XXXIIII

Assalto e polemica

Ao chegarem á estrada avistaram os dois cavalheiros os fugitivos em grande distancia.

― Aposto, exclamou o criado, que aquelles são os que buscamos.

― Com mil demonios! replicou o amo, por alli ha casas, e o negocio não é para publicidade.

― Estes rusticos enganam-se bem. Deixe-me v. exc.a com elles. Caminhemos mais rapidos.

― Ella vai com o marujo que tem arte magica. Aquelle demonio anda-me sempre desarranjando os planos mais bem combinados.

― Então será o mesmo que já a roubou de Villar?

― Pois qual ha-de ser? Creio que a maruja não segue em massa os preceitos de D. Quixote. Este ao menos caminha a pé.

Entraram n'uma casa. Podemos galopar. Estão na ratoeira.

Chegaram em breve á casinha em que se recolheram os fugitivos. Damião pôz pé em terra e bateu á porta com arrogancia.

― Quem é?! disse de dentro a voz estridente d'uma mulher.

― Abra da parte do senhor barão que é tutor da senhora que aqui se recolheu.

Os titulos são desconhecidos nas aldeias rusticas. Se n'alguma se estabelece um titular bemfazejo, é amado; se dispotico, é temido; mas nem por isso serão respeitados outros que por acaso alli transitem. A dona da casa pois, mulher inteiramente rustica apezar de não viver uma legua longe do Porto, se ouvira fallar em barões, não déra a isso importancia e não sabia o que fossem; mas tinha ouvido com muita atenção um sermão do Calvario em que muita vez metteu o prégador o santo barão Nicodemus e o santo barão José D'Arimatêa, e como era de ideias muito curtas, confundiu tudo, e respondeu:

― Ainda que o santo barão que cruxificou a Nosso Senhor Jesus Christo cá viesse, não lhe abria a porta. Vão com Nossa Senhora e as almas santas bemditas.

― Ella que diz? ― perguntou Amaral espantado.

― Se não está zombando comnosco ― respondeu o lacaio ― é tola. Não vá ser manha para ganhar tempo.... Como vossa excellencia está a cavallo, queira olhar por cima da parede, não vão os fugitivos safarem-se pelos campos fóra.

― Nada!.. Os campos são descobertos. Não poderão fugir sem que eu veja.

Damião bateu com mais força ainda, bradando:

― Abra, senão vai a porta dentro.

― E eu barrego aqui d'el-rei, e hei-de ter quem me despique.

― Entregue-nos a menina que pertence a meu amo, e não lhe succederá mal; senão... depois se arrependerá.

― Eu não sei se pertence, nem se não pertence. Vá fallar ó sinhor rigidor e antão fallaremos.

Damião metteu os hombros á porta e arrombou-a.

A mulher bradou em voz de falsete:

― Aqui d'el-rei ladrões!.. aqui d'el-rei casa arrombada!..

Assustou-se Amaral. Não queria motim, nem que accudisse alguem que o conhecesse. Saltou do cavallo, deu-o a guardar a um rapaz a quem os gritos attrahira e entrou na casa dizendo á mulher:

Não se agonie... Não faça barulho. Tome lá para manar compôr a porta ― e deu-lhe uma libra. A mulher nunca tinha visto na sua mão dinheiro em oiro. Ficou com a bôcca meia aberta. Nem posses tinha para se alegrar. A furia tinha-lhe passado, e achava muito lindo o barão, fosse ou não dos que fallára o pregador.

― Entregue-me a menina a quem sirvo de pae ― tornou Amaral, mettendo outra libra na mão da mulher. Ella abriu mais a bôcca, e ficou como uma estatua.

Francisco estava á porta, que dava mara a casita, com um machado em punho e disse:

― Aquelle que vier á abordagem navega logo para a eternidade.

Damião quiz lançar-se sobre elle. Amaral o deteve, Maria Isabel, tendo ouvido a voz de Francisco, correu e lhe bradou:

― Pelo amor de Deus!... veja o que faz. Lembre-se que é o arrimo de sua mãe.

Alguns homens de sachola ao hombro entraram. Andavam perto nos campos e accudiram aos gritos da mulher.

― Aqui está o sinhor rigidor, ― disse a dona da casa (contente de lançar de si a responsabilidade) elle agora é que ha-de dizer como isto ha-de ser.

Amaral dirijiu-se ao homem que vinha na frente, dizendo:

― Senho regedor, eu sou um cavalheiro a quem acaba de fugir a minha pupila. Ella receia que eu a faça infeliz, mas é porque não conhece o meu coração: amo-a como um pae terno e amante, e só para a fazer feliz é que a quero guardar e proteger. Entregue-m'a, senhor regedor. Eu a tratarei como a filha mais querida. Convença-a a seguir-me... obrigue-a, se preciso fôr. Cumpra o seu dever, senhor regedor. A carta constitucional, de que o senhor é magistrado, manda que se entreguem as filhas a seus paes.

E elle sahiu a esperar o exito da sua falla. Tinha esgotado a sua logica, e envergonhava-se de estar mintindo diante de Maria Isabel. Disse baixo a Damião antes de sahir que o substituisse, e sustentasse os seus direitos. Damião podia fallar no valimento de seu amo, e no mal que iria a quem se opozesse á sua vontade; e é o que fez o astuto criado com toda a audacia e descaramento. Fez uma parlenda que encheu de susto os camponeos e de indignação Maria Isabel, e que fez rir sardonico Francisco, que se conservava ao lado da menina com o machado em punho.

― O' senhora ― disse o regedor á donzella ― venha com seu pae á cortezia. Isso, como lá diz o outro, não é bonito andar por esse mundo como uma madanella. Seu paizinho não lhe fará mal; tem cara de bô home.

― Esse senhor mentiu; não me é nada ― disse Maria Isabel. Este luto que trago é por meu pae e minha mãe. Sou orphã, estou protegida pelo juiz dos orphãos. Se me fazem alguma violencia, queixar-me-hei de quem m'a fizer.

O regedor ficou atordoado.

Damião tornou a fallar. A sua eloquencia, ao alcance dos campesinos, tornou a fazer pender a balança para aquelle lado. Adiantou-se o regedor para pegar no braço da donzella, dizendo:

— Em cortezia, venha com aquelle que é, como lá diz o outro, o mesmo que seu pae, porque faz as suas vezes, como diz a carta constitucional.

— Alto: gritou Francisco erguendo o machado. Quem pozer a mão na senhora D. Mariquinhas fica sem braço, ou sem cabeça. Este machado nem conhece cartas nem meias cartas, sejam constitucionaes sejam o diabo.

— Não se sabe que eu sou o regedor? O maioral da terra?

— Ainda que seja o diabo corto-lhe o leme se dá mais um passo; e olhe que barco sem leme não navega.

— Está preso á voz d'el-rei.

— Qual estou, nem qual cabaça! Depois de eu cortar mastros e mastareus me prenderão.

— Senhor Francisco, exclamou a menina assustada, pelo amôr de Deus não mate ninguem, nem se arrisque a ser preso. Deixe-me fallar com o snr. regedor.

— Falle a senhora: disse o regedor que já não sabia o que havia de fazer. Maria Isabel fallou, mas o seu discurso nada conseguir senão ganhar tempo. Damião estava á mira para se lançar sobre o marujo e desarmal-o; mas este vigilante e activo, não dava mostras de poder ser surpreendido.

Em cortezia, replicou o regedor ao discurso da donzella, a senhora vá para casa do seu tutor; e o senhor marinheiro abaixe o seu machado, e vá para o seu navio. E' do meu dever; como disse cá este fidalgo, de manter a carta constitucional.

Mantenha as cartas, replicou Francisco, e mais o diabo. Perdõe, senhora D. Mariquinhas... Estes labrostes do mato fazem perder a paciencia a um christão baptisado.

N'este comenos ouviu-se tropiar cavallos, e logo depois entraram tres mancebos na pequena casa, já bastante cheia.

― Que é isto?!... ― exclamou Maximino, que era um dos tres. Os outros eram Alfredo e outro amigo dos primeiros.

― Chega reforso á corveta! disse Francisco abaixando o machado.

O regedor contente por vêr quem o ajudasse a manter a carta constitucional, contou a Maximino o que havia.

Enganam o snr. regedor, redarguiu Maximino. Esse barão (como lhe chama) não é tutor d'aquella menina. Eu e os meus amigos estamos promptos a depôr por escripto a verdade. Esta senhora, (elle se adiantou para Maria Isabel cortejando-a,) é minha noiva e foi tirada por engano da casa de meus pais onde estava.

― Chamem o senhor barão. Vejamos o que retruca.

O senhor barão tinha desapparecido. Damião tambem se escapára por entre o povo que se havia agglomerado á porta. O regedor os procurou algum tempo.

― Não se cansem, disse Maximino, eu bem vi fugir para o lado opposto áquelle d'onde vinhamos um cavalleiro que reconheci pelo raptor da snr.a D. Maria Isabel.

Depois Maximino se acercou da donzella, que estava perturbada e vergonhosa, apertou-lhe a mão e lhe disse que seus pais a esperavam anciosos; e voltando-se lançou-se nos braços de Francisco e lhe deu os mais vivos agradecomentos, e disse-lhe baixo: És duas vezes meu salvador.

― Snr. Maximino, disse o marujo, veja como ha de ser isto. Precisamos de barco que nos tire d'estas paragens. A snr.a D. Mariquinhas não póde dar mais um passo.

Alfredo foi mandar aproximar uma carroagem que trouxemos por prevenção. O teu bilhete de hontem é que nos fez hoje correr n'esta direção. És um optimo e intelligente moço.

D'alli a pouco iam todos caminho do Porto.