Introdução
Em setembro de 1995, a internet comercial estreava no Brasil, Mark Zuckerberg ia a escola primária em White Plains (interior do Estado de Nova York, nos EUA) aos 11 anos, Larry Page e Sergey Bin se conheciam na pós-graduação em computação em Stanford (na Califórnia) e começavam a trabalhar na ideia do Page Rank que originaria o Google três anos depois, e Richard Barbook e Andy Cameron, então membros do Hypermedia Research Centre na Universidade de Westminster, em Londres, publicavam um ensaio chamado “A Ideologia Californiana” na Mute Magazine, revista inglesa nascida um ano antes que se propunha a cobrir cibercultura, práticas artísticas, net-art, autonomia e política radical. O texto logo circularia por listas de e-mails, entre elas a então nascente e até hoje existente Nettime, e seria considerada uma das primeiras críticas ao neoliberalismo agressivo do Vale do Silício.
No ensaio, Barbrook e Cameron definiam a tal ideologia como uma improvável mescla das atitudes boêmias e antiautoritárias da contracultura da costa oeste dos EUA com o utopismo tecnológico e o liberalismo econômico. Dessa mistura hippie com yuppie nasceria o espírito das empresas .com do Vale do Silício, que passaram a alimentar a ideia de que todos podem ser “hip and rich” — para isso basta acreditar em seu trabalho e ter fé que as novas tecnologias de informação vão emancipar o ser humano ampliando a liberdade de cada um e reduzir o poder do estado burocrático.
Na época, a ideologia califomiana era bem representada por empresas como a Apple e a revista Wired e entusiasmava a todos que estavam por perto desse cenário — nerds de computadores, slackers, capitalistas inovadores, ativistas sociais, acadêmicos “da moda”, burocratas futuristas e políticos oportunistas, como escrevem os autores no ensaio. Também: como resistir a um coquetel que unia as premonições tecnológicas de McLuhan de uma aldeia global tecnológica com as potencialidades de emancipação individual a partir da digitalização do conhecimento?
A explosão da bolha especulativa das empresas de internet no final dos 1990 poderia ter servido como um alerta sobre onde esse pensamento poderia levar o planeta, mas a sedução da ideologia californiana persistiu e se espalhou com a ajuda do Google, Facebook, Apple, Amazon e vários outros dos gigantes do Silício que hoje fazem parte da nossa vida cotidiana. A ideia de um mundo pós-industrial baseada na economia do conhecimento, em que a digitalização das informações impulsionaria o crescimento e a criação de riqueza ao diminuir as estruturas de poder mais antigas em prol de indivíduos conectados em comunidades digitais, prosperou. E hoje, queiramos ou não, predomina na nossa sociedade digital.
Será então que, 20 anos depois, é possível dizer que a ideologia californiana venceu? Para discutir essa e outras questões é que Barbrook lançou em 2015, junto do Institute of Network Cultures, sediado na Holanda, o livro “The Internet Revolution: From Dot-com Capitalism to Cybernetica Communism”. Na introdução especialmente escrita para este 20º aniversário do ensaio, o autor inglês faz um balanço de como os “capitalistas hippies” mudaram o Vale do Silício (e o mundo) e de como sua ideologia, num mundo cada vez mais social e digital, ainda é um assunto relevante a se discutir. Como McLuhan tinha insistido, a provocação teórica cria compreensão política, explica o editor do livro, professor e pesquisador de mídia digital Geert Lovink.
A visão do livro lançado em 2015 e do texto original 20 anos antes não é favorável à ideologia californiana. Em dado momento do ensaio original, os autores relatam que o pensamento oriundo dessa ideologia é o de que as estruturas sociais, políticas e legais serão substituídas por interações autônomas entre pessoas e os softwares — e que o “grande governo” não deve atrapalhar os “empreendedores engenhosos” do mundo digital. O texto tem uma posição crítica a esta postura, dizendo que ela rejeita noções de comunidade e de progresso social e dá importância somente para uma posição guiada por um “fatalismo tecnológico e econômico”.
Barbrook e Cameron dizem que a construção exclusivamente privada e corporativa do ciberespaço poderia promover a fragmentação da sociedade e a criação de mais desigualdade social e racial. Um trecho: “Os moradores de áreas pobres da cidade podem ser excluídos dos novos serviços online por falta de dinheiro. Em contraste, yuppies e seus filhos podem brincar de ser ciberpunks em um mundo virtual sem ter de encontrar qualquer de seus vizinhos empobrecidos”.
Anos depois, o documentarista Adam Curtis criticaria a ideologia californiana, que ainda é predominante no imaginário das empresas de tecnologia (não só do Vale do Silício), na parte 1 e 2 do documentário “Tudo Vigiado por Máquinas de Adorável Graça”. Ele traz para o debate a escritora Ayn Rand e sua filosofia objetivista, que influenciou a ideologia californiana (e muitos empresários do Vale do Silício) com a ideia de que os seres humanos se encontrariam sozinhos no universo e que deveriam se liberar de todas as formas de controle político e religioso, vivendo apenas guiados por seus desejos egoístas. O casamento entre a teoria de Ayn e a crença no poder das máquinas produziria a ilusão de uma sociedade que prescindia, entre outras coisas, de políticos e que se autogovemava e se autorregulava com a ajuda dos computadores.
A ideologia californiana está presente hoje como base filosófica para, por exemplo, ações de vigilância em massa como as da NSA. A internet é a ferramenta de controle dos sonhos, em que tudo é registrado e deixa rastro (que alguns apagam, mas a maioria não), um cenário perfeito para que agências de vigilância, em nome da segurança, e com a ajuda dos computadores, possam vasculhar a vida de todos. A ideologia está presente também quando Mark Zuckerberg fala de uma internet onde o padrão é ser sociável — de preferência, que seja sociável numa ferramenta privada de um empresário do Vale do Silício como ele, que gaste bastante tempo nela e que produza muitos dados nesse período. E é esse pensamento moldado na ensolarada Califórnia que está por trás, mais uma vez, quando uma em- presa privada ganha tanto poder que passa a fornecer serviços como o recente caso do Internet.org e do Project Loon, iniciativas do Facebook e do Google, respectivamente, que buscam oferecer acesso à internet de forma gratuita, a partir de satélites ou balões, para lugares remotos como algumas regiões da África e Ásia. É a promessa de emancipação do ser humano a partir da tecnologia e do acesso à internet — desde que uma internet editada e controlada por grandes empresas que capitalizam com o tempo gasto das pessoas em suas plataformas e com os dados que nelas deixam.
Quando falamos, no BaixaCultura, do fim da privacidade, citamos o diálogo do livro de ficção “O Círculo”, de Dave Eggers, que também ilustra a aplicação prática — e extrema — da ideologia californiana hoje. Um mundo onde tudo deve ser compartilhado, em que sonegar qualquer informação a outros pode ser encarado como “roubar o meu semelhante”, em que a vida privada é um roubo, é um mundo onde sistemas informáticos estão a organizar e governar a sociedade a partir de critérios supostamente objetivos. Um mundo onde a ideologia californiana é a dominante, especialmente nas decisões relacionadas às tecnologias digitais.
O ensaio foi apontado à época por pessoas ligadas ao Vale do Silício como um trabalho de esquerdistas, o que realmente é: Barbrook, em especial, é leitor de Marx, Hegel e escreveu um livro chamado “Cybercomunism: How the americans are supersending capitalism in cyberspace”. Lovink, na apresentação de “The Internet Revolution: From Dot-com Capitalism to Cybernetica Communism”, diz que a Ideologia Californiana é um dos primeiros textos de uma corrente de pensamento chamada de net-criticism, que pode ser posicionada na encruzilhada entre as artes visuais, movimentos sociais, cultura pop, e pesquisa acadêmica, com intenção interdisciplinar de tanto interferir quanto contribuir para o desenvolvimento das novas mídias, como Lovink explica na sua obra “Dynamics of Critical Internet Culture 1994-2001”.
É uma corrente de pensamento que se situa como uma terceira via, entre, de um lado, uma posição ligada a uma certa esquerda que critica a internet por ela ter seu desenvolvimento baseado numa expansão do domínio dos EUA em relação ao seu poder cultural e econômico. E, de outro lado, justamente o da ideologia californiana, que tem a internet como viabilização de um novo modelo de negócios e como realização de uma profecia indicativa da aldeia global congregada, como defende, entre outros, John Perry Barlow na conhecida “Declaração de Independência do Ciberespaço”, escrita um ano depois, em 1996.
A construção desta terceira via teria como função, segundo Lovink, “observar a maneira com que os desenvolvedores e as primeiras comunidades de usuários tentaram conquistar e então modelar o rápido crescimento e mutação do ambiente da internet, apoiando alguns dos valores libertários (anti-censura), mas criticando outros (populismo do mercado neoliberal)”. Ganhou força em meados dos 1990, no desenvolvimento da net-art, do hackativismo e dos festivais de mídia tática, inclusive no Brasil, e tem como questão importante a criação de uma infraestrutura de rede independente de grandes empresas, além de proteger certas liberdades da internet e a privacidade a partir de técnicas antivigilância. O net-criciticism ainda está presente hoje, por exemplo, na postura de Julian Assange, criador do Wikileaks, dos criptopunks, de uma certa linha da cultura hacker europeia e latino-americana, que vê a ética hacker como atitude desviante de revolta e inovação criativa em face aos sistemas de controle com os quais se opõe; na filosofia original do software livre e na defesa dos direitos humanos na internet — os chamados direitos digitais. Mas sobre o net-criticism e o pensamento tecnopolítico falamos em outro momento. Boa leitura!
- Leonardo Foletto,
- Editor do BaixaCultura
- Inverno de 2018
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