Personagens: VITORINO, ERNESTO, GONZAGA, MAGALHÃES, CARNEIRO e RAMIRO

RAMIRO (Entrando com um queijo embrulhado e diversos embrulhos sobraçados.) - Boa tarde, meus senhores. Os senhores não viram por aqui uma menina de vestido branco, nariz aquilino, cabelos crespos, um pequeno sinal na face direita.

CARNEIRO - Baixota, gordota, bonitota? Não vimos, não, senhor.

RAMIRO - Deixem-se de caçoadas, que eu falo sério. Quem é o dono da casa?

CARNEIRO (Olhando para o queijo.) - Quer que lhe alivie deste peso?

RAMIRO - Mas com os diabos isto é para desesperar!

MAGALHÃES - Meu caro amigo, chegou a propósito.

RAMIRO - Acaso sabe onde ela está? Oh! Diga-me, senhor, pelo amor de Deus, onde está ela?

MAGALHÃES - Ela quem?

RAMIRO - Minha filha, que perdeu-se em um bonde e que a esta hora vaga pela cidade, sem uma bengala que a proteja. Eis aí em que deu a medida da polícia. Chuche, seu Ramiro! Não há nada como morar fora da cidade, dizem todos. Pois não, é ótimo! Vai um cidadão para casa, carregado como uma carroça de trastes, leva muitos trambolhões, pontapés e socos, para escalar um bonde; quando julga-se aboletado, empurram-no da plataforma, porque a lotação está completa e lá se vai um pai sem uma filha, uma família sem chefe... Isto é para fazer perder a cabeça!

MAGALHÃES (Mostrando o saco.) - Em todo o caso foi a Providência que aqui o trouxe para praticar uma boa ação.

RAMIRO - O que quer o senhor com este saco?

MAGALHÃES - Uma esmola para as vítimas da epidemia de Buenos Aires.

RAMIRO - Sim, senhor; dou a esmola; mas fique sabendo que no Rio de Janeiro há uma epidemia maior do que todas as que possam assolar o universo.

MAGALHÃES - Qual é, meu caro senhor?

RAMIRO - A epidemia da caridade. Há uma chuva de gafanhotos na China, o Brasil, que tem grandes interesses no Celeste Império, trata logo de minorar os sofrimentos dos sectários de Confúcio. Arvora-se uma comissão com o respectivo presidente, que sai pelas ruas a esmolar. Livre-se então quem puder. Amigos, conhecidos, desconhecidos, todos, ninguém escapa, todos hão de concorrer com o seu óbolo para o saco: em outro tempo dois vinténs era o óbolo do remediado; a praga dos cartões, porém, matou o cobre, e quando nos apresentam uma sacola, lá se vão de pancada dois tostões. A caridade, esse sentimento rei, que o Cristo depositou no santuário da nossa consciência, tornou-se uma virtude oficial. Esmolam arregimentados, com murças, insígnias, nas portas dos templos, dos teatros, do passeio, nas cancelas do Jóquei Clube, por toda a parte, enfim, onde a filantropia fique bem patente. O Evangelho diz que a mão direita não deve saber o que dá a esquerda. O que a mão direita dá, entre nós, não só o sabe a esquerda, como um terceiro, que se coloca entre o rico e o pobre como procurador deste. Um filantropo quer comemorar o nascimento de um filho ou o aniversário natalício da mulher, liberta o ventre de uma escrava de oitenta anos, e manda publicar logo em todas as folhas diárias: "Ato de filantropia. O Sr. Fulano dos Anzóis Carapuça, querendo solenizar o dia, etc., etc., libertou o ventre de sua escrava Quitéria." Atos como este não se comentam. Outros libertam ventres, que ainda podem dar frutos e vivem desconhecidos na sociedade.

MAGALHÃES - Pois bem, meu amigo, proteste, mas pague.

RAMIRO - Já lhe disse que dou a esmola. O que desejo é que os senhores, mancebos em cujos peitos pulsam os mais generosos sentimentos, se convençam de que vão no meio em todo este negócio, como eu. As honras, as condecorações, os agradecimentos oficiais e as tetéias, são para os graúdos, ao passo que para os pequenos há a consolação de voltarem-se para o céu e exclamarem - Meu Deus, vós sois testemunha de que eu fiz o bem pelo bem. Aqui tem dez tostões.

MAGALHÃES - Obrigado. Falou como um Demóstenes.

RAMIRO (Canta.)


Nesta terra caridosa
Os pequenos e miúdos,
Servem todos, sem exceção,
De degrau para os graúdos.

Muito tolo é quem trabalha
Para os grandes elevar,
Que no dia da ascensão
Pontapés há de tomar.

Eles são grandes gigantes,
Nós pequenos pigmeus;
Eles sábios e ilustrados,
Nós camelos e sandeus.

Nesta terra caridosa
Os pequenos e miúdos,
Servem todos, sem exceção,
De degrau para os graúdos.

Mas onde estará minha filha? Elvira, anjo de candura, onde paras? Olá de dentro?

CARNEIRO (Olhando para o fundo.) - Lá está um grande grupo. A ele, rapaziada! (Saem todos correndo.)