(Do Evangelho de Buda)

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Ora Buda, que, em prol da nova fé, levanta

Na Índia antiga o clamor de uma cruzada santa

Contra a religião dos brâmanes, - medita.



Imensa, em torno ao sábio, a multidão se agita:

E há nessa multidão, que enche a planície vasta,

Homens de toda a espécie, árias de toda a casta.



Todos os que (a princípio, enchia Brahma o espaço)

Da cabeça, do pé, da coxa ou do antebraço

Do deus vieram à luz para povoar a terra:

- Xátrias, de braço forte armado para a guerra;

Saquias, filhos de reis; leprosos perseguidos

Como cães, como cães de lar em lar corridos;

Os que vivem no mal e os que amam a virtude;

Os ricos de beleza e os pobres de saúde;

Mulheres fortes, mães ou prostitutas, cheio

De tentações o olhar ou de alvo leite o seio;

Guardadores de bois; robustos lavradores,

A cujo arado a terra abre em frutos e flores;

Crianças; anciãos; sacerdotes de Brahma;

Párias, sudras servis rastejando na lama;



- Todos acham amor dentro da alma de Buda,

E tudo nesse amor se eterniza e transmuda.

Porque o sábio, envolvendo a tudo, em seu caminho

Na mesma caridade e no mesmo carinho,

Sem distinção promete a toda a raça humana

A bem-aventurança eterna do Nirvana.



Ora, Buda medita.

À maneira do orvalho,

Que, na calma da noite, anda de galho em galho

Dando vida e umidade às árvores crestadas,

- Aos corações sem fé e às almas desgraçadas

Concede o novo credo a esperança do sono:

Mas... as almas que estão, no horrível abandono

Dos desertos, de par com os animais ferozes,

Longe de humano olhar, longe de humanas vozes,

A rolar, a rolar de pecado em pecado?.



Ergue-se Buda:

"Puma!"

O discípulo amado

Chega:

"Puma! é mister que a palavra divina

Da água do mar de Omã à água do mar da China,

Longe do Indus natal e das margens do Ganges,

Semeies, através de dardos, e de alfanjes,

E de torturas!"



Puma ouve sorrindo, e cala.

No silêncio em que está, um sonho doce o embala.

No profundo clarão do seu olhar profundo

Brilham a ânsia da morte e o desprezo do mundo.

O corpo, que O rigor das privações consome,

Esquelético, nu, comido pela fome,

Treme, quase a cair como um bambu com o vento;

E erra-lhe à flor da boca a luz do firmamento

Presa a um sorriso de anjo.


E ajoelha junto ao Santo:

Beija-lhe o pó dos pés, beija-lhe o pó do manto.



"Filho amado! - diz Buda - essas bárbaras gentes

São grosseiras e vis, são rudes e inclementes;

Se os homens (que, em geral, são maus os homens todos)

Te insultarem a crença, e a cobrirem de apodos,

Que dirás, que farás contra essa gente inculta?"



"Mestre! direi que é boa a gente que me insulta,

Pois, podendo ferir-me, apenas me injuria..."



"Filho amado! e se a injúria abandonando, um dia

Um homem te espancar, vendo-te fraco e inerme,

E sem piedade aos pés te pisar, como a um verme?"


"Mestre! direi que é bom o homem que me magoa,

Pois, podendo ferir-me, apenas me esbordoa..."



"Filho amado! e se alguém, vendo-te agonizante,

Te furar com um punhal a carne palpitante?"



"Mestre! direi que é bom quem minha carne fura,

Pois, podendo matar-me, apenas me tortura..."



"Filho amado! e se, enfim, sedentos de mais sangue,

Te arrancarem ao corpo enfraquecido e exangue

O último alento, o sopro último da existência,

Que dirás, ao morrer, contra tanta inclemência?"

"Mestre! direi que é bom quem me livra da vida.

Mestre! direi que adoro a mão boa e querida,

Que, com tão pouca dor, minha carne cansada

Entrega ao sumo bem e à suma paz do Nada!"



"Filho amado! - diz Buda - a palavra divina,

Da água do mar de Omã à água do mar da China,

Longe do Indus natal e dos vales do Ganges,

Vai levar, através de dardos e de alfanjes!

Puma! ao fim da Renúncia e ao fim da Caridade

Chegaste, estrangulando a tua humanidade!

Tu, sim! podes partir, apóstolo perfeito,

Que o Nirvana já tens dentro do próprio peito,

E és digno de ir pregar a toda raça humana

A bem-aventurança eterna do Nirvana!"


( As Viagens )