II


O almocreve assentou duas vigorosas pancadas no solido portão de castanho, deante do qual tinham parado.

As primeiras vozes, a responderem-lhe, foram as de dois cães, que acudiram de longe ao signal e vieram ladrar á porta com furia, que fez agourar mal a Henrique da cordialidade da recepção que o esperava. De facto as intenções dos quadrupedes não pareciam demasiado hospitaleiras. O almocreve divertia-se excitando-os de fóra com uma vara de vime, apesar de quantas recommendações de prudencia lhe fazia Henrique, não em demasia socegado.

A final ouviu-se uma voz aspera e rouca, chamando os cães á ordem, se é licito, sem irreverencia, empregar n’este caso a phrase consagrada para outro genero de algazarra.

Henrique ouviu rodar a chave, correr os ferrolhos, levantar a aldraba, gemerem os gonzos, e emfim um homem de lavoura alto e magro, trazendo em punho um lampeão de frouxissima luz, appareceu-lhes á porta e saudou-os com a fórmula do estylo:

― Ora Nosso Senhor lhes dê muito boas noites.

E, levantando a luz á altura do rosto de Henrique, poz-se a miral-o com a menos ceremoniosa curiosidade.

― É o sobrinho cá da senhora, não é verdade?

― Sou eu mesmo.

― Está um tempo muito azêdo. Eu já julgava que não vinham. Entre.

Henrique não se resolvia a acceitar o convite, porque lhe continuavam a impôr respeito os olhares ferinos e os rugidos surdos dos dois façanhosos quadrupedes, cuja má vontade era a custo refreada.

― Entre, entre ― insistia o homem.

― Mas esses animalejos?...

― Ah! isto não faz mal. Sae-te p'ra lá, Lobo: passa, Tyranno!

Lobo! Tyranno! Que nomes! E dizia o homem que não faziam mal!

― C'os diabos! ti'Manuel ― disse o almocreve ― em occasião de se esperarem hospedes, não se soltam assim os cães. Os diabos não são nenhuns cordeiros. Olhe no outro dia o sr. Joãosinho das Perdizes, que por pouco lhes deixava nos dentes as barrigas das pernas.

― Forte perca! ― resmoneou o outro. ― Não trouxesse cá os d’elle. Não tem dúvida; entre o senhor, que elles não lhe fazem mal.

― Não entro; assim é que não entro ― teimou Henrique, a quem as palavras do almocreve acabaram de fortificar na sua resolução.

O homem em vista d’isto encolheu os hombros e bradou:

― Ó Luiz!

Uma creança de cinco annos, e quasi nua, correu ao chamamento.

― Enxota para lá esses cães, que aqui o senhor tem mêdo.

A creança, á palavra mêdo, fitou Henrique com uns olhos espantados, e tomando do chão um tronco de tojo, deu-se a zurzir desapiedadamente nas feras, que, com todos os signaes de respeito, de orelha baixa e cauda abatida, fugiram deante d’ella.

O orgulho de Henrique de Souzellas ficou um tanto maltratado com o desfecho da scena; mas a prudencia consolava-o, dizendo-lhe que andára ajuizadamente.

― Agora vossemecê ― disse o camponez para o almocreve ― arranje-se como puder e mais a bêsta ahi pelas lojas, emquanto eu ensino o caminho ao senhor. ― Vão, vão com Nossa Senhora, que eu cá me arranjarei. Muito boas noites, sr. Henriquinho.

― Adeus, José ― disse Henrique, passando para a mão do guia a esportula da gorgeta, e após seguiu, com as pernas trôpegas de cavalgar, o homem do lampeão.

Não era para dissipar a impressão penosa, que subjugava o espirito de Henrique, o aspecto que lhe offerecia, áquella hora da noite, a parte da quinta, por onde era conduzido para a casa de Alvapenha.

Primeiro, trilhou o pavimento molle de um quinteiro ou eido, estradado de altas camadas de matto e embebido de chuva, d’onde se exhalava um cheiro de cortumes, pouco de lisonjear o olfacto mal habituado a estes aromas campezinos. A luz do lampeão a custo conseguiu evitar a Henrique o tropeçar n’um carro desapparelhado, n’uma dorna, n’uma pia para gallinhas, e em outros objectos que atrancavam o quinteiro. Transpondo a cancella que terminava este, seguiram por uma rua de folhas; atravessaram diagonalmente a horta, pelo carreiro que a dividia; ladearam a eira e a casa do cabanal, e, effectuados mais alguns rodeios, acharam-se finalmente junto da escadaria de pedra, por onde se subia para uma especie de patamar ou varanda alpendrada, que servia de um modesto portico á casa de Alvapenha.

A propriedade da tia de Henrique era um genuino typo de casa rustica, á moda do Minho.

Ao subir as escadas, e apesar de mal poder divisar os objectos á escassa luz que os allumiava, recebeu Henrique a primeira impressão agradavel de toda aquella mal estreada excursão.

Estas escadas, esta varanda de pedra e este alpendre avivaram n’elle memorias, quasi apagadas. Lembrava-se agora vagamente de ter brincado alli, a cavallo n’esse mesmo parapeito, então, como agora, enfeitado de uma formidavel cohorte de aboboras meninas, victimas votadas ás festas do proximo Natal.

A um canto do patamar deparou-se-lhe ainda um grande vaso de louça, que elle, havia vinte e tantos annos, conhecera, e ao qual tinha a ideia vaga de haver quebrado uma aza; abaixou-se no intento de se certificar, e viu que de facto ainda lhe faltava a aza, sendo este o unico estrago que após tanto tempo o velho utensilio soffrêra.

― É admiravel! ― não pôde deixar de exclamar Henrique ao fazer a descoberta, vendo que em oito dias operava maior reforma nos seus aposentos em Lisboa, do que n’um quarto de seculo se realisava em Alvapenha.

O hortelão bateu á porta e disse para dentro que era o sobrinho da senhora que chegava.

Seguiu-se um mexer de cadeiras, um trocar de vozes, um arrastar de passos; moveu-se a chave na fechadura; abriram-se as portas e no limiar appareceu de braços abertos a tia Dorothéa, e por traz d’ella, elevando a luz acima do hombro da ama, a criada Maria de Jesus, a que, havia trinta annos, lhe era companheira e interessada em lagrimas e pesares. Já Henrique lhe andára ao collo no tempo em que estivera creança na quinta.

Deante da figura esbelta, do typo varonil e do comprido bigode de Henrique, a sr.a Dorothéa reprimiu as suas expansões e quasi recuou.

Nunca mais vira Henrique desde que este, aos cinco annos, deixára Alvapenha, e dir-se-hia que esperava ainda encontrar os mesmos cabellos louros e annelados e o mesmo rosto menineiro da travêssa creança de outros tempos, em vez do homem feito, em que os vinte e tantos annos volvidos o tinham transformado.

Ha d’estas illusões na gente.

A mais segura razão não está precavida contra ellas; a infundada surpreza invade-nos de subito, e os labios não podem prender a exclamação que a denuncia.

― Pois na verdade tu és o Henriquinho?! ― disse espantada a boa senhora.

― Eu julgo que sim, tia Dorothéa.

― Tu! Ai como estás um homem! Ó Maria de Jesus, você não quer vêr isto!?

― Parece mesmo um soldado! ― disse a criada, igualmente estupefacta.

― Credo, mulher! Santissima Trindade! Você que está a dizer? Nossa Senhora nos livre de tal! ― exclamou a ama, em cujo conceito o soldado estabelecia a transição do homem para o diabo.

No entretanto Henrique de Souzellas abraçava a tia, que havia tanto tempo que não vira, e ella correspondia-lhe, beijando-o com todo o carinho e chorando.

Chorando por quê? Por quê? Pela muita bondade que tinha n’aquella alma. A bondade é um rico manancial, que brota lagrimas ao toque da menor commoção.

Henrique não tinha ainda bem conseguido libertar-se dos roxeados amplexos e mais provas de affecto de sua tia, quando se sentiu prêso em novos laços. Era Maria de Jesus, que o abraçava tambem e lhe pespegava nas faces dois beijos muito chiados, como aquelles que veem a ferver do coração, e isto acompanhado de um ― Ai o meu rico filho! ― tão eloquente como os beijos.

Henrique, habituado ás etiquetas da civilisação urbana, que estabelece entre amos e criados distancias desconhecidas na aldeia, extranhou um pouco a familiaridade, mas sujeitou-se a ella sem reflexões.

Maria de Jesus dizia, ainda admirada:

― Ó senhora! Não que uma coisa assim! Pois é este o menino que vinha á cozinha limpar o tacho, em que se fazia a marmelada!

― É verdade! E que boa marmelada cá se fazia!

― Lambareiro! ― disse a tia, sorrindo. ― Se eu soubesse que eras assim, não tinha mandado lavar o tacho do dôce, que ainda hoje serviu.

― Sim? Então ainda se faz dôce cá em casa, como d’antes? ― perguntou Henrique.

― Pois então? todos os annos. Mas valha-me Deus! E não querem vêr nós aqui postas á palestra! Entra, menino, entra cá para dentro, que está frio e tu deves vir cançado.

― Um pouco, um pouco, tia Dorothéa.

E Henrique entrou para a sala.

Demoremo-nos no limiar para informar o leitor sobre as pessoas, em cuja casa se vae alojar com Henrique de Souzellas.

Não se imagina a santa paz de espirito, a placidez de paraiso, que estas duas mulheres ― D. Dorothéa e Maria de Jesus, ama e criada ― gosavam na quinta de Alvapenha, onde Henrique de Souzellas ia procurar allivio aos seus muitos e variados males.

Ambas da mesma idade, ambas muito aferradas aos seus habitos, ambas muito tementes a Deus e amigas do proximo, as duas celibatarias passavam alli uma vida, rescendente a um suave perfume de santidade, como o da alfazema e do rosmaninho, que lhes aromatizava as gavetas e de que se repassava toda a roupa branca, objecto muito dos seus cuidados.

A inalteravel harmonia, mantida havia tantos annos entre as duas, poderia ser exemplo á maior parte das familias d’este mundo. Entre velhas, que nunca tiveram filhos, circumstancia que em geral faz o humor mais acre e desabrido, era tanto mais para admirar o caso.

Tinham ellas porém a precisa tolerancia para fazerem mutuas concessões; cada uma fechava os olhos aos pequenos caprichos da outra, e tudo corria bem. Nunca a dentro d’aquellas paredes se ouviu uma só palavra, que, por mais alto pronunciada ou por menos expressiva de paciencia, destoasse da invariavel monotonia dos seus habituaes dialogos.

Eram um exemplo edificante para os vizinhos, que, pela maior parte, devorados por demandas entre primos e irmãos, paes e filhos, marido e mulher, mostravam infelizmente ser esta abençoada semente caída em improductivo terreno.

As discordias intestinas nas familias do seu conhecimento affligiam as duas sexagenarias e augmentavam o numero de Padre-Nossos com que todas as noites se faziam lembrar dos santos, de quem eram validas, pedindo-lhes a felicidade dos outros tanto ou mais do que a sua propria.

Ouvir rezar as duas santas velhas ― e era essa a occupação dos seus curtos serões ― equivalia a escutar uma resenha das differentes calamidades, que perseguem e apoquentam o genero humano, e que ellas, d’esta maneira, pretendiam evitar.

― Um Padre-Nosso e uma Ave-Maria a S. Marçal, para que nos livre do fogo ― dizia D. Dorothéa, e seguia-se o Padre-Nosso. ― Outro a Santa Luzia milagrosa, para que nos dê vista e claridade na alma e no corpo; outro a S. Braz, para que nos proteja da garganta; outro a S. Vicente, por causa das bexigas, etc. Seguia-se um Padre-Nosso por todos os que andam sobre as aguas do mar; outro por os pobres sem abrigo nem alimento; outro por os orphãos; outro pelos doentes; um pelos vivos; outro pelos mortos; um pelos justos; outro pelas almas do purgatorio, não hesitando até a sua caridade em transpôr as portas do inferno e pedir tambem a remissão dos condemnados. E ainda depois d’esta minuciosa e longa enumeração, um ultimo Padre-Nosso fechava a primeira serie, comprehendendo todos os não contemplados por esquecidos, ou por não terem logar na classificação.

Compunha a segunda serie a menção especial de cada uma das pessoas fallecidas das suas relações: parentes, amigos e conhecidos, por cujo «eterno descanço entre os resplendores da luz perpetua» oravam com verdadeira compunção. N’esta phalange ia tambem D. João VI, por quem, havia quarenta annos, se costumára a rezar D. Dorothéa, e não era ella mulher que rompesse com habitos semi-seculares. Era esse talvez o unico Padre-Nosso que a alma do monarcha recebia no Céo, com procedencia do seu antigo reino.

Quanto ás qualidades physicas, a imaginação dos leitores pintar-lh’as-ha melhor do que a minha descripção. Forçosamente conheceram uma d’estas boas velhas, para quem nos sentimos attrahidos; a quem se estima e com quem se brinca ao mesmo tempo; que nos podem inspirar sacrificios e simultaneamente nos tentam a travessura; a quem mystificamos agora e logo beijamos respeitosamente a mão; contra quem não reprimimos impaciencias, escutando depois submissos os seus nunca terminados sermões.

Ora estas velhas assim teem quasi sempre um typo uniforme, que é o reflexo exterior da bondade do coração; esse era o typo da tia Dorothéa com o seu vestido rôxo, o seu lenço castamente cruzado no peito, a sua touca de folhos alvissimos e de fitas escuras, o mólho de chaves á cinta, o livro de orações na algibeira e os oculos a marcarem no livro a reza habitual.

Maria de Jesus de igual maneira. Era apenas uma edição popular da mesma alma. Succedêra de mais com ellas o que é sempre de esperar de uma longa e intima convivencia; haviam reciprocamente adoptado maneiras e modos de pensar e de vêr e de dizer as coisas uma da outra, a ponto de qualquer d’ellas ser como que uma premissa d’onde a modo de conclusão, se deduzia a outra facilmente.

Tudo isto percebeu logo Henrique de Souzellas ao primeiro exame que fez das duas santas mulheres.

Entremos agora com elle para dentro da sala.

Quem, vinte annos antes, tivesse visitado a casa de Alvapenha e ahi voltasse de novo com Henrique julgaria, á vista da uniforme disposição de coisas mantida alli dentro em tão distantes épocas, que todo esse tempo não fôra mais do que um sonho de momentos.

Encontraria os mesmos móveis, na mesma collocação; as mesmas cobertas nos leitos, apenas mais desbotadas; as mesmas ou iguaes cortinas nas janellas; o mesmo cheiro de feno e alfazema na atmosphera dos quartos, os mesmos quadros na parede, as mesmas jarras nas cómmodas.

A memoria de Henrique, aquella inconstante e leviana memoria de rapaz estouvado, sentia-se acordar, á vista d’aquillo tudo.

A sala tinha uma physionomia caracteristica.

Supponha-se uma não muito ampla quadra de pouca altura, toda pintada a óca, e alumiada por duas mal rasgadas janellas de peitoril, com os seus competentes assentos de pedra, um defronte do outro, com meias cortinas de cambraia sempre corridas ― pleonasmo de discrição que se não justificava, visto que as janelas, abrindo para a quinta, não tinham vizinhança de cujos olhares precisassem de recatar-se. O tecto era de almofadas de castanho, em tempos pintado de azul, agora de uma côr duvidosa. Havia quinze annos que D. Dorothéa falava em o mandar retocar, mas o projecto, momentoso como era, ia sendo adiado de primavera para primavera. Orlava a sala, no alto, um friso ou cornija saliente, onde coroadas maçãs de inverno aguardavam, em vistosa fileira, a completa maturação, e derramavam no aposento o mais agradavel aroma. O pavimento, apesar de muito picado de caruncho, andava limpo e escafunado ― termo do vocabulario de casa ― que mettia gôsto vêl-o. Cada parede era um museu de estampas de devoção. Poucos santos e santas da côrte celestial não estavam alli representados e com um colorido, que era o maior peccado, a que estes bemaventurados haviam dado logar cá no mundo.

Cá se via Santa Quiteria e as suas sete companheiras; Santa Anna ensinando Nossa Senhora a ler; o Senhor dos Passos, venerado em S. João Novo, no Porto; o Bom Jesus de Bouças, representação da imagem, que, segundo reza a respectiva chronica, é obra das mãos de José de Nicodemus; os Santos Martyres de Marrocos, da igreja de S. Francisco, etc., etc. Sobre a cómmoda de pau preto era devotamente venerado o mais rubicundo, menineiro e bem disposto Santo Antonio, que ainda modelaram as mãos de santeiro afamado. E seja dito de passagem que não sei por que a tradição popular dá a este austero franciscano o aspecto chorudo de um moderno reitor de farta abbadia de aldeia.

No interior da redoma onde se abrigava o santo estava estabelecido o museu de raridades da tia Dorothéa. Eram flores artificiaes, concharinhas e caramujos, um rosario de caroços de azeitonas, uns poucos de vintens de prata, enfiados e pendentes do braço do menino Jesus, que o santo sustentava ao collo, veronicas, escapularios, uma campainha benta, uma medida do braço do Senhor de Mattosinhos, um pão do sacco de Santa Isabel, que vae na procissão de Cinza, no Porto, e outros objectos curiosos.

A mobilia da sala consistia em cadeiras de palhinha, que gemiam quando entravam em serviço, como militar, cujas articulações o rheumatismo invadiu; mesas cobertas com colchas de chita; bahús cravados de pregaria amarella, disposta em lettras e arabescos; uma papeleira de pau santo, e uma gaiola com um canario decrepito, objecto, havia muitos annos, das tentações de um gato, mais decrepito do que elle e pertencente ás classes inactivas.

Henrique, adivinhando por todo aquelle cheiro de beatitude e de antiguidade que alli se respirava, os habitos da casa, sentia já certo desconfôrto, como de quem é arrancado de subito ao ambiente, em que se educou e vive, e engolfado n’um ambiente extranho; especie de asphyxia moral, não menos angustiosa do que a do peixe fóra da agua.

A saudade que ao principio sentira, dissipára-se já. O perfume da saudade é como o de certas flores, que só se percebe quando de longe o recebemos. Se, illudidos, as tentamos aspirar de perto, dissipa-se.

Acontecera isto com Henrique.

Cada vez portanto se lhe radicava mais funda a crença de que não seria por muito tempo que se demoraria alli.

― Os emollientes do doutor ― pensava elle, emquanto sua tia falava ― serão efficazes para quem os pudér soffrer sem enjôo, mas para mim...

No entretanto sentou-se.

― Ora o Henriquinho! ― dizia ainda D. Dorothéa, pondo-se de braços cruzados em contemplação defronte d’elle. ― Ó menino, onde foste tu arranjar esses bigodes tamanhos? Então isso agora usa-se?

Pergunta que sobremaneira embaraçou Henrique.

― Quem quer usar, usa, tia. Não é obrigação ― respondeu elle, com leve mau humor.

― Em nome do Padre e do Filho! ― dizia Maria de Jesus, benzendo-se e tomando logar ao lado da ama. ― Até nem sei que parece, lembrar-se a gente que trouxe este marmanjão ao collo!

O termo «marmanjão» não soou bem a Henrique. Principiava tambem a impaciental-o o vêr as duas embasbacadas deante d’elle; um homem sujeito a uma exposição d’estas, por mais que faça, não atina com o modo de arrostar com ella, que não seja ridiculo. Ora Henrique, como todo o homem da sociedade, o que mais que tudo temia n’este mundo era o ridiculo.

Felizmente acudiu-lhe a caridosa intervenção da tia Dorothéa, que fez perceber á criada a conveniencia de ir preparando a ceia de Henrique, que havia de querer recolher-se. Henrique, apesar de não costumar cear, acceitou a ideia, porque o frio, as fadigas e a má alimentação dos ultimos dias, haviam-lhe desafiado o appetite. Demais, o espanto de D. Dorothéa, quando lhe ouviu dizer que as ceias não entravam nos seus habitos, foi tal que lhe tirou o animo de rejeitar.

― Não ceias! Ó menino, que me dizes? então vaes-te deitar sem ceia? Ora essa! Por isso vocês são uns pelens. Vejam lá que arranjo este! ficar toda a santa noite sem alguma coisa que dê sustento ao estomago, que aconchegue. Nada, nada; a ceinha em todo o caso. E tu has de tambem querer mudar de fato?

― Eu venho bastante molhado.

― Ai, então depressa, menino, que não ha nada peor do que a roupa molhada no corpo. Ó Maria... ou deixe estar, eu vou... Anda, Henriquinho, anda lá, que eu guio-te ao teu quarto para te arranjares.

Meia hora depois, Henrique banhado, enxugado e commodamente vestido, saboreava uma gorda gallinha de canja, sobre uma mesa coberta de toalha lavada, e na melhor louça da copeira.

Elle que tinha sempre severidades de critica contra os mais afamados cozinheiros de Lisboa, estava achando deliciosa aquella comida primitiva, com que o regalava a tia.

Esta sentou-se a vêl-o comer, e com a mesma familiaridade, que Henrique já anteriormente extranhára, Maria de Jesus sentou-se ao lado da ama.

Ambas tinham ceado já; pois que o faziam ao cerrar da noite.

Emquanto Henrique comia, ellas, sem deixarem de o observar com a natural curiosidade de quem havia tanto tempo não tivera um hospede, faziam-lhe perguntas, ás quaes elle ia respondendo conforme lhe era possivel.

― Tu dizias-me na tua carta que estavas doente; pois olha que na cara não o parece.

― Não ― concordou a criada ― tem boas côres, e, vamos, a magreza inda não é lá essas coisas.

Era este o ponto fraco de Henrique; respondeu logo ao reclamo.

― Não me digam isso! Então não vêem como estou? Pois isto é lá côr de saude? de febre, será. Gordo? pois acham-me gordo?!

― Gordo, não digo, mas assim, assim... E depois como vieste de jornada... Mas a final que molestia é a tua, menino?

― Eu sei lá, tia Dorothéa? Nem os medicos a conhecem bem. É, entre outras coisas, uma tristeza, uma melancolia, que me não deixa, que me persegue por toda a parte. Ás vezes parece-me que sinto apertar-se-me dolorosamente o coração; outras, são palpitações, ancias... Tenho quasi vontade de chorar, irrito-me, impaciento-me, não quero que me falem, nada quero vêr, nada quero ouvir; não leio, não durmo, não como. Finalmente todo eu sou doença e tristeza.

A boa tia Dorothéa olhava com sisudez e attenção para o sobrinho, emquanto elle falava, e na physionomia iam-se-lhe desenhando, ao ouvil-o, os mais expressivos signaes de espanto e consternação.

Assim que Henrique terminou a exposição, ella disse-lhe com uma adoravel candura:

― Então é assim uma especie de mania!

Á palavra «mania» Henrique sobresaltou-se. Seria a consciencia que se sentiu ferida?

― Mania? Ó tia Dorothéa! Mania! Veja bem, olhe que o termo é forte? Mania!

― Sim, menino ― insistiu ingenuamente a boa senhora ― pois olha que não é outra coisa. Pois isto de estar triste sem ter de quê... sim... porque não te morrendo ninguem, nem te doendo nada...

Ó poetas devaneiadores, ó almas melancolicas, que percebeis no sussurrar das brisas, no ciciar das folhas, no murmurar dos arroios, queixas occultas de dryades e de nayades, sentidas vibrações das harpas de fadas aereas, que vivem em palacios de nuvens; ó corações inoculados de poesia, que vos confrangeis e gottejaes lagrimas sinceras ao desmaiar do dia, ao desfolhar das arvores no outomno; poetas, que escutaes, com Victor Hugo, as vozes interiores, os cantos do crepusculo, e com elle adivinhaes os mysterios dos raios e das sombras, perdoae a involuntaria blasphemia da tia Dorothéa, que não contem o menor fermento de malicia; perdoae-lhe a dura expressão de que ella se serviu para caracterisar os vossos arroubamentos, as vossas tristezas vagas, os vossos devaneios, e crêde que, apesar da phrase, terieis n’ella uma alma mais afinada para sympathisar comvosco, do que tantas que por ahi fazem gala de vos comprehender melhor.

Henrique não podia porém digerir a expressão, de que se servira a tia, para diagnosticar o seu mal.

―Mania!―repetia elle―essa agora! Sempre é forte de mais. Mania, não, tia Dorothéa, lá isso não. Mania!

―Eu lhe digo―acudiu a criada.―Não vá sem resposta; que está quasi como o cunhado da Rosa do Bacello. A senhora não se lembra? Andou aquella alminha por ahi sempre triste, sempre a falar só, até que a final lá foi parar...

―Aonde?―perguntou Henrique, erguendo os olhos interrogadoramente para a criada.

―Lá foi parar a Rilhafolles―concluiu esta, espevitando a véla o mais naturalmente d’este mundo.

Henrique de Souzellas pulou com a sinceridade.

Nem acabou de sorver a ultima colhér de caldo de arroz, que lhe estava sabendo como nunca manjar lhe soubera.

―Então não comes mais?―perguntou a tia.

―Muito agradecido; eu o mais que tenho é somno.

―Pois sim, mas é preciso fazer por comer―insistiu ella.

—­Ora vá maïs este côxão—­disse a criada.

—­Não é possivel—­teimou Henrique, e insistiu para se recolher ao quarto.

—­Tens razão, tens—­concordou a tia Dorothéa—­deves estar fatigado. Vae com Nossa Senhora, menino. E deixa-te lá de pensar e estar triste, que isso não é bom. É fazer por espairecer. Come, bébé, passeia, que é o que dá saude. Nada de malucar.

—­Sim—­accrescentou a criada—­e não queira estar doente, que não tem graça nenhuma.

—­E olha, Henriquinho, tu tens por ahi com quem te podes distrahir. O brazileiro Seabra, que tem uma casa como um palacio; o Augustito do doutor, que é um bom mocinho. E depois vae dar um passeio por ahi, um dia até os moinhos outro dia até á ermida da Senhora da Saude. Agora me lembra: a Lenita já mandou ahi outra vez saber se tinha chegado o hospede—­disse D. Dorothéa.

—­Não foi só a morgadinha...

—­Ahi está você a chamar-lhe tambem a morgadinha.

—­Então, senhora?! isto é o costume. Mas todas as outras senhoras mandaram tambem o Torquato saber do sr. Henrique. A sr.^a D. Victoria e a Christininha.

—­Ai, pois cuidadosas são ellas! Tu has de te entender com aquella gente. É uma gente muito dada e sem ceremonia. É preciso lá ir. Olha, ámanhã podes ir visital-as. É um passeio bonito.

Henrique, que tinha estado distrahido durante a conversa das duas, nem se dava ao trabalho de intervir no dialogo em que ellas dispunham já do seu tempo e traçavam-lhe planos de vida.

—­Mas vae descançar, menino, vae e faze por dormir. Olha lá, tu costumas dormir com luz?

—­Não, tia, não costumo.

—­É porque n’esse caso... Ó Maria, onde está aquella lamparina, que me serviu quando eu estive doente, ha seis annos?

—­Está lá dentro, senhora; se a senhora quer eu...

—­Vê lá, menino...

—­Não tia, não quero.

—­Ha pessoas que não podem dormir ás escuras—­dizia a criada.—­Eu, graças a Deus, durmo bem de qualquer fórma.

—­Pois sim, mas nem todos são como você. Olha, ó Henriquinho, has de vêr se queres o travesseiro maïs alto où...

—­Muito agradecido, tia Dorothéa, tudo deve estar bom—­disse Henrique, procurando fugir ás muitas reflexões, perguntas e conselhos, com que as duas o iam perseguindo até o quarto.

—­Olha, ó menino, tu bébés agua de noite?

—­Ás vezes.

—­Você poz-lhe agua no quarto, Maria?

—­Puz, sim, minha senhora; pois então? Já minha mãezinha dizia, que antes sem luz do que sem agua.

—­Bem, então está bom. Então muito boa noite, menino.

—­Boa noite, tia.

—­Ai, é verdade. Has de vêr se queres maïs roupa na cama.

—­Não hei de querer, não, tia.

—­Olha que está muito frio. Você quantos cobertores lhe deitou, ó Maria?

—­Cinco, senhora.

—­Cinco!—­exclamou Henrique, quasi horrorisado.—­Cinco cobertores!

—­É pouco?

—­Pouco?—­É de morrer esmagado debaixo d’elles.

—­Ai, quer não! Olha que está muito frio.

—­Bem, bem; eu cá me arranjarei.

—­Então, muito boa noite.

—­Muito boa noite, tia.

E Henrique ia a fechar a porta.

—­Olha...—­disse ainda a tia.

Henrique parou.

—­Não sei o que é que me esquece...

—­Não ha de ser nada, tia; boa noite.

—­Não esquecerá?... Eu sei?... Emfim... boa noite. Ai, é verdade... Sempre é bom ficar com lumes promptos.

—­Ai, sim; lá isso sempre é bom.

—­Vês? não que bem me parecia.

—­Já lá estão, senhora—­disse a criada de longe.

—­Melhor; então muito boa noite nos dê Nosso Senhor, menino.

—­Muito boa noite, tia.

E Henrique conseguiu fechar a porta.

Estava finalmente só.

—­Que desastrada lembrança a minha!—­disse o pobre rapaz, ao fechar a porta sobre si.—­Como posso eu viver com está santa e virtuosa gente, que chama manías aos meus padecimentos? Que futuro de impertinencias me espera! Ai, Lisboa, Lisboa, e pensar eu que só posso voltar para ti á custa de outra jornada!

O quarto de Henrique era arranjado com simplicidade. Um alto leito de almofadas na cabeceira e rodapé de chita, tão alto que se não dispensava o auxilio de cadeira para trepar acima d’elle, uma commoda com um pequeño espelho, um bahú, um lavatorio e duas cadeiras maïs, constituiam a mobilia toda.

Henrique de Souzellas sentiu a falta de mil pequenos objectos de toucador, a que estava habituado. Aquelle estrictamente necessario não lhe promettia grandes confortos.

Deitou-se. A roupa da cama era de linho alvissimo e respirava um asseio e frescura convidativos: os travesseiros, de largos folhos engommados, possuiam uma molleza agradavel ás faces; o colchão de pennas abatia-se suavemente sob o peso do corpo fatigado.

Henrique conchegou a roupa a si; á falta de velador, pousou o castiçal no travesseiro, e, abrindo um livro que trouxera de Lisboa, poz-se a ler, para obedecer a um habito adquirido.

Não teria ainda lido um quarto de pagina, quando ouviu a voz da tia Dorothéa, que lhe dizia de fóra da porta:

—­Ó menino, tu já te deitaste?

—­Já, sim, tia Dorothéa.

—­Olha se tens cautela com a luz. Eu tenho um mêdo de fogos!

—­Esteja descançada, tia. Eu apago já.

—­Então será melhor. S. Marçal nos acuda.

E afastou-se, rezando ao santo.

Henrique continuou a ler.

D’ahi a pouco a mesma voz:

—­Tu já dormes, Henriquinho?

—­Não, tia, ainda não durmo.

—­Olha que não vás adormecer sem apagar a luz. Eu tenho um mêdo de fogos! Não descanço, emquanto não vejo tudo apagado em casa.

Henrique perdeu a paciencia.

—­Pois pode socegar, olhe.

E apagou a véla, meio zangado.

—­Fizeste bem, fizeste bem; isto já é tarde, e é melhor fazer por dormir. Então, muito boas noites.

—­Muito boas noites—­respondeu Henrique quasi amuado; e ageitando-se na cama, dizia comsigo:—­E está! Já vejo que nem ler me é permittido aquí. Olhem que vida me espera! É isto o que me devia curar? Que fatalidade!

Dentro em pouco, os dois felpudos cobertores de papa, unicos que conservava dos cinco primitivos, começaram a fazer o seu effeito, insinuando nos membros cançados da jornada um agradavel calor. Convidavam ao somno o som da agua n’um tanque que ficava por debaixo das janellas do quarto e as gottas da chuva, que dos beiraes do telhado caíam compassadas na taboa do peitoril.

A noite socegára. De quando em quando apenas algumas lufadas de vento, já menos impetuosas, faziam bater as vidraças.

Eram como estes estados, que succedem a um choro aberto. Correm ainda algumas lágrimas nas faces, mas já não brotam novas dos olhos: saem ainda do peito os soluços, porém maïs espaçados; dentro em pouco será completa a serenidade.

Henrique começou a experimentar uma languidez, um delicioso bem-estar n’aquelle confortavel leito e no meio d’aquelle socego; fecharam-se-lhe enfraquecidos os olhos, e deslisou suave, insensivelmente, no maïs profundo, tranquillo e restaurador somno, que, havia muito tempo, tinha dormido.