Padre Assunção morava para os lados da Lapa, numa casa encravada no morro de Santa Teresa, velha e esguia como uma torre, com frente de dois andares para uma rua tranqüila e fundos rentes a um jardinzinho bem cultivado.
Entre o habitante e a habitação havia certas analogias de forma e de caráter. Tinham ambos a silhueta fina e o aspecto melancólico e fatigado. E se as paredes grossas, da velha construção, davam a idéia da firmeza que o vulto ossudo do padre sugeria, as rosas brancas entrelaçadas junto ao telhado, no jardim do morro, fariam lembrar a doçura dos seus sentimentos impregnados de idealidade...
As janelas de guilhotina, dos compartimentos superiores, viviam escancaradas para o azul da baía, tais como os olhos do Assunção para um sonho infinito...
Todo o edifício, da base ao cimo, parecia sossegado; a loja era habitada por um casal de surdos-mudos, cujos gozos e sofrimentos não varavam paredes nem vãos; o primeiro andar pela mãe de Assunção e o andar superior, mais resumido, por ele só, que o enchia com os seus livros e as mobílias antigas do seu quarto.
A paz, se o silêncio é paz, seria só aparente. O casal de mudos era pobre e viviam ambos sob a canga do trabalho, cosendo botinas para as fábricas de calçado.
D. Sofia, a mãe de Assunção, confessava desgostosa não ter criado o filho para Deus, mas para si. Aquela batina preta era o espantalho da sua alegria. Para ela, o misticismo do filho fora uma forma de doença a que não soubera dar remédio, e as maiores queixas voltava-as contra si própria, que o deixara afinal enveredar por aquele caminho de sacrifício.
Ela educara-o para o mundo, para a família, para o amor! Sonhara com outra filha, a mulher dele, que a ajudaria a amimá-lo, e lhe daria meia dúzia de netos fortes e bonitos! O sacerdócio reduzira a cinzas as suas esperanças luminosas. Tudo acabava, tudo morria nele, que se abatera de repente, como uma vela rota no meio do temporal.
De que lhe servira ter-lhe insuflado o amor pela natureza, pela glória, pela pátria; ter-se sacrificado tanto para o tornar física e moralmente um forte, se ele lhe escapara, por entre as mãos frágeis, para o vácuo? Pobres mães, como os seus desígnios saem errados! A quantos sacrifícios ela se sujeitara, quando ele era pequeno, com o pensamento de que mais tarde ela teria de tudo a compensação, vendo o seu filho gozar a vida larga e amplamente!
E ei-lo um concentrado... um padre! Fora o colégio dos padres que lhe inspirara aquilo, ou alguma paixão? Ele nunca o dissera. E que importava a causa, se o efeito ali estava e irremediável!
Amorosa e amiga de crianças, ela lamentara em moça não ter podido dar irmãos ao seu filho, que o alegrassem, arrastando-o em correrias; companheiros de infância, confidentes amigos da mocidade! E era daí também que lhe nascera a visão daquele futuro ruidoso, quando ela já velha visse a sua casa invadida pelo riso e a jovialidade dos netos!
E o filho, desigual no humor, ora tímido, ora arrebatado, cresceu sob a sugestão desse sonho. O que lhe valia a ela era a amizade do Argemiro, que, mais velho um ano que o amigo, lá o entretinha com as alegrias do seu temperamento robusto. Eram vizinhos, estudavam no mesmo colégio, amavam os mesmos poetas, completavamse pelas suas semelhanças e dessemelhanças.
A amizade de Argemiro foi um alívio para d. Sofia. Bem percebia ela não bastar à felicidade do filho!
Os dois rapazes viviam como irmãos!
Passaram-se anos assim, até que um dia entraram ambos em casa, um radiante, outro constrangido. Que se passara? não o soube nunca; mas por mal dela o constrangido era o filho, que entrou a empalidecer... a não dormir... enquanto o outro prosperava!
– Meu filho! que tens?
– Nada...
– Escondes-me alguma coisa!
– Nada...
– Quero-te alegre!
– Mas eu estou alegre... acredite que estou alegre e que sou feliz.
Era sempre o que ele afirmava.
“Ele mente-me!” – pensava a mãe amargurada. E a sua obra, a alegria, a ambição de glórias que, durante tantos anos se esforçara por implantar no filho, sumia-se, derrocava-se, sem que lhe fosse possível, a ela, ampará-la para a reconstruir!
– Ele mente-me...
Ela queria-o franco, risonho, amigo da vida. Ele retraía-se, tomava ares abstratos, entregava-se a leituras filosóficas e a estudos incompatíveis com a sua idade. Ela não entendia bem daquilo, mas pressentia um perigo sem forças para o combater...
– Ele mente-me...
Era a sua amargura. O filho tornara-se de uma sensibilidade doentia; fugia da sociedade, evitava a própria mãe, que se encolhia chorosa, para o não aborrecer.
Aos vinte e três anos viu-o morto com uma febre. E aos vinte e cinco – padre!
Não o quis contrariar, não se podia opor. Ele lá teria uma razão diferente daquela que alegava e que ela espiara em vão!
Não fora chamado por Deus ao sacerdócio, fora levado por uma causa estranha, mas inabalável.
Sonhar! de que vale o sonho que não frutifica, flor que se esfolha e de que nem o aroma sequer permanece com suave consolação!
Ela sacrificara-se para tornar aquele filho um vencedor, um homem! e ei-lo místico, retraído, isolado do mundo para que o destinara!
Ela pedira-lhe uma nora, ele trouxera-lhe uma batina, e à sua indagação angustiosa:
– Meu filho, que tens?!
Respondia ainda:
– Nada. Eu estou contente... Eu sou feliz!
“Mente-me!” – pensava ela consigo, disfarçando as lágrimas.
O que lhe valia era a amizade do Argemiro. Esse, sim, era um rapaz sólido, prático como ela desejara o seu...
Ah, não se podia esquecer nunca! No dia em que Assunção, pálido e trêmulo, lhe confiara a resolução de ser padre, ela levantara para ele a mão, como no tempo de criança, em que se via forçada a corrigi-lo... Ele estendera-lhe a face, como Cristo; ela retraíra-se, desatando num pranto soluçado.
Negava o seu consentimento; não queria! O homem não nasce para o celibato, mas para a família; a missão ensinada por Deus é a do criador! – afirmava.
E toda aflita:
– Mas, que determinou semelhante idéia, meu filho?
– A vocação...
– Não... não! Tens algum desgosto contigo!
– Não tenho nada. Eu sou feliz...
– Ele mente-me! – gemia sempre a mãe, por dentro, com os olhos extáticos no semblante impassível do filho.
Ele tornava-se de pedra e era em vão que ela se debatia à espera de um milagre que nunca se realizou.
Teve que ceder, mas sem resignação.
O que lhe valia agora era a pobreza. Começou a repartir as suas migalhas com os vizinhos necessitados. Toda a sua atividade empregava-a a bem dos outros. Chamou para casa duas crianças órfãs e entretinha-se a ensiná-las e a vesti-las.
– Quando eu morrer – dizia ela ao padre – tu olharás por elas como se fossem teus filhos!
Forçava-o assim à paternidade; obrigando-o a amá-las, empurrando-as para os seus joelhos, contando-lhe as suas gracinhas, fazendo-o adorado por elas.
Até já achava nas crianças traços da família. Assunção deixava-se assaltar e abria os braços aos pequenos; mas a sua predileção não estava ali. A propósito de tudo falava em Glória. Era a sua preocupação. Uma selvagem!
A mãe não tinha ciúmes. Sorria. Se ele tivesse três filhos amaria os três, mas em verdade se preocuparia mais com a menina! Os de casa eram rapazes, ambos de origem estrangeira, órfãos de italianos desconhecidos. Glória, essa era uma continuação dos entes que mais se prendiam ao seu passado, do Argemiro e daquela suave Maria, que o estimara como irmã.
D. Sofia encontrara a salvação nos pequenos a que se dedicava. O seu espírito carecia do sonho. O filho cortara pela raiz todos os que floresciam nela até o dia em que se fez padre...
Com o correr dos tempos, fora se habituando à batina do filho, mas continuava a freqüentar pouco a igreja, certa de que Deus a ouviria igualmente do seu humilde canto.
Assunção mudara também; perdera a taciturnidade, interessava-se pouco a pouco pela vida.
Mas a salvação de d. Sofia eram os pequerruchos, muito clarinhos e loiros, tais quais ela sonhara os netos. Um começava a falar, o outro já dizia tudo numa meia língua que era uma música deliciosa. Ela, que tinha o espírito criador e era, sobre todas as coisas, amiga da humanidade, toda se desvelava em aperfeiçoar aqueles dois seres, caídos como mercê divina nos seus braços saudosos.
Já decretara: um seria médico, o outro seria engenheiro; e ambos produziriam obras benéficas e se casariam com bondosas mulheres!
Assunção sorria, animando a fantasia da sua querida velha. A experiência de nada serve aos teimosos: e ela era uma obstinada.
Não fora ele acalentado com as mesmas esperanças enganosas, certezas que ficaram em esboço nos dias da mocidade?
Às vezes ainda, interrompendo o silêncio do serão, d. Sofia suspirava:
– Quando me lembro, meu filho...
– Não se lembre; apague da lembrança o que não lhe for agradável! Assim, sou mais seu...
– És de Deus. Eu sou humana e amo a humanidade acima de tudo o mais! Não sei a que fonte foste buscar esse misticismo, que te isolou do mundo para que te criei. A tua profissão obriga-me a respeitar-te, a temer-te quase... Há ocasiões em que deixo de ver em ti o meu filho, sujeito à minha autoridade, para só considerar o sacerdote, o julgador que me há de punir ou absolver...
Às vezes, também, era ele que falava, consolando-a:
– A sua vida conjugal foi curta. Meu pai não lhe deixou senão a impressão da felicidade estonteadora. Períodos longos de casamento desvanecem quase sempre encantos que julgaríamos eternos. Assim, vivo para um ideal que não me pode trazer desilusões... Depois, acredite: se eu não fosse padre, seria igualmente celibatário...
A voz dele era morna, abafada por um desgosto calado, amigo do segredo.
A mãe fingia acreditar naquela inspiração do céu, descida a contentar a alma silenciosa do filho. O fato estava consumado, toda a reação seria loucura; procurava resignar-se. Em vão. A igreja era a sua rival, tirara-lhe o filho dos braços, impusera-lhe o sacrifício por norma e a solidão por dever!
Ainda se ele tivesse um organismo de combatente, de lutador! Se o visse no parlamento... se o lesse nos livros... Mas Assunção talhara-se na forma rústica e acomodada do capelão de aldeia, alma simples em corpo simples, servo humilde dos homens e de Deus.
Por fortuna, ele era muito tolerante: parecia-lhe a ela, às vezes, que ele se vestira de batina por comodidade egoísta, como um meio de fugir às assiduidades dos outros homens e à solicitação das mulheres... Era um meio de viver no mundo fora do mundo, conforme as exigências da sua neurastenia...
Passado um longo período de abatimento e de taciturnidade, Assunção readquiria a calma de outros dias, e foi então que principiou a interessar-se pelas leituras portuguesas, a enriquecer a sua modesta biblioteca de livros clássicos e a jardinar no terreno do morro, para onde abria a porta do seu quarto.
Argemiro enviuvara, e era à influência da sua companhia, muito mais assídua, que d. Sofia atribuía esse milagre.
Agora ele revelava uma preocupação: Glória! A menina era o seu cuidado melhor. Lamentava-se de a ver muito solta, criada sem disciplina, como uma selvagenzinha! A avó era uma santa, dizia ele, mas incompetente para a dirigir.
Depois, a invocação constante que ela fazia da filha morta, chegara a criar em todos de casa como que a ilusão de que de fato ela existia, invisível, vigiando com saudade a sua órfã...
D. Sofia comentava:
– É uma espécie de loucura, a que algumas mulheres são sujeitas; mas não me consta que nenhuma a tivesse levado a esse grau! Os filhos únicos acarretam grandes desequilíbrios aos pais. É mais uma razão para te interessares pela pobre menina. Realmente, os mortos vão depressa... quando não deixam as mães no mundo! Faze por esclarecer a baronesa. Que se resigne à idéia de que, da linda Maria, só existem os ossos...
– Tal afirmação não ficaria bem em minha boca...
– Não estará na tua consciência? Sorris?! pois então, filho, alimenta a fogueira em que a pobre senhora se consome. Levas-lhe achas e fósforos, não te espantes de a veres arder! Se a alma existe, a de Maria trocaria o céu para estar ao pé da filha... Era extremosa! E nesse caso a baronesa tem razão...
Assunção jardinava. De joelhos na terra, podava uma “Príncipe negro” quando a mãe subiu acompanhada de visitas: Alice e Glória.
– É quando eu gosto de o ver de joelhos! – exclamou rindo d. Sofia, apontando para o filho, que levantou os olhos surpreendido.
– Aqui!
– Viemos visitar d. Sofia! – exclamou Glória. – O senhor não merece!... Há dois dias que não vai lá! Vovó está zangada! De mais a mais, papai foi para S. Paulo!
– Han?!
– Foi, sim. No mesmo dia em que viemos da chácara ele foi chamado por um telegrama! Não sabia?
– Não!
Houve uma troca de olhares involuntária entre Alice e Assunção. Que! Pois ela desconfiaria?!...
A moça voltara-se para o terracinho, olhando agora para o mar, muito azul.
Assunção pedia desculpas, tinha as mãos sujas de terra. Correu a lavá-las, enquanto d. Sofia mandava vir cadeiras para o jardim.
– Isto sempre é mais bonito que lá dentro. Casa de uma velha e de um padre não tem alegria. Sentem-se aqui, olhando para o mar... assim. A vista é bonitinha, hein? Com que então, sra d. Maria da Glória, está muito adiantada?
– Qual!
– Não?! Pois é pena: está ficando uma moça! – E voltando-se para Alice:
– Como esta menina cresce! Acho-lhe uma diferença! É o pai!
– Sim... parece-se – confirmou Alice.
Glória não se sujeitou à cadeira, levantou-se para revistar os canteiros e uns caixotinhos que via pregados ao muro. As duas senhoras conversavam e tão entretidas pareciam uma com a outra, que Assunção ao voltar do lavatório, preferiu ir avisar Glória de que não mexesse nos caixotinhos, que eram casas de abelhas e iria perturbá-las.
– Eu já tinha pensado nisso – respondeu a menina. – Ainda ontem d. Alice me explicou, no jardim lá de casa, a vida desses bichinhos. Tudo no mundo tem interesse, não é verdade? Eu tinha raiva das abelhas desde aquele dia, lembra-se?, em que fui picada no pescoço por uma deste tamanho! Tive uma dor! Pois agora já até quero bem às abelhas... O caso é haver quem nos explique as coisas!
– Que te explicou d. Alice a respeito?
– Que as abelhas freqüentam as flores para chupar-lhes o mel, transportando o pólen de umas para as outras e...
– E explicou-te também o que era pólen?
– Certamente! Com uma flor na mão. Uma açucena!
– Conta tudo!
– Numa lição só não se pode aprender muito! Assim mesmo eu percebo bem d. Alice, exatamente porque ela não ensina – conversa. Falou das abelhas... Falou das mariposas, disse histórias que eu não sabia e de que gostei... Prometeu levar-me à Tijuca para ver borboletas azuis muito grandes, que há lá... Mas vovó... Creio que não me deixará ir só com ela... Se o senhor fosse!
– Irei.
Glória bateu palmas com alegria, mas de repente tornou-se séria, olhando para uma roseira completamente coberta de flores.
– Queres um ramo?
– Não. A última vez que fomos ao cemitério encontramos uma porção daquelas rosas no túmulo da mamãe... Foi o senhor! E vovó pensou que tivesse sido papai!...
– Foi teu pai... Levou-as daqui... Mas não lhe digas nada, que ele não gosta que se fale nisso! Olha para o mar!
– O seu jardim é muito pequenino!
– Basta para mim... Olha este rainúnculo...
Enquanto Assunção fazia Glória ver as suas flores, d. Sofia conversava com Alice. Mandara subir os pequenitos. A moça pusera um nos joelhos e anelava os cabelos do outro carinhosamente.
Que se dizia? Menos do que se adivinhava. A simpatia nascera logo entre ambas. Assunção pousou por um instante os olhos nelas e desviou-os para além, para o infinito... Tinha sido aquele o sonho da mãe: uma mulher moça a seu lado, cercada de crianças lindas...
A tarde morria afogada em azul. Já no céu brilhava a meia lua, e uma neblina prateada vinha da barra, cobrindo o mar.
– É tarde, Glória...
– Adeus!
Nessa noite, ao chá, d. Sofia disse ao filho:
– Aconselha Argemiro a casar-se com aquela moça. Ela fará a sua felicidade.
E depois, baixo e num suspiro:
– Já que não pode fazer a tua.