Chegara a hora da prestação de contas. Argemiro escrevia à secretária, quando Alice entrou na sala. Como da primeira vez que se falaram, ela ficara contra a claridade, encolhida no seu vestido de lã barata, escura, e com o véu descido até o queixo.

Estava pronta para sair; esperava ordens...

Argemiro remexeu nos papéis. Abriu um caderninho dos assentamentos do mês, que ela lhe mandara somado e com saldo.

Sem saber porquê, Argemiro sentia-se embaraçado, e foi com certa timidez que convidou a moça a sentar-se.

– Estou bem...

– Não; sente-se.

– Obrigada...

Ela parecia querer ficar em pé, pronta para fugir!

Ele gaguejou:

– Então...

Evidentemente não sabia como principiar.

De repente:

– Os seus cadernos estão numa ordem admirável. Realmente eu nunca imaginei que uma senhora entendesse tanto de contas... é um guarda-livros! Contudo... parece-me encontrar aqui um pequeno engano...

Alice aproximou-se, com um arrepiozinho de susto.

Ele, indicando-lhe uma cadeira, a seu lado:

– Tenha a bondade de somar...

Ofereceu-lhe a pena, que ela mesma molhou no tinteiro.

Estavam sós. A casa em silêncio.

Alice sentou-se, com aflita curiosidade, e levantando o véu baixou os olhos para o caderno, recomeçando a somar parcelas indicadas. Entretanto, ele contemplava-a pela primeira vez. Era mais bonita do que pensava; tinha a pele suave, os olhos pestanudos e o cabelo escuro e abundante...

A mão esguia, branca, movia-se sobre o papel num leve tremor nervoso.

Argemiro pensava:

“Fui um estúpido; eu deveria ter apressado este instante. Ela é deliciosa!” E aspirava num deleite o aroma que vinha dela, aquele cheiro de cidrilha, de malva, ou flor de fruta e que constituía já uma das suas necessidades.

Alice corava intensamente. Não atinava com o erro!

– Não acho... – confessou por fim.

– Entretanto, ele não é pequeno...

Alice levantou com espanto os olhos para Argemiro; ele fixou-os com ternura. Estremeceram ambos.

Ela tornou a baixar a vista para o caderno. Letras e cifras dançavam estonteadoramente. Argemiro percebeu-lhe a comoção. Bem dissera a sogra! E com alegria:

– Quer que lhe aponte o engano?

– Se faz favor...

– Está aqui!

Argemiro apontou para a verba que representava o ordenado da moça, apressando-se em continuar:

– A senhora reduziu esta quantia...

– Foi o que nós combinamos!...

– Combinamos o dobro.

– Afirmo-lhe que não.

– Devo-lhe muito...

– Não me deve nada.

– Tê-la-ei ofendido?

– Não...

Estava ele outra vez encalhado. Nem para trás nem para diante, sem saber que dizer, todo olhos para o rosto, que já desaparecia sob o véuzinho bordado.

– D. Alice!

A moça respondeu com um olhar tímido.

Ele calou-se. Parecia-lhe impossível aquela estupidez!

– Então a senhora vai-se mesmo embora...

– É preciso.

– Se Glória lhe pedisse para ficar... Ela é tão sua amiga...

– Nem assim...

Argemiro levantou-se e disse com voz grave e resoluta:

– Tem razão. O seu lugar não é aqui, agora que a vi e a conheço. Só lhe peço uma coisa: que me consinta ir amanhã à sua casa, em companhia de minha filha... pedir-lhe perdão...

Alice esboçou um gesto de protesto. Receava chorar se falasse.

Ele aproximou-se e ficaram ambos calados, adivinhando-se através do silêncio, até que Maria da Glória gritou da porta:

– D. Alice! o Feliciano já levou a sua mala!



Dois meses depois, numa linda manhã, os barões assistiram ao casamento de Argemiro e de Alice, feito por Assunção, testemunhado por Adolfo Caldas, Teles e d. Sofia.

A cerimônia foi simples e sem lágrimas. A baronesa conteve-se. Muito pálida, dentre as sedas negras do vestido, ela adquirira pelo esforço enérgico da vontade uma rigidez de estátua. Nem um músculo das faces lhe tremia. Com as mãos pousadas nos ombros da neta, ela parecia olhar para tudo como do alto de uma torre, imperturbavelmente.

À tarde Assunção foi visitá-la. Tinham voltado à chácara do subúrbio. Glória correu a recebê-lo no portão. Estava decidido que ela viveria ali uns meses, para consolar a avó. Achava agora tudo tão bonito! O avô lá andava no horto, verificando o estado das suas plantas, alegre como um patinho na água! Ela estava por ali à cata de mangas maduras...

Assunção acariciou-lhe a cabeça e entrou sozinho na saleta da baronesa. Ela ali estava no seu cantinho costumado, febril, com o corpo alquebrado, descaído, os olhos avermelhados entre as pálpebras empapuçadas. Vendo-o, chamou-o a si; e segurando-lhe as mãos, numa queixa soluçada:

– Minha filha tornou a morrer hoje, Assunção; agora está só comigo e eu vou perdendo as forças para chorar...

– Não a chorará sozinha... – murmurou ele quase em segredo, corando.

Ela voltou-se, e contemplou-o num misto de esperança e de assombro.

– Você?...

Ele olhou silenciosamente para a batina, como para explicar tudo.

Transfigurada, num movimento inconsciente, alegre, ela apertou-o nos braços e exclamou:

– Meu filho!