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O desmaio

O enterro de D. Maria Carlota, foi decente. D. Ermelinda encarregara-se de todas as despesas. Agradeceu a filha da finada este favor, que lhe pesava na alma. Não sabia porque senti antipathia por aquella senhora tão obsequiosa. As suas maneiras um tanto ridiculas e affectadas, não eram motivo para que a bondade da sua alma não fosse apreciada. Assim pensava Maria Isabel, e comtudo antes quizera dever mais esta esmola a Carolina e Francisco. O moço tambem não consentiu de mau grado que aquella fuinha, como chamava a D. Ermelinda, viesse entrometter-se onde não era chamada. Tinha embirra mais pronunciada por ella do que a donzella; era uma antipathia formal.

Carolina tornou logo depois do enterro ao seu modo de vida, e com mais azafama, para descontar o tempo perdido. Maria Isabel quiz fazer o mesmo. Não devia servir só de peso áquella boa gente. Tinha-lhe já feito tantos gastos... Era preciso, pois, trabalhar para ganhar d'alli em diante o seu pão. Os pobres não têem logar de chorar os seus defuntos. E' por isso que entre elles se embota quasi sempre a sensibilidade. O material da vida afoga o ideal. Trabalhar, e sempre trabalhar, se não querem morrer de fome. Quando morre um pae, um filho, um irmão, gritam e pranteiam muito: parece quererem epilogar todo o pesar n'aquellas horas em que o defunto está sobre terra. Enterrado elle, voltam immediatamente ao trabalho e os choros cessaram; ao menos officialmente. Não é da prache chorar senão quando espira alguem, e quando o corpo sahe de casa: o mais é luxo de sensibilidade tido por nocivo. E' preciso tratar dos vivos; os mortos já se choraram.

Maria Isabel quiz sugeitar-se ao uso d'aquelles entre que a arremeçara a desgraça; mas contava demasiado com as suas forças. Apenas Carolina sahira para ir trabalhar fóra, assentou-se perto da janella com a sua costura, mas sem dar um ponto, olhou em roda do quarto, arremeçou a costura ao chão, e ergueu-se bradando:

― Minha mãe!.. minha mãe!.. e lançou-se de braços sobre o leito que ambos tinha partilhado no seu infortunio, e em que nas ultimas tres semanas vira soffrer sua mãe, e a final exalar o ultimo suspiro.

Soluçou largo tempo a pobre menina e depois de muito chorar, teve uma sincope.

Francisco vinha vêr como ella passára desde a vespera, e trazer algum dinheiro a sua mãe.

Ao entrar na calçada do Corpo da Guarda, acercou-se-lhe um mancebo, que o esperava impaciente.

O filho de Carolina não se admirou e disse deitando a mão ao chapeu:

― Snr. Maximino, d'aqui a pouco vá esperar-me á Ribeira.

― Estou muito cuidadoso... A infeliz menina que proteges deve estar muito afflicta.

― Está muito. Hontem, quando a deixei, fazia cortar o coração; e não tem quem lhe dê consolações!.. Eu, e a senhora mãe, sômos pessoas muito grosseiras para podermos dar-lhe animo. Vamos indo lá para casa. Hoje sempre o snr. Maximino entra. Saberá dizer-lhe coisas tão bonitas, e a consolará. Está tão magrinha e tão branca... parece uma imagem de cêra.

― Não, bom Francisco, não devo procurar essa menina. Esperarei na escada, que subas e que tornes a descer, para me dizeres como está hoje. Fazes-me isto?

― Farei, sem custo. Voltarei logo a dizer-lhe como vai curtindo as suas tristesas. Mas, ainda que eu seja confiado, diga-me cá: o snr. Maximino gosta ou não gosta da snr.a D. Mariquinhas? Se gosta, como cá a pessoa cuida, porque não a vai vêr? Quem não apparece esquece, diz a snr.a mãe.

― Ah! meu rico Francisco, eu não tenho que fazer esquecer, ou lembrar. Aquella infeliz menina viu-me só uma vez, e se se lembrar de mim, será com desgosto e susto: não póde amar-me.

― Appareça-lhe, e deixe o mais por minha conta.

― Não devo. Meu pae nunca consentiria que... nos amassemos. E tambem não sei de que genero é a sympathia que me attrahe para ella. Sinto immensa compaixão pela vêr tão infeliz, e desejava-lhe dias de ventura.

― Se não é mais que isso... Também cá a pessoa lhe deseja o mesmo.

Tinham chegado á porta da casa de Carolina.

― Entre, snr. Maximino, não fique cá fóra a apanhar o vento sem navegar. Não sei para que Deus ha-de desperdiçar este vento fresco na terra, sendo ás vezes tão preciso no mar alto.

― Não só entro hoje, mas subo ao primeiro patamar, para não teres, meu bom Francisco, o trabalho de desceres tanto; porque de certo te demorarás para estares algum tempo com tua mãe, e deves demorar-te.

O marinheiro sorriu maliciosamente, e replicou subindo:

― Suba ao segundo; mas cautella, não se esbarre.

― E foi subindo os degraus dois a dois, dizendo comsigo:

― Não o confessa, mas está preso com amarra de bom canhamo. Amanhã, trepará a gavea.

Abriu a porta do pobre albergue chamando por sua mãe. Ninguem respondeu.

― Sahiriam ambas?! disse entre dentes, mas deixaram a porta aberta... e a snr.a D. Mariquinhas de certo não sahia já hoje.

Chamou mais alto. Nada de resposta. Olhou com inquietação para todos os lados. Maximino começou tambem a ssustar-se; subiu mais alguns degraus, e parou um breve instante. Fel'o, porém, subir, d'um salto o resto da escada á voz de Francisco, que bradava:

― Acuda, senhor Maximino! A sr.a D. Mariquinhas está por morta!

― Está morta?! gritou o filho de Custodio da Cunha, precipitando-se para o leito em que jazia Maria Isabel, morta ao abandono!!..

― Sinto-lhe bater as fontes, disse o marinheiro. Isto ha-de ser flato. Viu-se aqui sósinha e triste, e perdeu os espiritos. Bem disse á snr.a mãe que não sahisse hoje; mas não pára no ancoradouro.

― Está tão fria!...

― Tem a testa muito quente. Não está morta. Desapertemol-a e demos-lhe umas esfregações ás pernas.

― Não! bradou Maximino, detendo as mãos do marinheiro, e fazendo-se rubro.

― Pois desaperte-a v.s.a Eu o que fazia, era por bem.

― Não, Francisco. Nenhum de nós fará isso.

― Mas que mal ha n'isso? Olhe que é remedio muito prestadio. Quando á snr.a mãe lhe deu uma vez um faniquito por me ver de repente, julgando-me já no bucho d'alguma balèa, cortei-lhe com uma navalha fitas e cordões, tirei-lhe as meias e puchei-lhe nas barrigas das pernas com coragem, e ella abriu logo os olhos. E' verdade que depois me ralhou muito pelos estragos que lhe fiz na roupa e na pelle; mas podiamso agora fazer isso com mais amôr.

Maximino, que esfregava as mãos da desmaiada, e lh'as bafejava para aquecel-as, respondeu:

― O que se póde fazer a uma mãe, não é permittido pôl-o em pratica com uma menina, que, se estivesse em si, o não permittiria.

― Com a breca!. E' melhor deixal-a esticar?! Se eu entendo a affeição do snr. Maximino que me enforquem na verga do mastro grande.

― Ajuda-me a leval-a para perto da janella. Agora eu sustento-a só. Faze favor d'ir buscar um copo d'agua.

― Copo não será facil, mas agua trago-lh'a n'um éste.

Tinham-n'a assentado, Maximino lhe amparava a cabeça com um braço, chegando-a a si. Pegava-lhe, ora n'uma, ora n'outra mão, esfregava-a pelo rosto e lhe bafejava. Francisco, da porta que dava para a cosinha, onde ia buscar agua, voltou a cabeça e sorriu malicioso. Foi muito de vagar lavar uma caneca e enchel-a d'agua, dizendo comsigo:

― Morre por ella! Deixal-o ao menos bafejar-lhe as mãos á vontade. Mas esta gente fidalga tem coisas!.. Porque não quereria elle ver-lhe as pernas e cortar-lhe a cordagem?

No entanto a demora de Francisco, fez que o bafejo em uma das mãos de Maria Isabel se tornasse um longo beijo. Bem sabia Maximino que isto tambem não seria permittido pela donzella, mas não esteve em seu poder reter esta caricia, e grande exforço fazia em não beijar aquelle rosto tão lindo e tão pallido, junto a si. Francisco chegou com agua. Deitaram-lhe algumas gôtas na bôca da menina, que parecia respirar com mais alguma força. Depois o marinheiro, sem prevenir o outro moço, tomou um grande bochecho d'agua e o esparziu com força no rosto pallido da joven. Maximino estremeceu como ella. Sentiu uma sensação desagradavel que tinha suas particulas de ciume. Aquelle homem lançára sobre Maria Isabel, agua que tomára na bôca! Apressou-se a limpar cara e pescoço da menina, que vinha a si.

― Alagaste-a, disse elle um tanto zangado; e isso póde fazer-lhe mal.

― Fez-lhe muito bem. Olhe, abre os ramalhudos olhos! Senhora D. Mariquinhas... não me conhece? Sou Francisco. E aqui está tambem o snr. Maximino. Estavamos ambos estarrecidos por vêrmos a v. s.a assim como morta.

Ella soltou um doloroso suspiro, levou a mão á testa e balbuciou:

― Não tornarei a vêr minha mãe... Ella me amava tanto... Já não tenho ninguem que me ame!..

― Maximino, impensadamente, apertou-a ao coração com o braço que a sustinha, estreitou com affecto a mão que aquecia, e levou-as aos labios. Ella estremeceu, voltou os olhos para o mancebo, córou e buscou soltar-se-lhe dos braços ao tempo que o marinheiro dizia:

― Ninguem a ama!! Então aqui o snr. Maximino, e cá a pessoa, não somos gente? Mas não me dirá o que é feito da snr.a mãe?

― Foi trabalhar para casa do snr. Fonseca: ― respondeu a filha de Ricardo d'Oliveira, já livre de Maximino, e procurando com mão incerta remediar algum desarranjo dos seus vestidos.

― Não está má essa! Deixal-a aqui sósinha um dia todo! Vou chamal-a. Vou, e venho num pé só. O snr. MAximino fica a fazer-lhe companhia.

― Se a snr.a D. Maria Isabel consente... ― balbuciou o outro mancebo.

― Consente; pois, porque não havia de consentir? E eu demoro-me pouco. O snr. Fonseca não móra longe.

E elle sahiu pensando:

― Agora, ou queira ou não, ha-de dizer-lhe que lhe quer bem. Sou muito amigo d'elle; mas aquelle acobardamento n'um homem, faz rir!.. Não querer vêr as pernas á pobre menina!.. Assim como que tinha medo!.. Pois ellas ao que os pés mostram, não hão-de ser de metter medo. E que o vento nos escaceie no mar alto, se eu tinha mau sentido. Queria só trazel-a a reboque para a vida. Mas se uma das minhas affeiçoadas estivesse assim, sem mecher com pé nem mão, não desgostaria de ver se tinha as gambias tortas.