A Maravilhosa Vida de Santos=Dumont/Capítulo 3
Capitulo III – Infância em Cabangu
H. G. Wells senta-se na poltrona do lobby como uma criança, ansioso por uma nova historia, inclina seu corpo para frente e apóia sua cabeça nas duas mãos que por sua vez tem o cotovelo apoiado nos joelhos.
Santós ainda tem aquele olhar para o vazio enquanto fala:
“Aos sete anos, já eu tinha permissão para guiar as locomoveis de grandes rodas empregadas na nossa propriedade nos trabalhos do campo.
Aos 12, deixavam-me tomar o lugar do maquinista das locomotivas Baldwin que puxavam os trens carregados de café nas 60 milhas de via férrea assentadas por entre as plantações. Enquanto meu pai e meus irmãos montavam a cavalo para irem mais ou menos distante ver se os cafeeiros eram tratados, se a colheita ia bem ou se as chuvas causavam prejuízos, eu preferia fugir para a usina, para brincar com as máquinas de beneficiamento.
Presumo que em geral não se faz qualquer idéia do método cientifico que preside á exploração de uma fazenda de café no Brasil. Volta e meia era chamado para consertar o descascador e o separador mas os desafios mais sofisticados vinham das peneiras moveis.
As peneiras moveis, com especialidade, arriscavam-se a se avariar a cada momento, sua velocidade bastante grande, seu balanço horizontal muito rápido, consumiam uma quantidade enorme de energia motriz.
Constantemente fazia-se necessário trocar as polias. E bem me recordo dos vãos esforços que empregávamos para remediar os defeitos mecânicos do sistema.
Causava-me espécie que, entre todas as máquinas da usina, só essas desastradas peneiras moveis não fossem rotativas. Não eram rotativas, e eram defeituosas! Creio que foi este pequeno fato que, desde cedo, me pós de prevenção contra todos os processos mecânicos de agitação, e me predispor a favor do movimento rotatório, de mais fácil governo e mais prático.
Naquela época tinha certeza que dentro de meio século o homem conquistaria o ar com o emprego de máquinas voadoras mais pesadas que o meio onde se movem.” diz com um olhar de esperança.
“Ser-me-ia impossível dizer com que idade construí os meus primeiros papagaios de papel.”continua Santós “Lembro-me entretanto nitidamente das troças que faziam de mim os meus camaradas, quando brincavam de ‘passarinho-voa’.
O divertimento é muito conhecido dentre as crianças brasileiras. Todos colocam-se em torno de uma mesa, e uma delas vai perguntando, em voz alta: “Pombo voa?”... “Galinha voa?”... “Urubu voa?”...”Abelha voa?”... E assim sucessivamente. A cada chamada todos nós devíamos levantar o dedo e responder. Acontecia porém que de quando em quando gritavam “Cachorro voa?”... “Raposa voa?”... ou algum disparate semelhante, afim de nos surpreender. Se algum levantasse o dedo tinha de pagar uma prenda.
E meus companheiros não deixavam de piscar o olho e sorrir maliciosamente cada vez que perguntavam: “Homem voa?”... É que no mesmo instante eu erguia o meu dedo bem alto, e respondia:
“ V o a . . . “ com entonação de certeza absoluta, e me recusava obstinadamente a pagar prenda.
Nesse tempo, confesso que meu autor favorito era Julio Verne. A sadia imaginação deste escritor verdadeiramente grande, atuando com magia sobre as imutáveis leis da matéria, me fascinou desde a infância.
Nas suas concepções audaciosas eu via, sem nunca me embaraçar em qualquer dúvida, a mecânica e a ciência dos tempos do porvir, em que o homem, unicamente pelo seu gênio, se transformaria em um semi Deus.
Com o capitão Nemo e seus convidados explorei as profundidades do oceano, nesse precursor do submarino, o “Nautilus”. Com Philéas Fogg fiz em oitenta dias a volta do mundo. Na “Ilha a Hélice” e na “Casa a Vapor”, minha credulidade de menino saudou com entusiástico acolhimento o triunfo definitivo do automobilismo, que nessa ocasião não tinha ainda nome. Com Heitor Servadoc naveguei pelo espaço.
Com Robur conquistei o ar no Albatroz. Mal sabia que em menos de 10 anos depois, eu mesmo, estaria sobrevoando Paris na minha Balladeuse.”
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