por
Maria Adelaide Fernandes Prata
Sentado a meditar sobre um rochedo,
Inda joven o Bardo suspirava,
Macilentas as faces e encovados
Os bellos olhos tinha que n'outr'ora
Revelaram d'amor paixão mui terna.
De repente expressão feroz, medonha,
Ao rosto lhe assomou tornando-o rubro
E momentos após, sorriso ironico,
Sorriso indecifravel e terrivel
Que d'alma traduzia o fel, angustia,
Nos labios resequidos se mostrava!
Ergue-se o mal-fadado e frias gotas
Da fronte lhe dimanam incendida,
Vagueando ora aqui, alli errante,
A descançar o forçam dor, fadiga!
D'um passado feliz reminiscencias,
O rosto lhe humedecem d'agro pranto;
Tomando então a lyra luctuosa,
Aos ventos solta em vão as queixas suas.
Ah! bem cedo exp'rimentei
D'este mundo o vil engano;
Bem cedo traguei o fel
Das paixões no desengano!..
Sim; nasci para o martyrio,
Para chorar e soffrer,
E sem 'sp'rança de conforto,
Talvez sceptico morrer!..
A fé, venturas, amor,
O mundo roubou d'est'alma,
Tirou-lhe os gozos da vida
E até da gloria a palma!..
Eu era bom, innocente,
Cria nos homens e em Deus,
Cria em amor e ventura
E lhes dava affectos meus;
Mas dos homens a maldade,
O egoismo, a traição,
Accenderam da vingança
O fogo no coração!
Pediu um crime, outro crime;
Paguei affronta co' affronta
E cravei n'um peito indino,
D'um punhal aguda ponta!..
Horrida sombra me segue!
Sombra de perseguição;
Quer commigo repartir
Eterna condemnação!..
Vai, ó reproba, cumprir
N'esse inferno a maldição
Que te deitou, moribundo,
Um misero n'afflição!..
Ah! de meus progenitores
Foste a desgraça, o tormento;
Vai! e que entre os condemnados
Não tenhas paz um momento!
Tu foste da minha Olinda
O cruel, vil roubador;
Tiraste-me mais que a vida
Levando-me o meu amor!..
Assassinaste meu pae!
Minha mãe morreu de dor!
E para os vingar, ousado,
Fugi longe ao teu furor!
Familia, amor, riquezas,
Tudo, cruel, me usurpaste;
Quanto à vida me prendia,
Homem traidor, me roubaste!
Disfarçado em pobre monge
Os passos teus vigiava,
E da vingança o momento
Opportuno eu esperava.
Esse instante alfim chegou;
O disfarce meu deixei,
E qual tigre enfurecido,
Minha raiva em ti cevei!
Logo após fugi dos homens,
Deixando um mundo perverso,
E só, entre a natureza,
Vivo em magoas submerso!..
E n'um virente cedro magestoso,
O joven triste, a lyra pendurou,
E de gemer cançado, sobre a relva,
Ao somno por instantes s'entregou.
E nas feições do Bardo adormecido
Notava-se alma paz, meigo sorriso;
Era sonho fagueiro, mentiroso
Que a mente lhe encantava d'improviso.
Levanta-se dormindo, e contra o seio,
Imagina estreitar alguem que amou;
Tal impressão sentiu mesmo sonhando
Que exultando d'amor, logo acordou.
Na solidão, alem os olhos lança.
A visão já buscando, o amor, a vida;
Quer ao sonho dar fé, quer illudir-se
E foi n'alma uma esp'rança inda nutrida.
Oh! quem morrèra sonhando
Um sonho tão venturoso;
Embora fosse illusão,
Mas era um sonhar ditoso!...
Só idéas pavorosas,
Lembranças amarguradas,
Ha muito que nem dormindo
Sonhava glorias passadas!
Ah! bem hajas sonho amigo
Que assim vieste afagar
Quem nas solidões da terra
Vive só para chorar!
Sonhei-a triste nos bosques,
Solitaria a suspirar;
Tão pallida, emmagrecida,
Como a quizera encontrar:
Qual a rosa delicada
Que em aureo vaso nasceu,
Mudada para o deserto
Emmurchece, a côr perdeu.
Lindas, galas que na corte
Suas graças realçaram,
Em negro manto, sem arte,
Nas solidões se mudaram!
Como assim era formosa!
Como est'alma inda encantou!
Cercada outr'ora de fausto
Mais amor não lhe inspirou!...
Se dos seus lindos cabellos
A côr tivesse mudado,
Se a saudade a envelhecera,
Muito mais a houvera amado!
Mas as faces macilentas,
Os olhos já encovados,
Traduzem do coração
Os dias amargurados!
Brando somno, em tuas azas
Acolhe o triste amador,
Deixa que morra sonhando
Nos braços do seu amor!
Meigos sonhos feiticeiros,
Dai-me de novo a visão,
Dizei-me onde Olinda vive,
E se por mim tem paixão;
Dizei-me se de saudades
Ella vive, a suspirar,
Ou se já no ceu fulgura
Dos puros anjos a par;
Ah! dizei se outro mortal
Tambem foi por ella amado,
Ou se, fiel aos seus votos,
Jámais me tem olvidado.
Era na hora em que o sol formosos raios
No seio do oceano hia esconder;
Era silencio tudo, só se via
Nas solidões o Bardo a percorrer;
E no sonho feliz inda scismando,
Longo tempo ao acaso caminhou,
E no mais ermo sitio das montanhas
Co'um venerando er'mita deparou
Curvado tinha o suplice joelho,
Tinha os olhos no céo, em oração,
Com lagrimas e ais a Deus pedindo
D'enormes crimes paternal perdão.
Cilicio duro a cinta lhe cingia,
Era a terra seu leito, e recostava
Em riga pedra a fronte calva e nua,
Eram os céos o tecto que o guardava!
Comia duro pão, mal saboroso
E no ribeiro enchia a bilha d'agua
Para a sede febril refrigerar
Da penitencia em meio d'essa fragua!
D'estio o sol em aridos rochedos,
D'inverno a tempestade desabrida,
Acolher-se não fazem ao er'mita,
A mesquinha choupana, a uma guarida!
Finda a longa oração e quer erguer-se;
Mas em vão o tentou mais que uma vez;
As forças já exhaustas lhes fallecem,
Do moribundo tinha a pallidez.
No coração do Bardo não entrára
Ha muito de piedade um sentimento;
Mas ao ver espectac'lo tão pungente,
Sentiu enternecer-se n'um momento;
E junto ao ancião presta-lhe auxilio,
Ajudando-o na rocha a recostar
E o velho agradecido lhe pediu
Para a seu lado um pouco descançar.
Mancebo, que revez, que caso estranho,
A um ermo te guiou entre os abrolhos?!
Dous lustros são passados, sem jámais
Aqui mortal algum verem meus olhos!
Ah! talvez te guiasse a providencia,
Para affagares o ultimo momento
D'aquelle que mer'ceu por crime enorme,
Vida d'expiação e de tormento!..
Eis do mortal o instante mais solemne!...
Da eternidade á beira eis-me chegado!...
Sinto necessidade de conforto,
D'ouvir de puros labios innocentes/
Dizer-me: eu te perdo-o ah! morre em paz!
Os ministros de Deus, d'aqui são longe;
Que importa? pódes tu tambem como elles,
D'um peccador ouvir a confissão;
Talvez inda mais pura essa tu'alma
op Possa em nome do céo já absolver-me...
E não fujas ó joven quando ouvires do
De meus erimes a historia pavorosa!
Lembre-te que a oração, jejuns, cilicios,
A Deus tenham talvez apaziguado...
E nos olhos do bardo duas lagrimas
Brilharam ao clarão da argentia lua,
E commovido já o er'mita alfaga,
Entre as mãos l'estreitando a dextra sua.
Ancião, mitiga a dòr narrando a historia,
D'essa vida d'outr'ora criminosa;
Não me fará tremer; tenho provado
Dos homens a maldade, o vil engano!
Victima d'ambições e de seus crimes,
Vive vida de magoa n'este exilio;
Odeio-os e seu halito pestifero
A seu lado aspirar jamais eu quere!
E que terá no mundo que buscar
Quem parentes, amor, patria perdeu ?
Joven, se és desgraçado, melhor pódes
Tambem d'um desgraçado apiedar-te!
A vida se me esvae!... ouve-me, ó filho:
― Era em tempo, em que os francos opprimidos,
Gemiam sem fruirem liberdade;
Mas eu, senhor feudal, fazia parte
D'oppressores que a patria 'scravisavam;
De nobresa ostentando um futil titulo
E do rei o favor gosando ufano,
Orgulhoso, egoista, não soffria
Que fosse mais que eu, outro exaltado:
Votei odio, inveja ao cavalheiro
Mais nobre, denodado e virtuoso,
Tecendo-lhe a mais vil, atroz calumnia!
E do rei a má indole accendendo,
Contra o triste o tornei enfurecido:
Foi preso o desgraçado e condemnado
A' existencia fruir longe da patria,
Sendo-lhe bens, thesouros confiscados!
Mas est'alma feroz, implacavel,
Contente inda não 'stava co'a má sorte
Que sobre esse innocente já pesava
E temendo que um dia a sã verdade,
Altiva se mostrasse contra mim,
Uma idéa infernal passou na mente
Que o coração perverso não baniu,
E das trevas o Genio vendo entrada.
N'um 'spirito d'inveja como o d'elle,
Armou-me d'um punhal a dextra infame,
E a vida, que tirar a Deus só cabe,
Eu a extingui ao triste, sem piedade!...
Que! mancebo! recuas aterrado?!...
Meus crimes inda aqui não fazem termo!...
E o Bardo empallidece, treme, fixa
O velho que elle afasta horrorisado
E não sabe se dorme, vela, ou sonha,
Ou se vive sem tino, delirado..
Ficou do mal-faldado um gentil filho,
Que herdou do nobre pae altas virtudes,
Que de saudade em breve viu finar-se
A mãe mais carinhosa e desgraçada,
Da qual assassinei o esposo caro!...
(Triste do que encetou do crime a estrada
Que ao crime se habitua e cala n'alma
Essa voz da consciencia que não ouve!)
Ao mancebo infeliz nova desgraça
A minha crueldade preparava!
D'um cortesão a filha bella e rica
Para esposa lhe estava destinada;
Mas eu que por orgulho a ambicionava,
O monarcha empenhei para obtel-a
E o cortezão gostoso cumpriu logo
Desejos que o seu rei manifestava.
Chama a candida filha e faz saber-lhe
Do sob'rano os projectos vantajosos...
Basta! sombra maldita! não prosigas,
Não mais surjas do inferno a perseguir-me!
Assás da vida minha sei a historia,
Não venhas do sepulchro repetir-m'a,
Não venhas aggravar profunda chaga
Que incuravel abriste na minh'alma!..
Ah! foge sombra errante, pavorosa,
D'esse que assassinou, marquez infame!
Meu desditoso pae, o conde Alfredo!...
E convulso o ancião ao céo os olhos
Levanta, erguendo as mãos agradecido
E eurvando-se, as plantas quer beijar
Do Bardo mui irado, enfurecido.
Piedade, Sabino! ah! piedade
Para o homem contricto e desgraçado!
Piedade ao peceador que vida austéra
Ha longo tempo busca n'estes ermos!
Fui teu perseguidor, fui teu flagello,i
Roubei-te o que mais caro te era á vida!
Emmureheci dos annos teus a flôr,
Quebrei o teu encanto escurecendo
A estrella que ditosa te sorria!
Teu triste coração dilacerei,
Roubando-lhe os affectos mais queridos,
Deixando em seu logar o fel d'angustial
Ah! não fujas, Sabino! ao moribundo
O teu perdão vem dar-lhe generoso!
Vem; não é sombra vã que t'o supplica;
E' o homem que afastado longo tempo
Dos caminhos do céo, errava longe!...
Aquelle que peccou, porque era um homem!..
Escravo das paixões, fragil mortal,
No bulicio do mundo, entre grandezas,
Sem outro guia mais que a vil lisonja
Exercida por vis aduladores
Que o peito juvenil lhe corromperam,
Nas orgias seu ouro descipando,
Conseguindo banir d'esta minh'alma
Os germens da virtude, honra, deveres!
Dotado de valor, brios, coragem,
Cumpria-te vingar tão vis affrontas
E no dia aprasado em que devia
Ante as aras Olinda desposar-me,
Este seio feriste criminoso,
Deixando-o mal ferido, mas não tanto
Que á merecida morte succumbisse.
Ah! pensaste talvez que esse consorcio
Se tinha consummado n'esse dia!..
Quando a febre e delirio me deixaram,
Teu destino indaguei; porém debalde:
Anhelava prostrar-me ás tuas plantas,
O teu perdão humilde supplicar-te,
Dizer-te: ― esse marquez feroz, altivo,
Mais que a sombra não é, do que já fora;
E que d'Olinda á mão renunciavam
Para ver-te a seu lado venturoso; p
Mas já perdida a esp'rança d'encontrar-te,
Um mundo abandonei que me perdèra...
Onde me fiz perverso, onde deixára
Um puro coração, honra e virtude!..
Approuve ao céo benigno que eu vivesse
Para expiar os meus crimes enormes!
Recordar um passado só d'horrores,
Supportando o remorso despiedado,
O filho inflexivel da consciencia
Que injustiças não cala, não perdoa!..
Vivi para soffrer, qual condemnado!..
Agora, o coração diz-me que o céo,
Do penitente humilde se apiedára[errata 1]
Essa sombra, que outr'ora, ensanguentada,
Terrivel me seguia em toda a parte,
Cessou de me apparecer e apaziguada,
Talvez já me perdoa generosa...
O' Providencia! quanto eu te bem digo!
Sim; Deus é sempre bom, grande e potente!..
Não 'squece o peccador n'essa hora estrema!
E a mim te conduziu, pendido ao tumulo,
Qual anjo, o meu perdão annunciando!
Ah! eu tive na infancia santas crenças,
Amava o Creador dos céos, do mundo,
Tinha fé que o meu anjo me guardava
E em sonhos eu o via muitas vezes
Emquanto que era joven, virtuoso;
Mas logo na minh'alma a crueldade
Crescia mais e mais que do meu anjo,
Em breve m'esqueci, qual renegado!
Aile elle espavorido abandonou-me
Na carreira de crimes horrorosos,
Té que visse indomavel perseguir-me[errata 2]
O remorso cruel, de noite e dia!
Talvez o meu martyrio o apiedasse
Que em sonhos me sorriu já, como outr'ora
Quando dormia, a noite derradeira;
O céo em meu favor elle chamou
E a minha converção foi obra sua.
Sabino!.. o teu perdão... eu desfalleço...
Perdoa! como Christo perdoava
As injurias mais vis e atroz tormento!
Teu coração verás tranquillisar-se,
D'alma paz as venturas desfructando!...
E no seio do Bardo começava
Do céo divina luz a scintillar,
Banindo-lhe o rancor, odio, vingança,
Compassivo o movia a perdoar.
E que destino déste à minha Olinda?
Que fizeste cruel da malfadada?..
Ah! do seu coração inteira posse,
Na terra eu só gosava e ninguem mais!
Era a luz d'esta vida, o meu amparo,
Era o meu universo, o céo, a gloria!
Sem ella fiquei só, qual massa inerte,
Ao acaso, no mundo vagueando!..
A sorte como tu d'Olinda ignoro:
Quando do pae ouviu ordens indinas,
Quando por elle viu tão mal cumprida
A palavra d'um nobre cavalleiro
E d'honra fementidas as promessas,
Representa-lhe humilde e com brandura
A infamia a que seu nome alto s'espunha;
Porém o pae irado e inflexivel,
A donzella repete ordens crucis,
Forçando-a a ob'decer, seguir seu mando.
De noiva ricas galas the prepára
E adereços luzidos d'alto preço;
Com arte e gosto adornam-se aureas sallas
Preparam-se festins, grandes fulgares;
Na capella os brandões já refulgiam,
E de Deus o ministro, ante os altares,
O momento aguardava de formar
P'hymeneo, a sagrado laço puro;
Porém, faltava Olinda, onde está ella?!
Em vão na estancia sua a buscam todos,
Buscaram-na de balde em toda a parte!..
Então a compaixão, remorso e magoas
Senti no coração a yez primeira
E em lagrimas e ais me arrependia
Dos males que perverso originára!
O que então se passon dentro em minh'alma,
Difinil-o não sei!,, só o sentia...
Horrores que o inferno aos condemnados,
Terrivel the prepára enfurecido,
No peito angustiado eu os soffria!...
Livre-te o céo, ó Bardo de sentires
O remorso cruel, o meu martyrio!...
E já d'aurora as lagrimas se uniam
A's do velho contricto, moribundo
Que do Bardo o perdão só anhelava,
Por derradeira graça cá no mundo.
O mancebo se prostra e commovido
Ergue os olhos ao céo, vai perdoar,
Não sente já furor, odio, vingança
E junto do eremita foi orar.
Ah! que pura alegria eu sinto, ó filho!
Dos labios teus o meu perdão ouvindo!
Cumpridos são, Sabino, os meus desejos,
Da terra nada mais ambiciono!
Mensageiro de paz, fizeste n'alma
De Paraiso a esp'rança renascer;
Os passos teus aqui guiou o Eterno,
Para me assegurar da gloria a palma!..
O' Deus incomprehensive!! teus arcanos,
Não é dado aos mortaes fracos sondarem!..
Sabino. . Adeus... eu sinto já da vida
Abandonar-me e extinguir-se o sopro!..
Ah! roga a Deus por mim, que lá nos céus,
Attendidas serão as preces tuas...
E o grande peccador tão criminoso,
Após austéra vida penitente,
Qual justo feneceu, arrependido,
Tendo o seu Deus, a fé sempre na mente,
Ah! o Bardo scismando pensa ainda
Que um sonho fora tudo, uma illusão;
E como acreditar que o seu tyranno
Houvesse d'estreitar ao coração!..
Como ver-lhe pendida a fronte exhausta
Sobre o peito que outr'ora enfurecido,
Contra elle nutriu odio, vingança!
E dar-lhe hoje o perdão, enternecido!
Curva-se em oração n'esse logar,
Pelas lagrimas já santificado
E pede a Deus, do er'mita a contrição,
Depois de ter ao céo, por elle orado;
E cava a sepultura a quem a sua,
Na idade juvenil cavou sem dó,
Olha por derradeiro o corpo exangue
Que em breve só será do nada o pó!..
Quer depois arvorar na pobre campa
A efigie d'essa cruz da redempção;
Mas não vê nas montanhas de que fórme,
Venerando signal d'agra paixão;
Atravessa desertos, desce montes,
Transpõe formoso rio cristalino
E além n'um denso bosque verdejante,
Cruz singela formou d'um lenho fino.
Em quanto repousava os lassos membros,
Eis que escuta uma voz tão magoada,
E tão lugubre, debil e queixosa,
Qual a d'Hero expirante, desgraçada!
E ouvindo-a estremece e o coração
No peito juvenil forte pulsára;
Immovel fica o Bardo, commovido
Pela voz tão saudosa que escutava;
Por suspiros e pranto entrecortada
Essa voz su'alma compungia
E tão só, sem amparo, por est'arte,
No silencio dos bosques s'exprimia:
«E'sta vida de saudade,
«De pranto e amargura,
Em breve s'extinguirá
Entre o pó da sepultura!..
Matizar de novo os prados,
Ah! talvez jamais verei
E das folhas ao pender,
No sepulchro cahirei!
O coração já não póde
Soffrer a triste saudade
E breve virão as horas
Solemnes da eternidade!...
E na minha pobre campa,
Nenhum mortal chorará,
Onde jaz uma infeliz,
Ao meu amor quem dirá!..
Contai-lhe vós ternas aves,
Zefiros, flores dos prados
Bosques, rios e montanhas,
Os meus dias desgraçados!
Dizei-lhe que fementido,
Jamais foi meu coração,
E que vim na soledade
Nutrir d'amor a paixão;
Que fiel ás juras minhas,
Recusei outra união
Que preferi á grandeza
Tristezas da solidão;
Mostrai-lhe depois a campa
Onde eu dormir somno eterno.
Que uma lagrima ahi verta
Que exhale um suspiro terno!
Das amigas a mais terna,
Leonor, já não existe!
Minha fiel companheira
Que à solidão me seguiste;
E'ras tu só meu amparo,
Quem minha dor mitigava,
Quem d'esta triste existencia,
Com desvelos mil cuidava:
Nos braços, teus pequenina,
Quantas vezes m'embalaste,
Na falta d'uma mãe terna,
Tu foste que me educaste.
Quando o fado a mão pesada
Sobre mim descarregou,
Dos dias teus a ventura
Para sempre envenenou!
Sósinha não me deixaste
Pelo mundo divagar
E longe do lar paterno
Me vieste acompanhar.
Tão velozes como os ventos,
Dous ginetes cavalgamos,
Por fiel pagem guiadas,
Muitos dias caminhamos.
Sempre boa, generosa,
Por mim tudo abandonaste
Teu ouro, ricas alfaias,
Commigo aqui dissipaste.
Isolada, sem conforto,
Minha dor não vencerei
E comtigo ó doce amiga
Em breve me juntareil..
Nas leves azas dos ventos[errata 3]
Ao meu bem por que não vão
Os derradeiros suspiros
Que partem do coração!..
Sabino! por que não vens
Mitigar a minha dor,
Para que morra ditosa
Nos braços do meu amor!
Não mais o bardo espera e após instantes
A amante sua estreita ao coração;
Sem dar fé ao que vê, julga que sonha,
Ou crê ser um delirio da paixão.
Em silencio se olharam por momentos,
Nos olhos tendo d'alma as expressões
Que phrazes são inuteis quando amor
Em contacto colloca os corações!
Mas em breve do Bardo essa ventura
Em pranto se mudou e agonia,
D'Olinda a pallidez, signaes de morte
No rosto seu exhausto elle só via!
Universo, ah! que és tu se não a taça
Para o pranto sorver do triste humano!..
E tu que és mais que dôr, ó existencia
Que mais és que martyrio e soffrimento?!
Sobre a terra não há felicidade!
Fantastica deidade, é nome vão!
É mentida tambem fogueira esp'rança.
Que venturas promette que não servem
Mais que para illudir a triste vida,
Depois attroz, fatal, o desengano
N'um abysmo de dôr nos lança afflictos!..
E o semblante da virgem sobre o peito,
Co'a pallidez, da morte lhe pendia
E do Bardo infeliz, sentido pranto
Nas faces da donzella já corria.
Vive, ó minha Olinda! vive ou leva
Comtigo o teu amante á sepultura,
Soffrendo mil saudades, não o deixes
Sósinho, sem amparo sobre o mundo!
O meu céo, vida, luz, eras só tu!
A estrella que na terra me guiou,
O sol que o coração m'incendiava
Com os celestes raios de teus olhos!
A aurora que espargia na minh'alma
Perfumes que aspirava ébrio de gozo!..
A existencia fruir sem ti não posso!
Ligadas por amor as vidas nossas
Que extingua a morte crua d'um só córte?..
Olinda inda respira e os olhos ergue
Para o terno amador que delirante,
Caricias mil lhe faz, um beijo imprime
Nos labios que sorrir-lhe vê um instante.
Sabino! enchuga o pranto, não lamentes
Quem nos teus braços morre tão ditosa!
O Creador ouviu as preces minhas,
Conduzindo-te aqui n'est'hora extrema!
Como os anjos no céo amam a Deus,
Amei-te eu, ó Sabino, cá na terra!
De saudades vivi longe de ti,
A vida d'um passado só nutrindo
Que me fôra tão caro, tão ditoso!..
Jámais volveu um dia, hora, ou instante
Que de ti se olvidasse a tua amante!
Meditando ao luar, ai, quantas vezes
A abobada celeste contemplava,
As estrellas olhando uma por uma,
Para vêr se atinava com aquella
Que teus olhos formosos estremassem!
Outras vezes na lua reflectido
Teu rosto figurava meigo e lindo;
Quando o sol despontava, eu lhe dizia:–
Como outr'ora não és já tão formoso!
Nos raios teus não vejo tanto brilho;
A presença d'amôr é quem te doira,
É elle que abrilhanta a natureza,
Quem lhe realça em fim as mil bellezas
De refulgir deixaste para mim
Quando do meu amor me separaram
Esses Fados crueis que me perseguem!..
E a virgem mais e mais empallidesce
A morte despiedada vê chegar
E na gelida dextra a dextra amada,
Pela ultima vez quer estreitar.
Viviremos nos ceus eternamente
Já que fomos na terra separados
Já que nos condemnou a cruel sorte
A viver vida triste de saudade!
A existencia s'esvae... eu morro, ó Bardo!..
Acolhe os meus suspiros derradeiros!..
O meu ultimo adeus!.. esta minh'alma...
E do amante a fronte unindo-a ao seio,
Inda uma vez contempla a suspirar,
Fitando-a com meiguice, até dos olhos
O derradeiro lume se apagar!
Cançado de soffrer o triste Bardo
Tão forte dôr não póde já vencer
E unindo ao coração a extincta amante
Se deixa alli com ella fenecer.