Foi um dia uma freira pálida, muito moça, muito linda, temente a Deus e devotada à Virgem. Vivia na Normandia, em um convento velho, de rígidas penitências, isolado em cima de um rochedo.

Da frecha gradeada da sua cela, a freira só via: em baixo, a pedraria negra, e além charnecas brancacentas a perder de vista.

Uma tristeza.

No claustro, para onde deitava a sua cela, mesmo no ângulo perto da portaria, havia uma imagem de mármore representando Nossa Senhora, tão doce, tão humana, que mais parecia criatura viva. Sempre que soror Pálida deslizava pelo claustro, fazia à Virgem uma reverência profunda e murmurava:

— Ave!

E a Virgem sorria-lhe, dentro do seu nicho azul.

Uma noite, soror Pálida, depois de reverenciar o Bendito, desabotoava o seu hábito e preparava-se para dormir um soninho inocente, quando lhe pareceu ouvir o seu nome na janelinha. "Há de ser o vento..." pensou ela, tirando a cruz e o véu.

Não era o vento; a mesma voz, mais distinta agora, repetiu-lhe o nome. Soror Pálida quis resistir, com medo, mas nunca o seu nome lhe parecera tão doce, nem tão suspirado; assim, levada por curiosidade, ou não sei porquê, foi-se aproximando, foi-se aproximando...

Tão depressa chegou, Jesus! que havia de ver?

Suspenso nos varões de ferro, o capelão do convento olhava para ela, com dois olhos que nem duas estrelas.

— Senhor capelão, por que estais aí? perguntou ela aflita, pondo as mãos trêmulas.

— Senhora freira, porque vos amo! respondeu-lhe ele.

E logo de mil modos começou a tentá-la.

Tais coisas disse, tais coisas fez, que a pobre o escutava embevecida. Chamou-a linda, meiga, angélica, e por fim (vê a perfídia!) pediu-lhe que o beijasse, que o beijasse na boca ou que ele se despenharia no abismo...

A freira debatia-se: que não!...mas, para não o ver morrer despedaçado no rochedo, vá lá, condescendeu em beijá-lo. Louca! que fizeste? foi a tua perdição! Ele sumiu-se e ela ficou de joelhos, muito trêmula, muito alvoroçada.

Em vão coseu cilícios às suas carnes, em vão se rojou pedindo a Deus que lhe apagasse da memória aquele pecado doce e horrendo; em vão! O beijo ali estava sempre nos seus lábios, sentia-o quente, perfumado, embriagador.

Soror Pálida já não era a mesma; perdia o sentido das rezas, tinha delíquios, abstrações.

O moço capelão voltou, mais uma noite, mais outra, induzindo-a a que fugisse: iriam viver bem longe, numa casinha branca, entre pomares cheirosos e águas cristalinas.

Ela recuava, com temor de tamanho crime; mas ele estendia-lhe os lábios e convencia-a de que o amor vale mais que o céu, mais que a perpétua bem-aventurança, mais que tudo!

E tornava a suplicar-lhe que fugisse: ele a esperaria junto à portaria, com os cavalos prontos, mais rápidos que o vento.

Sabe-se como essas coisas são: mau é dar-se ouvidos a primeira vez. A freira já não pensava senão em varar aquelas charnecas longuíssimas ao galope de um cavalo ardego, sentindo palpitar o coração do seu cavaleiro enamorado. Mas, sempre que, altas horas da noite, sutil e trêmula, deslizava para a portaria com atenção de fugir, esbarrava com a Virgem, fazia-lhe a sua reverência profunda, murmurando contritamente: - Ave! e passava; mas, oh! surpresa! a grande porta do convento desaparecera, e na portaria, como em todo o claustro, só havia grossas paredes impenetráveis.

Soror Pálida voltava atônita, e a Virgem sorria-lhe do seu nicho azul.

Por serem sempre as flores presentes de namorados, o moço capelão levava todas as noites rosas à sua eleita. No outro dia toda a comunidade entoava:

— Milagre! milagre! a Irmã da Virgem recebe rosas do céu. Os anjos trazem-lhe flores do Paraíso, como a Santa Dorotéia!

Assim acreditavam, visto que só cardos e espinheiros bravos nasciam em redor, por aquelas penedias.

E entoavam hinos.

Cansado de esperar, por uma noite trevosa e triste, o moço capelão aconselhou a freira a que passasse de olhos fechados pela Virgem, rosto voltado para a outra banda.

Assim fez a louquinha, mas de coração apertado em muita agonia. Dessa vez achou a porta do convento mal fechada: dir-se-ia que ferrolhos e trancas, (e que tais eram elas!) se abriam de per si. Foi por isso que a freira fugiu para a noite negra, com seu hábito branco...

Depois...

Só no fim de um ano, quando ele se cansara de a amar, foi que a mísera percebeu que o seu cavaleiro não era o capelão - mas o diabo em pessoa! Arrepiada, transida de medo, fugiu por montes e vales, de cruz alçada, balbuciando preces, com o fito no convento e em redimir-se com árduas disciplinas. Andou assim, noites e dias, léguas e léguas, por mataria espessa, mal se sustentando nas pernas fracas e nos pés ensangüentados, até que à luz frouxa de uma madrugada viu um dia os penhascos abruptos do convento, e caiu de joelhos, persignando-se.

Finda a oração, ergueu-se. Passava então pela estrada um velho muito velho, de bordão e sacola, e ela perguntou-lhe se não ouvira falar em uma religiosa fugida do convento um ano antes?

— Nenhuma freira fugiu nunca daquele convento, respondeu ele; são todas umas santinhas, louvado seja o Senhor!

— Amen! Entretanto... ouvi dizer que uma das irmãs, que recebia rosas...

— A do milagre!? ah! essa ! É a mais pura... Ide vê-la, Ide vê-la se sofreis. Essa até dá vista aos cegos e faz andar os paralíticos.

Com vivo espanto, a freira galgou a encosta pedregosa e, toda a tremer, com o coração aos pulos, bateu à porta do convento.

— Quem é? perguntou de dentro uma voz dulcíssima.

— Uma pecadora arrependida, para a penitência - sussurrou soror Pálida, lavada em pranto. E confessou logo ali os seus desatinos...

A porta abriu-se sem fazer barulho: dir-se-ia que os grossos gonzos enferrujados estavam de veludo,- e a rodeira mostrou-se com um sorriso à freira apoquentada.

Oh! aquele sorriso, bem o conheceu a religiosa que, vergando os joelhos, na profunda reverência antiga, murmurou com imensa compunção e infinita doçura:

A Irmã rodeira era a Virgem Maria, que, desde a noite da fuga, tomara a forma da freira e cumpria todos os deveres da regra que lhe competiam: badalando os sinos, varrendo os claustros, acendendo as velas dos altares e arrumando os gavetões da sacristia.

— Toma o teu hábito, disse-lhe Nossa Senhora, e vai para a tua cela... Descansa, que ninguém soube do teu opróbio, ninguém!..,

Soror Pálida prostou-se e uniu humildemente a face à lage fria; depois, erguendo o rosto inundado de lágrimas, perguntou soluçando:

— E Vós, Mãe Santíssima?!

— Eu? Perdôo, respondeu-lhe a Virgem sorrindo, já dentro do seu nicho azul..."

Eram nove horas; Sancha veio chamar para a ceia, e levou para a mesa o lampião fumarento. D. Itelvina só usava mate, que sempre era de maior economia. Sentaram-se. Ruth mal engoliu a sua xícara. Pensava em Soror Pálida.

Nessa noite teve de sujeitar-se a dormir com a tia Joana. Lembrando-se das pernas inchadas da velha, teve um arrepio e saudades do seu leito branco coberto de filós delicados. A tia mexia-se, benzia todo o quarto, rezava a meia voz, sacudia a roupa que toda cheirava a incenso, e com a vigília da velhice perturbava o sono da menina. Foi no meio do silêncio da casa, que irromperam de repente, lá do fundo, uns gritos lancinantes.

Ruth sentou-se na cama, com os olhos arregalados.

— Que é isto, tia Joana?!

— Não é nada... há de ser a maninha batendo na Sancha...

— Meu Deus!

— Não é nada, dorme minha filha!

— Oh!...tia Joana, vá lá dentro...peça a titia pra não dar na coitada!

— Eu?! não... a negrinha merece... maninha não gosta de intervenções... Sancha faz espalhafato à-toa.

— Vou eu.

Ruth, em fraldas de camisa, de pernas nuas, saltou para o chão, com um movimento de cólera; e saiu para a sala de jantar; já não havia luz; guiada por uma claridade frouxa, do fim do corredor, correu para a cozinha, onde a D. Itelvina surrava a pequena com uma vara de marmeleiro.

A negrinha mal se livrava com os braços tapando o rosto e abaixando a cabeça. Ruth saltou para o meio do grupo e segurou a vara que ia descaindo sobre a carapinha da outra.

— Isso não se faz, tia Itelvina! isso não se faz! gritou ela com ímpeto, crescendo para a tia, que estacara boquiaberta.

— Você não tem nada com o que eu faço. Este diabo botou de propósito gordura na água do meu banho... eu sei porque dou. Ela merece. Ruth, vá dormir.

— Não vou; mande a Sancha deitar-se primeiro. A senhora não tem coração?!

— Ora vá-se ninar! Sancha praqui!

A negrinha tinha-se refugiado a um canto, perto do fogão, e exagerava as dores, torcendo-se toda, amparada pela compaixão da Ruth.

D. Itelvina avançou os dedos magros, e, agarrando-a por um braço, puxou-a para si; a sobrinha então abraçou-se à negrinha, unindo a sua carne alva, quase nua, ao corpo preto e abjecto da Sancha.

— Bata agora! tia Itelvina, bata agora! gritava ela, em um desafio nervoso, sacudindo a cabeleira sobre os ombros estreitos.

D. Itelvina atirou fora a vara e disse para a negra:

— Vai-te deitar, diabo! foi o que te valeu...Mas nós havemos de ajustar contas...

Sancha esgueirou-se para um quarto escuro, onde os ratos faziam bulha, e Ruth, arrepiada, trêmula, voltou silenciosa para o quarto da tia Joana.

A velha amarrava um lenço na cabeça. A sobrinha interrogou-a:

— É sempre assim?

— Não... uma vez ou outra.

— Mas como podem viver neste inferno?!

— Ora, você não sabe. A Sancha provoca. Maninha anda desconfiada que ela lhe deita vidro moído na água, e na panela... é uma coisa ruim. E ladra, ih! Você sabe o meu gênio, não sei guardar chaves... Pois é raro o dia em que a Sancha não me fique com alguns tostões das missas... Maninha corrige-a para bem dela. É um sacrifício... Eu não teria paciência para a aturar.

— A Sancha vai amanhã comigo para casa.

— Está doida, menina! e quem nos há de fazer o serviço?

— Aluguem uma mulher.

— Ruth... você é muito criança... não pense na Sancha. Ela faz tudo quanto pode para excitar maninha... Eu se sigo, é porque sei. Ainda ontem queimou-lhe de propósito os chinelos novos, com o pretexto de os ir secar ao fogo. A minha roupa, lava ela; a da maninha deixa-a apodrecer na beirada do tanque. É uma coisa ruim!... não pense mais nela. Durma...

Mas Ruth não podia dormir; e quando de madrugada a tia Joana se levantou para ir à missa das Almas, ela saltou da cama, para ir também.

Antes de saírem, foram à cozinha procurar café, e lá encontraram Sancha a acender o fogo, assoprando com força. Foi então que Ruth se chegou para ela e, pousando-lhe a mão no ombro, disse alto, sem medo que a tia Joana a ouvisse:

— Sancha, porque é que você não foge?

A negrinha ergueu o busto e fixou a mocinha com pasmo.

— Nhá?!

— Fuja!

A tia Joana, entretida a partir o pão da véspera, não percebera nada. Uma esperança vaga tremeluziu no rosto estúpido da preta.

— E depois? perguntou ela, assustada.

— Vá lá para minha casa; eu falarei a mamãe.

— De que serve! me mandarão outra vez para cá...

— Não. Titia pode alugar outra criada... papai falará com ela...

A tia Joana acabara de partir o pão e chamava a sobrinha para o café da véspera, requentado.

Quando saíram era já dia, mas as névoas da manhã pousavam ainda nos telhados, e nada se via da cidade, em baixo.

Pelo caminho do convento cabras saltavam, seguidas dos cabritos de pelo espesso e novo, e na grama molhada faziam correrias uns cachorros vadios. Tocou a matinas e a tia Joana benzeu-se. Ruth, pouco afeita a madrugadas, achava um prazer divino em ir assim rompendo as névoas com a pele refrescada pela umidade da atmosfera e os olhos cheios daquela luz branca, suave, que subia e se ia estendendo pelo céu todo.

Na igreja, a tia fez reverência a todos os altares, com uma oraçãozinha na ponta da língua para cada um; Ruth seguiu até o altar-mor e ao ajoelhar-se sentiu como nunca que havia na sua alma uma súplica, um apelo para a misericórdia de Deus. Entre o altar, onde um ramo de flores esquecidas se ia desfolhando, e os seus olhos sonhadores, foi-se esboçando pouco a pouco a figura angulosa e tosca da Sancha. De mãos postas, Ruth pediu à Virgem uma bênção para a negra, um pouco de piedade, um refúgio, uma consolação. Até ali que sabia das misérias do mundo? nada. Aquela noite do Castelo, tão simples, tão monótona, fora uma revelação! Era bem certo que a lágrima existia, que irrompiam soluços de peitos oprimidos, que para alguém os dias não tinham cor nem a noite tinha estrelas! Ela, criada entre beijos, no aroma dos seus jardins, com as vontades satisfeitas, o leito fofo, a mesa delicada, sentira sempre no coração um desejo sem nome, um desejo ou uma saudade absurda, a saudade do céu, como dizia o dr. Gervásio, e que não era mais que a doida aspiração da artista incipiente, que germinava no seu peito fraco.

E aquela mesma mágoa parecia-lhe agora doce e embaladora, comparando-se à outra, a Sancha, da sua idade, negra, feia, suja, levada a ponta-pés, dormindo sem lençóis em uma esteira, comendo em pé, apressada, os restos parcos e frios de duas velhas, vestida de algodões rotos, curvada para um trabalho sem descanso nem paga!

Por que? Que direito teriam uns a todas as primícias e regalos da vida, se havia outros que nem por uma nesga viam a felicidade?

Sabia a história da Sancha: uma negrinha vinda aos sete anos da roça para a casa das tias, com sentido no pão e no ensino. Era dos últimos rebentões dessa raça que vai desaparecendo, como um bando de animais perseguidos.

E tudo dela repugnava a Ruth: a estupidez, a humildade, a cor, a forma, o cheiro; mas percebera que também ali havia uma alma e sofrimento, e então, com lágrimas nos olhos, perguntava a Deus, ao grande Pai misericordioso, porque a criara, a ela, tão branca e tão bonita, e fizera com o mesmo sopro aquela carne de trevas, aquele corpo feio da Sancha imunda? Que reparasse aquela injustiça tremenda e alegrasse em felicidade perfeita o coração da negra.

— Sim, o coração dela deve ser da mesma cor que o meu, cismava Ruth, confusa, com os olhos no altar.

Quando acabou a missa, tia Joana quis fazer a sua penitência, umas coroas de rosário que ela disse a meia voz, de olhos cerrados.

Ao saírem do convento, dois frades retiveram a velha junto à pia de água benta, interessados pela sua saúde, cobrindo-a de bênçãos e de boas palavras. Fora, já o sol irrompera vitorioso, estraçalhando os últimos farrapos de neblina.

A velha lembrou a Ruth que ainda teriam tempo de ir morro abaixo até a igreja do Carmo.

Ruth não respondeu; deixou-se levar. Mais valia andar de igreja em igreja do que voltar para o triste casarão da tia Itelvina.

— Você conhece a igreja do Carmo?

— Não, senhora. Ouço sempre missa na capela do colégio. Não gosto das igrejas grandes.

— Por que?!

— Não sei...

— Ora essa!

— Tia Joana, há muita coisa que eu sinto e que não sei explicar. A senhora não acontece o mesmo?

— A mim? não; nem a mim nem a ninguém. Quando a gente diz que gosta ou não gosta de uma coisa, sabe sempre o motivo por que o diz.

— A senhora reza da mesma maneira em uma igreja grande, sombria e fria, que em uma igrejinha clara e enfeitada de flores?

— Certamente. Deus tanto está nas grandes como nas pequenas igrejas. Ele está em toda a parte.

— Mas se Deus está em toda a parte, porque abandona certas pessoas?

D. Joana estacou.

— Não diga heresias, menina! Deus não desampara ninguém.

— E a Sancha?

— Hein?

— A Sancha.

— Lá vem você com a negrinha!

— Negra ou branca, é criatura.

— Não digo que não. Mas que falta à Sancha?

— Oh, tia Joana! pergunte antes o que lhe sobra...

— Você é muito impressionável. Creia que a pequena não é infeliz. Que seria dela, se não estivesse lá em casa... Uma desgraçada, dessas da rua. Talvez que bebesse, ou que já estivesse com um filho nos braços.

— Estar com um filho nos braços! mas isso seria uma fortuna, tia Joana. Tomara eu.

Menina, que é que você está dizendo!

— Gosto tanto de crianças! Olhe, tia Joana, o meu desejo é ter vinte filhos, vinte!

A velha corou.

— Perdôo essas palavras, porque você é inocente; mas não torne a repeti-las, ouviu?

Ruth cismava em que constituiria pecado o ter vinte filhos, quando D. Joana exclamou, apontando para duas crianças, carregadas uma com uma harpa, outra com uma rabeca:

— Olha, Ruth; aquelas, sim, é que são infelizes: andam ao sol e à chuva, e se não levam dinheiro para casa, ainda apanham por cima.

— Não as compare à outra, tia Joana. Eu preferiria andar sempre ao ar livre, apanhando sóis e chuvas, tocando no meu violino, dormindo em qualquer soleira de pedra, do que viver no borralho como a Sancha. Ao menos estes têm a música.

D. Joana riu-se.

— É verdade; quando você toca esquece tudo.

Chegaram à igreja; a missa tinha começado. Ruth deixou-se ficar sentada no banco, sem atender aos puxões que a velha lhe dava, para que se ajoelhasse. Para que, se tinha esgotado o ardor da sua alma na primeira missa do convento? Sentia-se agora cansada, apertavam-lhe as saudades da mãe e da alegria da sua casa. Como lhe pareceu interminável aquela missa, que a velha ouvia toda de joelhos, num êxtase!

Findo o sacrifício, D. Joana quis levar esmolas a todas as caixas da igreja.

Ruth apressava-a, morta por se ver na rua, mas a tia nem parecia ouvi-la. No adro lembrou ainda:

— Já que estamos cá embaixo, vamos a Santa Rita saber notícias do padre Euclides, que está doente.

Ruth objetou:

— Mas titia, eu estou com fome...

— Tem razão, filhinha; mas é um momento só. O sacristão nos dará informações e seguiremos logo para casa.

Em Santa Rita, rezava-se uma missa de sétimo dia. Gente de preto cobria as naves como um bando de urubus. O sacristão procurado ajudava à missa, e não havia ninguém na sacristia que soubesse do padre Euclides. D. Joana deliberou esperar e empurrou a sobrinha para o corpo da igreja, dizendo:

— Rezemos por alma deste morto, filha.

— Mas nós nem o conhecemos, titia!

— Não faz mal; foi um pecador, precisamos salvá-lo.

Tia Joana ajoelhou-se e ergueu o rosto gordo e pálido para o altar. Era tal a fé, a doce piedade que a sua expressão difundia, que Ruth deixou-se cair de joelhos e pediu a Deus perdão para a alma daquele desconhecido, por quem tantas mulheres choravam...

Que Deus lhe desse abrigo e eternos gozos!

Enfim, o sacristão afirmou à senhora do Castelo, como muita gente a chamava, que o padre Euclides entrará em convalescença, e diria no domingo a sua missa.

— Bem, titia, chegou a minha vez de lhe pedir também uma coisa; disse Ruth.

— Peça, filhinha.

— Já que estamos tão perto, deixe-me ir tomar a bênção a papai. A estas horas ele está farto de estar no armazém.

D. Joana hesitou:

— Olhe que não é tão perto assim...

— Parece-me que já estou há tanto tempo fora de casa.

— Vamos lá... Que pieguice!

Tinham andado meia dúzia de metros quando esbarraram com Francisco Teodoro, que vinha reçumando saúde e alegria pelas faces coradas, empertigado nos seus linhos e brins brancos, bem engomados, de que um paletó preto fazia ressaltar a alvura.

Nos seus olhinhos pardos, muito claros, faiscavam lampejos; ele estendeu as mãos à filha, com uma exclamação de alegria:

— Senhora fujona, que faz por aqui?!

— Já engoli três missas, papai; mas ainda estou com fome! íamos agora procurá-lo ao armazém; eu queria tomar-lhe a bênção, para depois irmos almoçar...

Se papai nos levasse a um hotel?...

— Não posso. Tenho muito que fazer. Vou agora mesmo procurar o Inocêncio Braga, que já deve estar à minha espera... Adeus.

E, abreviando, ele meteu na mão da filha uma nota de vinte mil réis, aconselhando às duas que comessem qualquer coisa em um restaurante. E despediu-se à pressa, mal ouvindo os inúmeros recados que a Ruth mandava à mãe.

D. Joana lembrou-se que estavam perto da casa do dr. Maia, e que mais valeria irem lá papar-lhe o almoço do que entrarem sozinhas em um restaurante. Ruth sorriu-se do escrúpulo da velha, já contagiada pelas economias sórdidas da irmã.

— Tanto me faz, tia Joana; leve-me onde haja bifes, e eu ficarei contente; respondeu-lhe a menina.

Ardiam-lhe os pés; uma fadiga enorme amolecia-lhe o corpo; e entregava-se, inerte, à vontade da velha. Por fortuna, a casa do dr. Maia ora perto do largo, na rua dos Ourives, um sobrado antigo, de rasgados salões arejados, onde velhas mobílias bem espanadas atestavam o escrúpulo dos moradores.

O dr. Maia foi o primeiro a recebê-las no corredor; muito velhinho, arrastando os chinelos bordados pela neta, com a gorra de veludo cobrindo-lhe a calva, e um bom sorriso hospitaleiro iluminando-lhe o rostinho claro e murcho, onde os olhos azuis se iam velando da neblina da velhice.

D. Joana era íntima da casa, recebida sem cerimônia; e como a Ruth tivesse ar de menina, ele foi empurrando a ambas para a sala de jantar.

Só estava em casa a velha, a D. Elisa; a filharada debandara depois do almoço, uns para o emprego, outras para o dentista e as compras. Mas no fundo das caçarolas ainda havia restos de arroz e de ensopado; D. Elisa recomendou que estralassem uns ovos, e em poucos minutos D. Joana e Ruth almoçavam, ao som de um discurso do dr. Maia, que ia descrevendo com surpreendente entusiasmo o seu invento de um balão dirigível.

Ele não pensava em outra coisa; vivia em perpétuo vôo, entre altas camadas de atmosfera. Desde alguns anos se fixara nesses estudos e para eles fazia convergir todos os seus cuidados.

A mulher sorria-se com resignação imposta pelos mil desvarios que se acostumara a conhecer no esposo. Desde rapaz que ele fora assim, metido a empresas opostas à sua competência. Tinha estudado para médico, e abandonara a clínica para defender réus desamparados, escrever para jornais e desperdiçar forças e tempo na elaboração de grandes empreendimentos que não levava a termo. Agora era o balão.

Aquele velho de quase oitenta anos, achacado de asma, perdia horas de sono, curvado sobre a mesa, a desenhar, a escrever, a dar forma à sua idéia, em uma palpitação assombrosa de vida...

Havia em casa uma certa piedade pelas suas manias, um respeito pela inocência daqueles ideais. D. Elisa dizia às vezes que se a alma, no seu último vôo, tomasse forma visível, veriam, os que assistissem à morte do marido, que a dele lhe voaria do peito como uma borboleta. E toda azul! acrescentava ela, com o seu sorriso simpático.

D. Joana mal entendia as descrições do dr. Maria, mastigando com dificuldade a carne um pouco dura, batida à pressa. Ruth abria os ouvidos e via esgarçar-se a neblina que a idade punha nos olhos do médico e ir-lhe aparecendo nas pupilas azuis um branco fulgor de primavera. Ela percebia alguma coisa, via já o balão cindindo as nuvens, leve, leve, airoso, vestido de cores luminosas. Como seria bom subir tão alto, tão alto!

— O meu balão será de alumínio, um metal levíssimo, explicava ele, e todo redondo, girará em grandes círculos, como se dançasse uma valsa; percebem?

D. Joana fez que sim com a cabeça, e espetou uma batata. Ruth murmurou:

— Assim branco e redondo, será como a lua... que bonito!

Felizmente, uma nova visita veio interromper a exposição do velho, que se despediu das senhoras e lá se foi a sala pigarreando pelo corredor.

D. Elisa desabafou depois com a amiga as suas queixas domésticas. O marido esgotava os minguados recursos em livros e revistas. O que lhe valia era o filho mais velho, o José... A neta andava na Escola Normal e ganhava para os seus alfinetes; as duas filhas solteiras, já trintonas, coitadas, cosiam para fora... Aí estava a vida. E é assim, por aí; toda a gente trabalha; acrescentou ela com um suspiro.

Quando D. Joana e a sobrinha voltaram para o Castelo, quem lhes abriu a porta de casa foi a Sancha. Ruth recuou espantada. Que! pois a idiota da negrinha não ouvira o seu conselho?

Ao jantar, uma tristeza. D. Itelvina aludia com escárnio mal contido às grandezas do palacete Teodoro, e lamentava-se de só poder abastecer-se de gêneros baratos, espremendo-se em lamúrias. D. Joana benzeu o pão, rezou de mãos postas, e sentou-se à mesa com a sua consciência feliz, e uma doce expressão de conforto. Para ela tudo era bom, estava tudo sempre muito bem.

Foi nessa noite que Ruth subiu com ela as escadas do Observatório, para ver estrelas; e quando as viu, a sua comoção foi tamanha e. tantas as suas exclamações, que a tia observou:

— Você é muito exagerada, Ruth!

Ruth nem a ouviu; olhava embevecida. No céu, de um azul fechado, aqueles pontos de ouro tomavam formas e dimensões excepcionais. Esta estrela era verde, aquela azul, aquela outra violeta, e uma como um bouquet de variados matizes e outra pálida, e outra afogueada, e outra diamantina, e todas imensas e luminosíssimas. Oh! as estrelas, que beleza de céu! Sobretudo as do Cruzeiro eram formosas, límpidas como o clarão da fé. Depois, aqueles chuveiros de ouro e prata, aquele fervilhamento multicor da via-láctea, raios de fogo dançando, cruzando-se, chispando em fagulhas de uma pirotecnia fantástica... Depois a lua...

— Nossa Senhora, que imensidade!... Como é bonito! Oh! tia Joana, como é bonito!

— Bom, bom; divirta-se...

Ruth não respondia; com o olho colado à lente, esmagada pela poesia daqueles esplendores, ficava embevecida, como se dos astros chovessem sobre ela aromas que a embriagassem.

— Filhinha, vamo-nos embora...

— Mais um bocadinho só... oh! tia Joana!

Nessa noite, deitada ao lado da tia na alcova mal alumiada e que tresandava a azeite de lamparina, Ruth via na imaginação impressionada as estrelas, globos enormes de cristal cheios de luz e cheios de flores, fulgurando e espargindo aromas. Já ela adormecia e ainda a tia lhe ouviu em um murmúrio entrecortado:

— Como é bonito!

No dia seguinte, quando acordou, era tarde. Tia Joana saíra sozinha para as devoções; nem a pressentira. Tia Itelvina andava aos berros pela casa.

Ruth saltou da cama assustada e foi entreabrir a porta:

— Que é?

A tia respondeu-lhe com mau modo, em uma rebentina:

— A Sancha fugiu!

Um tremor de febre percorreu o corpo de Ruth.

Atirou-se para a cama, puxou os lençóis até a cabeça. Para onde teria ido a pobre, sozinha, sem conhecer ninguém? De quem seria a culpa se lhe acontecesse uma desgraça?... De quem, senão dela?... Ora! sempre seria mais feliz lá fora...

Quando nesse dia Noca apareceu no Castelo, Ruth lançou-lhe os braços ao pescoço. Era a sua libertação.

D. Itelvina rabeava pelas salas e corredores, culpando a irmã, que se levantava fora de horas para a carolice e deixava a casa escancarada, provocando a negrinha para o assanhamento da rua.

Foi ao fragor dessas invectivas que Ruth se despediu da velha, deixando-a sozinha no seu casarão, onde as catingas do rato e do mofo vagavam conjuntamente.