratica desde que governas casa? Se podessemos, porém, passar sem o creado... se a Rosa podesse bastar para todo o serviço de portas a dentro... mas seria muito para as forças d'ella.

― Não é, não. Ella tem boa vontade, e muita amisade por nós. Com isto faz-se muito serviço; e, como é creada antiga, eu e a Rufina teremos muito gosto em ajudal-a.

Custodio da Cunha voltou o rosto para o outro lado, e difarçadamente enxugou uma lagrima.

Adelaide sentiu-se muito sensibilisada. Procurou senhorear sua commoção, para o animar, e para que elle não pensasase que aquelles maus annuncios a impressionavam e affligiam. Passado pouco disse, deitando-lhe a mão ao braço carinhosamente, e fazendo-o voltar para ella:

― Meu rico, não nos conhecemos de pouco, e sabemos que temos força para tudo. Fallemos sem rebuço, e sem tristeza. Estás ameaçado de fallir?

― Não te nego que me vejo em grandes embaraços; mas nada me annuncia proxima quebra. Por ora o meu credito está em toda a sua força; e no commercio o credito é tudo; mas, se vier a não poder ser exacto nos meus pagamentos, como receio...

― Custodio da Cunha, escuta-me. Não sirvo para dar conselhos; mas o affecto de esposa e mãe me obriga a dizer-te o que o coração, a fraca rasão, e a experiencia me estão dictando. O negociante, que sente proxima a sua ruina, apega-se a quantas coisas lhe parecem taboas de salvação, e cada vez se afunda mais. E' muito melhor aceitar logo a taça amarga que Deus ou os homens nos apresentam, do que afastal-a para depois a bebermos com dobrado fel, sem fallar dos dias de ancias e noites de insomnias que se devem passar emquanto a duvida e receio nos baloiçam sobre o abismo. E' melhor descer lá com coragem e resignação. Deve ser menos custoso.

― Tens rasão, corajosa mulher; mas por ora não chegamos a essa extremidade.

― E oxalá que nunca cheguemos; porém se chegarmos, nada de fraquear. Não te tornarei a fallar n'isto, para te não mortificar inutilmente. Sê franco commigo. Sabe que eu sou meia philosopha. Para a vida tão curta, não vale a pena de nos atormentarmos muito. Uma jornada, por incommoda que seja, soffre-se bem, quando temos esperança de chegar a boa paragem.

― Bôa Adelaide!.. tu me consolas e animas.

― Se não tivessemos filhos... E' este o primeiro momento que lamento tel'os. Eram a minha alegria.

― Tambem a minha... mas agora como tu me aterro com a lembrança de vir a deixal-os pobres.

― Oh!.. não era isso que eu queria expressar. Aterrar-me-hia mais a idêa de deixal-os em caminho de crime ou dos vicios e da deshonra, do que sem pão, ou quasi sem elle; pois, espero em Deus, que, por mal que corra, sempre lhes ficarão algumas migalhas. São novos, trabalharão e acostumar-se-hão a viver com pouco. O que queria dizer, Custodio da Cunha, era que, se elles não existisse, poderias dispôr como quizesses do meu pequeno dote.

― Bôa Adelaide, o teu dote será sagrado. Os credores, em caso de desgraça, não ficariam ricos com elle; e não poderão nunca dizer que a sua dona malbaratou o que lhes pertencia a elles, e que depois se levantou com o que era seu. A tua economia e ordem é conhecida de todos. Já me lembrou hontem ao começar com o balanço do meu negocio, e ao receiar uma quebra, o teu pequeno dote. Será alguma coisa para te sustentar e a nossa filha. Eu e Maximino trabalharemos n'alguma coisa.

― Trabalharemos todos, e nos animaremos uns aos outros. Parece-me que ouço entrar gente... Até logo. Tem coragem.

― E tu paciencia. Não tens precisado de pouca na vida.

― Adelaide sahiu. No patamar da escada encontrou Amaral que vinha a entrar. Comprimentaram-se, e ella lhe perguntou, sorrindo, por sua esposa e filhas, pois, aquelle protector de raparigas bonitas tinha familia. Ha occasiões em que a dissimulação é virtude. Adelaide sorriu, tendo a alma assaltada de muitos receios e cuidados, para que um estranho não suspeitasse os embaraços em que se via seu marido. O credito d'um negociante, é como o d'uma donzella: a mais ligeira indiscripção o pode tornar duvidoso, e da duvida ao descredito, a distancia não é longa.

Adelaide sabia-o. Tratava tambem ella a mulher honrada e virtuosa, com o maior agrado o homem devasso, porque estava encolvido em negocios com Custodio da Cunha, e talvez viesse um dia tomar-lhe contas como credor.

― Que excellente esposa tem o sr. Custodio da Cunha!.. disse Amaral, entrando no escriptorio: E então é ainda formosa como uma rapariga!

― O que ella é, respondeu o marido de Adelaide, é uma santa.

Este elogio na bôca do homem rigido, que nunca elogiava, particularmente os seus, queria dizer muito. Amaral curvou-se em signal de assentimento; e tornou, passada uma pequena pausa:

― Sua filha toca muito bem.

― Toca o preciso para se entreter. Não ha-de passar a vida ao piano.

― Por piano lembra-me o rico piano de Ricardo d'Oliveira. Ficaria com elle, senão chegasse a grande preço.; mas oxalá que tudo vá pelo treplicado do seu valor. A's vezes succede isso com as coisas vendidas em leilão. Ha lá coisas lindas! Aquelle homem gastava como doido, ou antes como tratante. Gastava á custa da barba-longa.

― Por nosso mal. Aquelles trastes custaram-nos o nosso dinheiro, snr. Amaral; porém, ainda estimo mais ser o roubado que o ladrão.

― Ricardo d'Oliveira não foi só o culpado. Sua mulher e filha... A proposito! Que é feito d'ellas? O snr. Custodio da Cunha não soube para onde se retiraram?

― Que nos importa a nós isso?! Se fossem algumas notas ou libras, então podiamos ter interesse de saber aonde paravam.

― Mas, snr. Custodio da Cunha, desconfio da sua desapparição. Ninguem me deu noticias d'ellas! Viram-n'as sahir á noite e ninguem soube para onde se retiraram. Este misterio faz-me desconfiar de que ellas subtrahiram grandes valores, como o snr. Custodio da Cunha o dizia hontem.

― Pois eu agora estou persuadido que não levaram nada. São duas infelizes. Deixemol-as, e fallemos dos nossos negocios.

No entanto Adelaide dizia a seu filho:

― Não podemos por ora soccorrer as senhoras por quem te interessas. Deixemol-as nas mãos de Deus.

Maximino correu a mão pela testa, e foi fechar-se no seu quarto.