A casa do dr. Pedrosa era uma das mais antigas da rua Senador Vergueiro. À sua fachada, de velho estilo português, a vaidade do dono mandara adicionar uma cimalha, que encobria as telhas aldeãs com os seus floreados medalhões de estuque e dois torreões laterais, ligados ao corpo central por passadiços envidraçados, de caixilhos miúdos. Dentro de um vasto jardim, fechado por gradil prateado, essa residência ficava meio encoberta da rua por dois misericordiosos tamarineiros, altos e frondosíssimos.
Num dos torreões fazia o senhor ministro o seu gabinete de trabalho. O outro, todo esteirado e guarnecido de caquemonos, era chamado em casa o “pavilhão japonês”, e destinado a Sinhá, que aí recebia as amigas e pintava as suas tímidas aquarelas.
Era noite de recepção e a Pedrosa embarafustou pelo quarto da filha.
– Estás pronta?
– Sim, mamãe.
– Que! de azul?! Não! muda de vestido. Branco, branco! Trouxe-te os meus brincos de pérolas. Toda de branco, só com estas duas pérolas nas orelhas, ficarás melhor. Como uma noiva...
O olhar da mãe acariciava a filha, que sorriu com tristeza.
A Pedrosa tornou a sair, recomendando pressa; ela ia para a sala esperar os amigos; antes de abrir a porta, puxou a filha a si e beijou-a com ternura.
A moça começou passivamente a desenlaçar o seu vestido azul, pensando no ar misterioso com que a mãe a atraíra naquele beijo.
Sem poder obedecer às ordens maternas, que lhe haviam imposto pressa, ela, mal enfiou o seu vestido branco, deixou-se cair sentada na beira do leito e ali ficou um largo espaço de tempo, com os olhos fixos no vácuo e os dedos embaraçados nas fitas desatadas do cinto.
Tinha pensado muito desde aquele passeio ao Corcovado e começava a compreender o seu papel... A mãe oferecia-a ao Argemiro... era por causa dele que lhe pusera nas orelhas aquelas pérolas, que pareciam queimá-la... Por quê? Porque ele era rico e ocupava na sociedade um lugar brilhante... Amava-a ele? não!... amava-o ela? talvez...
Na verdade, a imagem de Argemiro nunca se lhe apresentara senão levada pela mão da mãe... lembrava-se mesmo de que a primeira vez que o vira achara-o velho e triste... depois, a pouco e pouco, habituara-se a imaginar-se noiva daquele homem sério, que todo o mundo dizia votado inteiramente à sua viuvez... e agora ei-la enciumada de uma mulher de cuja existência até as vésperas nem suspeitara e que ocupava já o lugar que a mãe lhe destinava a ela!
A figura de Alice desenhava-se inteira diante dos olhos pasmados da moça. Revia-lhe o rosto de um moreno pálido, de feições irregulares; o talhe esbelto do corpo, as mãos longas, o vestido cinzento, alegrado por uma gravatinha azul...
Que idéia faria dela o Argemiro? Um leve rubor subiu-lhe às faces e ela escondeu o rosto entre as mãos geladas.
A criada veio apressá-la. Sinhá levantou-se resolutamente e concluiu a sua toalete sem hesitação.
Quando entrou na sala, a mãe, entre um grupo de amigas, conversava com um homem gordo, de longos bigodes cor de vinhático. Apresentou-a; era o encarregado de negócios de Inglaterra no Rio de Janeiro!
Sinhá cumprimentou-o, admirada da habilidade da mãe; ela conseguira o seu desejo!
Ali estava na sua sala o homem por quem ela subira inutilmente o Corcovado. Bem o dissera ela: realizo todos os meus empreeendimentos!
Atendendo às visitas que rodeavam a mãe, Sinhá prestava atenção, a ver se distinguia a voz de Argemiro entre as vozes dos homens que palestravam no gabinete do pai.
Aí, entre os livros de direito e de economia política, arrumados em estantes de canela ou espalhados sobre a secretária e a mesa, conversavam animadamente Adolfo Caldas, Argemiro, dr. Sebrão, o conselheiro Isaías e o dono da casa.
– Falem-me de tudo! – exclamava o Pedrosa, súplice, – menos da política! Vocês não imaginam! não lhes direi que estou farto dela até os cabelos, porque sou careca; mas ultrapassa a minha força aturá-la até nos cavacos entre camaradas.
Conselheiro Isaías, lembrando-se lá consigo do empenho do Pedrosa para alcançar a pasta, comentou do canto onde acolhera o seu corpinho murcho:
– Percebe-se o sacrifício...
Caldas levantou-se com estrondo, disfarçando a malícia do outro, e foi ao lampião reacender o charuto, enquanto Pedrosa continuava:
– É muito grande, e só mesmo a pátria poderia exigir tanto de mim. A ação de governar vai se tornando cada vez mais perigosa nesta terra... Nós temos maus auxiliares e o povo tem má fé... A oposição agora serve-se de todos os meios para impedir-nos os passos, usando das armas mais pérfidas, que são as do ridículo e as da calúnia...
– Essa senhora é velha como Sócrates... não faça caso... – disse o conselheiro.
– Não faço caso, mas no fundo, francamente, desgosta-me. Trabalho sem interrupção e afinal...
– Não faz nada! – disse o conselheiro, rindo.
– Não seja perverso, amigo! ou declare-se já contra mim! Quem sabe se é você o autor daqueles versinhos que andam por aí carpindo a minha falta de eloqüência e de desinteresse, que julgam as qualidades primordiais para um homem de Estado!
– E são...
– Nego. Um político, do que precisa, sobretudo, é de tenacidade, sangue frio, patriotismo, sinceridade e um grande domínio sobre as suas paixões... além das qualidades superiores, que lhe são indispensáveis, de inteligência e de ilustração...
– É por isso que o seu colega Marcondes está fazendo tão bonita figura!... – disse ainda o conselheiro, com um fundo suspiro. Riram-se todos, que bem conheciam os dotes fraquíssimos do Marcondes.
Pedrosa continuou, com um sorrizinho magnânimo:
– Ele é bem intencionado, e trabalha! Há dias em que nem tenho tempo de beijar minha filha... O homem público é um galé, principalmente neste nosso país, em que os mais puros devotamentos são sempre interpretados às avessas!
– Muito bem! Apoiado! – exclamou o conselheiro, levantando-se.
– Eu sei que você é um homem corajoso, desde aquela célebre caçada que fizemos juntos em Teresópolis... lembra-se? – perguntou, sorrindo, o dr. Sebrão ao Pedrosa.
– E com bastantes saudades!
– Quem tem idade e competência para arcar com o peso de uma pasta é ali o amigo Argemiro... – disse o conselheiro Isaías.
Argemiro protestou; era um homem sem maleabilidade; não podia servir bem à política. Ao mesmo tempo o dr. Sebrão, voltado para Adolfo Caldas, começou a descrever a caçada feita com o Pedrosa e outro amigo nas florestas da serra.
– Tinham-nos falado em javalis. Uma madrugada partimos da Várzea, montados nuns velhos cavalos de aluguel, nós e mais um velho de Teresópolis, que se inculcara como excelente guia. Levávamos boas armas, bom farnel para o almoço, estando combinado voltarmos a jantar com a família. Trotamos para o alto, o velhote na frente; nós, muito esperançosos, atrás. Chegados a um certo ponto, amarramos os animais e metemo-nos a pé pelo mato. Imaginem que entrar nas florestas da serra é como entrar na treva. Ali, para se ser bom caçador é preciso ter afeito a vista à escuridão do ervaçal e ter criado sobre a epiderme uma segunda pele, ou melhormente uma espécie de couro, onde os espinhos se quebrem sem lograr ferir. Cada vez que os nossos pés se afundavam no colchão de folhas mortas, a idéia de ser mordido pelas cobras juntava-se ao prazer de conseguir matar algum porco do mato. O guia assegurava ter encontrado sinais; galhos quebrados, rastro de animais em fuga. Seguimo-lo com fé. Era prudente almoçar cedo. Comemos à beira do Paquequer, entre touceiras cheirosas de lírios. As águas convidavam. Quis banhar-me, mas o Pedrosa ponderou que a fresquidão da linfa aplacaria o meu humor sanguinário, que antes deveria ser exacerbado por um golinho de parati... Tropeçando em troncos, enrodilhando-nos em cipós, alagando-nos até o queixo em valas, passamos o dia inteiro à espera da porcada glorificadora! Mas os diabos dos porcos, zombando dos caçadores sem cães, deram-nos ao desprezo. Escureceu. Quer dizer: o negrume ainda se fez mais negro. O guia, desnorteado, levava-nos para um lado, para outro, sem achar saída...
Tiritando de frio, rodeados pelo fragor da água e do vento, ali passamos uma noite pavorosa; eu, gemendo com dores nas articulações, Pedrosa febril e impressionado com a idéia do susto que havia de estar curtindo a nossa boa d. Petronilha... Só no outro dia, às dez horas, esfomeados, lanhados e rotos, conseguimos sair da mata. Correu todo o mundo a ver-nos. As famílias choravam. Tinham andado pelas estradas, à noite, com archotes, gritando por nós... Tivemos de passar cabisbaixos e envergonhadíssimos por entre os curiosos... explicar aventuras... imaginárias... E querem vocês saber? Passáramos a noite a pequena distância de um hotel! O barulho da água e do vento abafou os outros rumores que nos denunciariam essa salvação. Foi uma tragédia cômica!
– A evocação não foi das mais felizes para consolar o amigo Pedrosa das suas atribulações! – disse ainda o murcho conselheiro Isaías, levantando-se do seu canto. E depois, para o Argemiro:
– É tempo de irmos prestar as nossas homenagens às senhoras; não lhe parece?
Levantaram-se todos e iam para a sala, quando o dr. Teles, entrando pela porta do jardim, reteve o Pedrosa, que deixou sair os outros e ficou com o deputado confabulando sobre política.
Caldas, antes de entrar na sala, puxou Argemiro de parte e, com o pretexto de acabar o charuto, encostado ao gradil do passadiço, espalhando baforadas para o jardim, foi avisando:
– Olha que a Pedrosa já teve uma conferência comigo a teu respeito esta tarde!
– Hein?!
– Não me faças repetir palavras: aviso-te de que já se sabe por aqui que tens uma ménagère moça, bonita... e que os conceitos são naturais. Quero dizer: maldosos.
– Ora!
– Ora! mais nada?
– Então? que lhe respondeste?
– Fiquei meio burro... disse-lhe que efetivamente tu tinhas uma ménagère, mas que a não conhecias!
– E ela?
– Riu-se.
– Riu-se?!
– Escandalosamente. Eu também me ri.
– Tu?!
– Que querias que eu fizesse? Crias uma situação de comédia e impões seriedades de melodrama?
– Mas que tem ela com a minha vida? Já se viu uma tal indiscrição? É boa!
– Cobiça-te para genro. Sabes perfeitamente disso! Estás farto, fartíssimo de o saber, e ainda te admiras? Ora, meu velho!
– Mas essa senhora já deve estar convencida de que não lhe aceito a filha. Não quero casar! Aposto em como não aproveitaste a ocasião para lhe dizer isto?
– Certamente que não! mas afinal aquela rapariga que lá tens em casa é séria ou não é séria?
– Eu presumo que sim.
– Se é séria, manda-a embora, porque a comprometes; se não é... não deves ter escrúpulos em fazê-la passar como tal!
– E minha filha? Lembra-te que tenho uma mulher em casa, não tanto pela boa ordem de minha vida, como para poder recebê-la e guardá-la de vez em quando comigo... E depois, sabes que mais?! pouco me importo com a opinião dos outros! Deita fora o charuto. Vou despedir-me lá dentro. Estou enojado. Lá te espero quarta-feira. Não te esqueças...
– Ó egoísta! lá irei com um baralho novo!
Argemiro entrou na sala a tempo de aplaudir a Sinhá, que acabava de tocar uma réverie ao piano. Vendo-o, a Pedrosa foi ao seu encontro:
– Pensei que fosse hoje todo do meu marido! Chego a ter ciúmes da política, acredite!
Ele sorriu.
– Foi pena que não tivesse ouvido Sinhá desde o princípio... ela toca com muito sentimento... anime-a... diga-lhe, embora mentindo... que a apreciou... as suas palavras são o melhor incentivo para ela...
A Pedrosa procurou a filha com a vista, para aproximá-la de Argemiro, mas já a moça desaparecera da sala.
Argemiro percebeu-lhe a contrariedade no olhar e apressou-se em dizer meia dúzia de banalidades, à espera do momento de se despedir. Mas a Pedrosa tinha que dividir a sua atenção. Estava com a casa cheia, e as moças mostravam desejos de dançar...
Por fortuna, as sobrinhas, as três filhas do dr. Adão, ajudavam-na a armar as quadras para os lanceiros, tirando pares e influindo os moços, que se deixavam arrastar, por complacência, para o meio da casa...
Como tardasse o pianista, foi mesmo a Pedrosa para o piano, rompendo com força os primeiros compassos da quadrilha. Argemiro aproveitou aquele instante de alegria para ir buscar o chapéu e o sobretudo ao pavilhão japonês e sair para a rua sem ser visto.
O pavilhão estava a meia luz. Nas paredes forradas de esteirinha as japonesas dos caquemonos requebravam-se entre os cetins das suas kobaias e o ouro das borboletas e dos crisântemos dos seus penteados... Carinhas de marfim, graciosamente pendidas sobre os ombrinhos estreitos, pareciam oferecer as cerejas das boquinhas para a guloseima de um beijo. Aves e insetos delicados, de asinhas transparentes, voejavam entre os galhos de pessegueiro em flor, nos panos cinzentos dos biombos. No meio do pavilhão, um enorme vaso bojudo, fabricado em Kioto, sustinha um profuso ramo de camélias brancas, grandes e silenciosas...
Os passos de Argemiro morreram ao entrar no pavilhão, abafados na esteirinha, e ele dirigira-se para o fundo, onde deixara o agasalho, quando Sinhá saiu de trás do biombo e veio ao seu encontro, trazendo-lhe ela mesma nas mãos a capa e o chapéu.
Argemiro não pôde conter um movimento de surpresa. Ela, muito séria, com uma gravidade que a tornava linda, estendeu para ele o agasalho e disse com um fio de voz suave e triste:
– Agradeço a sua resolução... vá-se embora e peço-lhe que não volte, senão quando souber que eu já não estou aqui... Para o senhor isso não será um sacrifício; e quanto a nós... a saudade que nos deixar será atenuada pela certeza do seu respeito e da sua estima...
Toda de branco, naquela meia luz em que bailavam insetos e sorriam japonesas, a figura grave da moça ressuscitava uma visão de sonho que perturbava o espírito de Argemiro. Ele curvou-se, beijou-lhe as pontas dos dedos gelados e, com a voz engasgada pela comoção, afirmou:
– Eu não a tinha compreendido, distanciado como estou da sua idade e da sua perfeição... Consinta que eu volte no dia em que o seu coração de menina tiver encontrado um outro coração moço e digno dele! Bastará então uma palavra sua: venha!
Sinhá não respondeu. Argemiro aceitou o agasalho das mãos dela e saiu comovido, tonto. Fora, as estrelas palpitavam luminosamente no fundo aveludado do céu. O ar cheirava a flores. E o viúvo caminhava a pé, sozinho, pensando nas surpresas desta vida de civilização, e revendo a palidez da moça, o seu olhar sincero e transparente. Não teria ele repelido a felicidade?
Entretanto, vendo-o sair, Sinhá recolheu-se para trás do biombo, chorando devagarinho, devagarinho, em segredo.