A Igreja Fluminense data de 1858. Foi a primeira congregação evangélica estabelecida no Brasil, graças ao espírito de um homem rico e feliz.
O Sr. Robert Reid Kalley trabalhava na ilha da Madeira, quando, em 1855, lembrou-se de vir ao Rio de Janeiro. Era escocês, médico, ministro evangélico e possuía bens da fortuna. Ao deixar o clima delicioso da ilha por esta cidade, naquele tempo foco de algumas moléstias terríveis, não o enviava nenhum board estrangeiro, vinha espontaneamente apenas por amor do evangelho de Jesus Cristo.
O Brasil sempre foi um centro de reunião de colônias diversas praticando as suas crenças com a mais inteira liberdade.
Entre a prática da religião, porém, e a pregação à grande massa vai uma diferença radical. Robert Kalley vinha para uma monarquia católica, em que a Igreja era um desdobramento do Estado; aportara a uma terra em que cada data festiva fazia repicar no ar os sinos das catedrais e desdobrava por sobre a cidade os pálios e as sedas roxas dos paramentos sacros; vinha pregar ao povo, amante de procissões, que rojava na poeira das ruas quando passavam as imagens seguidas de soldados. E Kalley veio e pregou contra os pálios, contra as imagens e contra o povo a rojar, escudado na doce crença de Jesus...
Íamos os dois, eu e o Rev. Marques, pelo asfalto do campo da Aclamação. Muito cedo ainda, os pássaros cantavam indiferentes ao bulício da grande praça, e eu, cada vez mais encantado, ia a ouvir tão suave conversa.
Era o diletantismo da evangelização.
- Era o conforto moral que a religião dá. Se até hoje os nossos evangelizadores são apedrejados, se nos fecham as igrejas, imagine a impressão do protestante naquele tempo. Kalley, o ousado capaz de afirmar meia dúzia de idéias desconhecidas, teve uma série infindável de inimigos.
- O protestante! Que recordação de épocas históricas. Carlos IX, os huguenotes, o êxodo para a América, o horror das imagens...
- Os populares naquele tempo não admitiam o funcionamento regular, com entrada franca, das igrejas evangélicas. KalIey, três anos depois da sua chegada, fundava sem bulha, com alguns adeptos, o primeiro templo evangélico, que chamou Fluminense.
- Há temperamentos de missionários. Kalley era um desses. Olhe que podia viver muito bem na Escócia, à beira dos lagos, entre os verdes lindos dos vales. Preferiu a nossa cidade de há meio século, bárbara, feia, cheia de calor; esteve vinte anos no Rio, e só voltou à pátria quando teve a certeza de deixar uma igreja completamente organizada.
- E deixou?
- Ao partir, em 1876, a igreja tinha uns cem membros, havia um pastor substituto, João Manuel Gonçalves dos Santos, eram presbíteros Francisco da Gama, Francisco da Silva Jardim e Bernardo Guilherme da Silva e diáconos João Severo de Carvalho, Antônio Soares de Oliveira, Manuel Antônio Pires de Melo, José Antônio Dias França, Manuel Joaquim Rodrigues, Manuel José da Silva Viana e Antônio Vieira de Andrade. O esforço fora recompensado. Frutificara a semente, e já outras igrejas iam nascendo.
- A Igreja Fluminense tem muitas filiais?
- Tem. Há outras Igrejas organizadas por ela, e a essas seria mais apropriado chamar igrejas congregacionais. São essas a de Niterói, cujo pastor é o Rev. Leônidas da Silva, e que possui um belo edifício na rua da Praia, tendo cerca de cem membros; a de Pernambuco, a de Passa-Três, a de São José de Bonjardim e a que eu pastoreio no Encantado, organizada a 10 de maio, com 56 membros.
Antônio Marques terminara a sua frase com tal carinho que o interrompi:
- Vejo que ama o seu rebanho!
- Não há melhor!... gente simples, boa, capaz de ouvir a palavra do Senhor...
Fez uma pausa, sorriu.
- Devo-lhe dizer que essas igrejas têm também as suas missões. Só a de Passa-Três tem no Cipó, no Arrozal de São João Batista e em toda a zona mais próxima do Estado do Rio.
- A Igreja Fluminense é só de nacionais?
- É a única no Brasil que não tem proteção estrangeira, que vive dos seus próprios recursos apenas; - é o completo atestado do nosso esforço moral. Já educou três jovens para o mistério, sustenta três missionários, acabou de construir um templo e, apesar disso, ainda o ano passado teve no seu "budget" um saldo de oito contos. Sendo nacional, recebe entretanto na sua comunhão pessoas de ambos os sexos crentes em Cristo.
- E tem uma escola?
- Tem duas: a dominical, de leitura bíblica, e uma outra diária para as crianças, dirigida pelo Sr. Joaquim Alves e D. Carlota Pires. A característica da igreja é a evangelização da cidade, uma evangelização que vai de porta em porta, levando auxílios, carinhos, paz moral. Há a Sociedade de Evangelização, a União Bíblica Auxiliadora de Moços, a União das Senhoras, a União das Moças, das Crianças... Os templos congregacionais também têm idênticas sociedades.
No Encantado, além de duas outras, nós, que estamos em caminho de ter um templo, vamos organizar agora o Esforço Cristão Juvenil.
- Mas uma evangelização assim constante?
- Os rapazes distribuem folhetos, fazem a expedição pelo Correio, vão de porta em porta com subscrições para mandar companheiros estudar na Europa. Eu lhe posso citar os nomes de João Menezes, Isaac Gonçalves, Luiz Fernandes Braga, Antônio Maria de Oliveira... São tantos! E todos brasileiros.
Havia na voz do pastor um justo orgulho. Eu emudeci um instante, acompanhando-o. Nesta cidade de comércio, em que o dinheiro parece o único deus, homens moços e fortes pregam a bondade de porta em porta, como os pobrezinhos pedem pão! Ou eu delirava, ou aquele cavalheiro calmo, de redingote de alpaca, dava-me o favo da ilusão, como outrora Platão entre árvores mais belas e discípulos mais argutos.
- A igreja tem hoje um patrimônio grande? - fiz com o desejo de voltar à realidade.
- Sempre aumentado, mas regulado ainda pelos estatutos de 1886, aprovados pelo governo imperial, quando ministro o Barão Homem de Melo. O patrimônio criado com donativos e legados consiste em prédios e títulos da dívida pública. A administração é eleita anualmente dentre os membros da igreja, compõe-se de um presidente, dois secretários, um tesoureiro e um procurador, que têm a seu cargo representar a igreja em todos os seus negócios. Deus tem abençoado a nossa obra.
- As igrejas evangélicas abundam entre nós, pastor. Falam-me agora numa seita, os miguelistas, que dizem ter Jesus Cristo voltado ao mundo, encarnado no Dr. Miguel Vieira Ferreira...
- As verdadeiras igrejas evangélicas do Rio são a Fluminense, a Metodista, a Presbiteriana, a Batista e a Episcopal para os ingleses e os alemães. Nós propriamente, filhos da Fluminense, somos congregacionistas.
A religião é uma só, havendo apenas diferença no ritual e na forma do governo eclesiástico.
O nosso governo é congregacionista, composto de pastor, presbítero e diáconos. Atualmente na Igreja Fluminense o pastor é Gonçalves dos Santos, os presbíteros José Novais, José Fernandes Braga e Gonçalves Lopes, os diáconos Antônio de Assunção, Guilherme Tâner, José Valença e José Martins.
- Há uma tal subdivisão de ritos entre os evangelistas.
- Nós nos regulamos por 28 artigos de fé. Cremos na existência de um Deus, na trindade de pessoas, na divindade de Jesus Cristo, na sua encarnação, nascendo de Maria e sendo verdadeiro Deus e homem.
Estávamos à esquina da rua Floriano Peixoto. Verdadeiro homem! Ia perguntar, aprofundar a intenção da frase. O pastor, porém, continuava.
- A Bíblia foi escrita por inspiração divina.
- Não há dúvida.
- Só acreditamos em doutrinas que por ela possam ser provadas. E por isso cremos na imortalidade da alma, na vida futura, na punição eterna dos que não pensam em Jesus, na ressurreição dos mortos, no julgamento do tribunal de Deus.
Antônio Marques parara defronte da igreja, um casarão que tem em letras grandes este apelo convidativo. - Vinde e vede!
- Custou muito?
- Uns setenta contos.
- E o pastor ainda é o substituto de Kelley?
- Ainda. Conhece-o?
- É um ancião de maneiras secas.
- Oh! tem-se esforçado tanto. Há vinte e sete anos que trabalha sem cessar. Foi a Londres estudar o ministério, voltou e nunca mais nos deixou. É o mais antigo ministro evangélico do Brasil, e hoje os seus sessenta e dois anos curvam-se a um trabalho insano. Entre; hoje é o dia da comunhão.
Entrei. Uma sombra tranqüila aquietava-se na sala. Os ruídos de fora, da alegria movimentada da rua, chegavam apagados. No coro, nem viva alma; pelos bancos, alguns perfis emergindo da sombra, muitos atentos e calmos; ao fundo, em derredor de uma mesa onde havia garrafas e pratos de prata, vários senhores. E naquela paz vozes cantavam:
Disposta a mesa, ó Salvador,
Vem presidir aqui,
Ministra o vinho, parte o pão
Tipos, Jesus, de ti!
Depois, no silêncio que se fizera, o pastor disse:
- Bendito Deus! e a prece evoluía-se direta, pedindo para que se retificasse o fato em memória da morte de Cristo. Era a consagração.
Gonçalves dos Santos tomou do pão e o partiu, os presbíteros foram pela sala com os pratos lavrados de prata, onde branquejavam os pedaços do bolo sem fermento.
- Tomai isso e comei!
Sentei-me humilde no último banco. Como nos evangelhos, eu via os homens darem de comer o pão de Deus, e darem a beber o sangue de Jesus. Era tocante, naquele mistério, na paz da vasta sala, quase deserta. E, com gula, a cada um que eu seguia no gozo da suprema felicidade, parecia-me ver o seu olhar, - o olhar, a janela da alma! - voltar-se para o céu na certeza tranqüila de um repouso celeste.
Quando a cerimônia terminou, como um ruflo de asas brancas, de novo as vozes sussurraram.
Eu trouxe a salvação
Dos altos céus louvor,
É livre o meu perdão,
É grande o meu amor.
- Que faz tão triste aí? - disse-me o pastor Antônio. - Aos moços quer Deus alegres! E eu que lhe fora buscar uma Bíblia e o Cristão, o nosso jornalzinho! Venha falar ao pastor.
Ergui-me. Manuel Gonçalves dos Santos, com a sua barba alvadia e o seu duro olhar, fitava-me.
Voltei do sonho para reflorir uma lisonja. Eu já o sabia um probo, praticando o ministério sem remuneração de espécie alguma. Santos conservava-se de gelo. Falei da coesão das igrejas, da propaganda, do evidente progresso do evangelismo no Brasil, com a sua simples essência de fé, gabei o hospital que estão a concluir.
O pastor então discorreu. A única religião compatível com a nossa República é exatamente o evangelismo cristão. Submete-se às leis, prega o casamento civil, obedece ao código e é, pela sua pureza, um esteio moral. A propaganda torna cada vez mais clara essas idéias, no espírito público aos poucos se cristaliza a nítida compreensão do dever religioso. Os evangelistas serão muito brevemente uma força nacional, com chefes intelectuais, dispondo de uma grande massa. E, de repente, com convicção, o velho reverendo concluiu:
- Havemos de ter muito breve na representação nacional um deputado evangelista.
Apertei a mão do mais antigo ministro evangélico do Brasil. Diante dos esforços que me contara Antônio Marques, a minha alma se extasiara; durante a comunhão, vendo o grave grupo beber o sangue de Jesus, eu sentira o bálsamo do sonho. Mas enquanto meus olhos olhavam com inveja o outro lado da vida, a margem diamantina da Crença, o pastor sonhava com o domínio temporal e a Câmara dos Deputados...
Eterna contradição humana, que não se explicará nunca, nem mesmo com o auxílio daquele que no Apocalipse sonda o coração e os rins e anda entre sete candeeiros de ouro!
Eterna contradição, que cativa a alma de uns e faz as religiões triunfarem através dos séculos!