IV


A casa do Mosteiro, com a quinta annexa á casa, como o dava a entender o nome, pelo qual o povo a conhecia, tinha pertencido em tempo a uma ordem monastica.

Era um d’estes conventos campestres, que hoje ou se encontram em ruinas ou transformados em solar de alguma notabilidade provinciana. Ao de que falamos coubera o ultimo destino.

Incluido, depois do acto dictatorial de 1834, na lista dos bens nacionaes, fôra, por insignificante preço, vendido a um modesto proprietario das immediações, mais arrojado do que os vizinhos, ou mais convencido da estabilidade da nova ordem de coisas politicas, que se inaugurava no paiz.

E em tão auspiciosa hora lhe acudira aquella inspiração, que, em pouco tempo, lhe restituia a quinta o capital empregado, regalando-o todos os annos com não calculados juros, e elle, sem intermittencias, cresceu d’ahi por deante em prosperidade a ponto de deixar, ao morrer, a familia no numero das mais abastadas d’aquella terra.

A propriedade do Mosteiro, apesar de varios melhoramentos e reformas effectuados n’ella, offerecia, ainda claros, muitos vestigios de seus primitivos usos. Não era raro encontrar-se, aqui e alli, em pé uma cruz de pedra marcando antigos logares de devoção; no alto de algumas portas conservava-se visivel o emblema e divisa da ordem, ou restos de inscripções latinas; nas paredes da arcaria, em que se apoiava a face posterior do edificio, mantinha-se ainda um azulejo contemporaneo dos frades; finalmente resistira a successivas reformações certo colorido monastico, que só após muitos annos se dissiparia de todo.

Entrava-se para a propriedade por uma larga, comprida e magestosa álea de sobreiros seculares, alcatifada de relva, que, sobretudo dos lados, por pouco trilhada, crescia espêssa e verdejante. Abria-se, ao fim d’esta rua, o alto portão do pateo.

Henrique, deixado só pelo guia ao chegar alli, foi caminhando vagarosamente por esta avenida, dominado por a intima commoção e sentimento quasi de temor, que se apodera de nós, em todos os logares a que se ligam memorias do passado.

A phantasia estava-o transportando a tempos, a que não chegavam já as suas recordações, ás épocas, em que, por entre estas arvores gigantes, se via passar, como um phantasma, o habito escuro do monge, cuja sombra o sol, ao declinar no horizonte, tantas vezes projectou, esguia e estirada, ao longo d’aquella mesma avenida.

Impressionado por esta ordem de pensamentos, chegou Henrique ao portão, transpondo o qual se introduziu no pateo. Era um largo terreiro de perfeita fórma rectangular, limitado ao fundo pela fachada da casa, e lateralmente por elevadas paredes, armadas á maneira de pannos de Arrás, com tapeçarias de vigorosas heras. A cada uma das paredes encostavam-se dois tanques de vasta capacidade.

No tempo dos frades vomitavam, sem cessar, as feias e enormes carrancas de todos estes quatro tanques grossos jorros de fresca e purissima agua; porém as medidas economicas do ultimo proprietario e as exigencias dos seus projectos agricolas haviam derivado para outros fins, parte d’esta abundante veia, de maneira que tres d’aquellas bacias estavam agora completamente a sêcco.

Os fetos de folhas recortadas, as pegajosas parietarias, os funchos odoriferos, havia muito que tinham invadido a bôca dos encanamentos inuteis onde encontravam asylo imperturbado lagartos, aranhas e myriapodes, e se estabeleciam pacificas colonias de caracoes.

A fachada do ex-mosteiro nada tinha de notavel pelo lado architectonico. A arte não tivera fadigas, ao concebel-a; o cinzel pouco se embotára a executal-a; nem uma columna singela, nem um florão, nem um tympano lhe davam a menos pretenciosa apparencia monumental. Imagine-se uma vasta casaria de um andar além do terreo, com muitas janellas de peitoril e uma só varanda de pedra sobranceira á porta principal; acima do telhado, uma especie de agua furtada, de construcção evidentemente posterior e aconselhada aos proprietarios modernos por conveniencias de accommodação domestica; e ter-se-ha concebido o edificio.

Emquanto Henrique se occupava a examinar estas particularidades, um velhito, que, sentado em um banco de pedra, que havia á porta de casa, se estava aquecendo ao sol, ergueu-se e veio ao encontro do recem-chegado, tossindo e arrastando os passos.

Junto de Henrique, o velho, de apparencia meia rustica, meia urbana, depois de o saudar com grave cortezia, que deixou a descoberto o solideo fradesco com que resguardava a fronte calva, perguntou se havia alguma coisa, em que o pudesse servir.

Ouvindo, depois de repetida, a resposta de Henrique, que disse procurar as senhoras, com nova cortezia lhe fez signal para que o acompanhasse, e ambos atravessaram o pateo em direcção da casa.

No portal o velho afastou-se de lado com toda a deferencia para deixar passar Henrique; em seguida abriu-lhe a porta de uma primeira sala, e, voltando-se, pediu-lhe para que lhe dissesse quem havia de annunciar. Henrique deu-lhe para esse fim um bilhete de visita, cuja significação teve de explicar, porque o velho não a comprehendia bem.

A final porém retirou-se por outra porta, levando o bilhete.

A sala, em que Henrique ficou esperando, era toda mobilada com pesadas cadeiras de couro lavrado e alto espaldar, mesas de pés em espiral, e pelas paredes alguns ennegrecidos retratos de frades, pertencentes provavelmente aos antigos proprietarios do mosteiro.

No momento em que o velho servo, que era uma especie de feitor honorario da casa, abriu outra porta da sala, para ir annunciar á familia a visita de Henrique, chegaram aos ouvidos d’este, de mistura com um tinir de louças e de crystaes, as vozes e risos de creanças, que falavam ao mesmo tempo. Com a entrada do velho produziu-se um certo silencio, e após uma voz de mulher, de timbre fresco e agradavel, disse audivelmente e como em resposta ás palavras do criado:

― Ora as etiquetas com que esteve, Torquato! Mande entrar para aqui.

O feitor parece que resmoneou não sei o quê, a que ainda a mesma voz redarguiu:

― O que não é bonito é fazel-o esperar. Ande, vá.

Torquato ― chamemos-lhe assim, visto que assim lhe chamaram ― appareceu outra vez e fez signal a Henrique, de que o esperavam na sala immediata.

Henrique que presentiu ir achar-se na presença de uma mulher nova e porventura bonita, correu, com instincto de perfeito homem de côrte, os dedos pelos cabellos, afagou o bigode, ageitou rapidamente o laço da gravata e entrou.

Era completo o contraste d’este aposento com o primeiro; transpondo aquella porta dissipava-se todo o perfume antigo, todo o caracter de vetustez, que até alli reinava em tudo. Era moderno o estuque do tecto, modernissimo o papel que forrava as paredes, e a mobilia toda de um cunho de actualidade, visivel aos olhos menos pesquizadores. Como para tornar mais frizante o contraste, a presença do velho feitor estava aqui substituida por a de duas creanças, a mais velha das quaes mal passaria dos seis annos.

O reposteiro, que caiu atraz de Henrique, foi como que uma cortina corrida sobre o passado. A porta, que elle transpuzera, a barreira que separava dois seculos.

Sentadas no tôpo de uma longa mesa de jantar, coberta de louça fina ingleza, estavam as duas creanças que dissemos, com os seus babeiros brancos e tendo cada qual defronte de si um prato de odorifera sôpa. Em pé, á cabeceira, presidia ao lunch infantil uma mulher, de quem Henrique só pôde notar vagamente os contornos geraes do corpo e não as particularidades das feições, porque, ficando voltada de costas á luz das janellas, velavam-lhe o rosto umas meias sombras, que não favoreciam o exame.

Ao vêr entrar Henrique, ella disse-lhe jovialmente:

― Na aldeia a sala de recepções é aquella em que a gente se acha, quando lhe annunciam uma visita. É assim pelo menos que eu comprehendo o viver do campo.

― E é assim que eu o aprecio, minha senhora ― respondeu Henrique, approximando-se da mesa.

As creanças, interrompendo a refeição, fitavam o recem-chegado com aquelles olhos espantados e penetrantes, com que ellas, promptamente, e quasi sempre com a certeza de um verdadeiro instincto, decidem para si das sympathias ou antipathias de que lhes é merecedor um estranho, a quem vêem pela primeira vez.

A mulher, que presidia ao banquete, não suspendeu com a entrada de Henrique a occupação domestica, na qual estava empenhada. Mostrava receber-lhe a visita com um perfeito «á vontade», que nada tinha porém de affectado.

― Não sei se v. ex.a sabe... ― ia dizendo Henrique, quando, ao chegar perto d’ella, parou subitamente em meio da phrase.

Na mulher, que estava deante de si, reconheceu a leitora da deveza, a interessante rapariga, que tanto o preoccupára.

Era ella, era o mesmo vestido de xadrez, era a mesma cabeça, agora melhor apreciada ainda, porque nada havia a encobrir-lhe a fronte de um primoroso modelo, e os cabellos penteados com tanta graça como singeleza. Em vez do longo chale de casimira, trazia agora uma especie de jaqueta, curta e larga, apertada por alamares, de fórma pouco mais ou menos similhante á que, na nomenclatura das modistas, nomenclatura quasi sempre absurda, e de mau gôsto, teve depois a impropria e desastrada denominação de zuavo!

A surpreza de Henrique não passou despercebida a quem era causa d’ella e que lhe correspondeu com um gesto de curiosa interrogação.

― Perdão, minha senhora ― disse Henrique, comprehendendo aquelle gesto ― mas ignorava que vinha encontrar aqui uma pessoa, que já me não era estranha.

― E sou eu essa pessoa?

― É v. ex.a effectivamente.

― Pois já nos vimos?

― Já... quero dizer, eu já vi v. ex.a

― Pode ser; pela minha parte confesso-lhe que me não lembra de o ter visto nunca. Apesar d’isso sei que é o sr. Henrique de Souzellas, sobrinho d’aquella boa senhora de Alvapenha, a tia Dorothéa; não é verdade?

― Eu proprio. O conhecimento que tenho de v. ex.a não é antigo tambem; data de algumas horas apenas.

A interlocutora de Henrique, ouvindo isto, contrahiu levemente as sobrancelhas bem desenhadas, fez um movimento de labios e deu á cabeça uma ligeira inclinação sobre o hombro, d’onde resultou para aquella gentil physionomia a mais adoravel expressão de estranheza, que pode animar um semblante de mulher.

― Esta manhã ― proseguiu Henrique, a quem os encantos d’aquelle gesto não tinham passado despercebidos ― assisti a uma scena commovente. O logar era uma deveza; uma joven senhora... joven e... e com outras qualidades, além d’esta, para excitar attenções, lia, em voz alta, as cartas que algumas pobres mulheres do povo acabavam de receber pelo correio...

Ella não o deixou continuar.

― Ah! entendo agora. Viu-me? Já andava por fóra? Não o suppunha assim madrugador. Mas onde estava tão escondido? Vejo que é indiscreto... Não admira, habitos da cidade. É verdade, é. Aquella gente encontrou-me no caminho quando eu voltava de uma visita a uns parentes pobres, e não me deixou sem que eu lhe abrandasse a ancia de coração que a affligia. Coitados! Que havia eu de fazer? Diga-me, já pensou no supplicio que deve ser olhar a gente para uma folha de papel escripta, na qual sabemos que se fala de uma pessoa querida, e não ter poder para decifrar aquelle enygma? Que martyrio! Eu por mim, confesso que me falta o animo para recusar pedidos d’aquelles, como me faltaria para negar uma gotta d’agua ao desgraçado que visse a morrer de sêde. A crueldade seria quasi igual. Não lhe parece?

Henrique formulou um galanteio, que ella porém não ouviu, entretida já a escutar o que uma das creanças lhe dizia.

― Lena, olha a Annica, que está a deitar a sôpa d’ella no meu prato.

― Deixa falar, Lena, deixa falar, foi ella que primeiro a deitou no meu. Não tem vergonha de mentir!

― Então ― disse Magdalena, que a este nome correspondia a contracção familiar, de que se serviam as creanças. ― Olhem agora se teem juizo. Vejam se querem que eu vá dizer á mamã que venha para aqui.

― Não é ella a mãe, visto isso ― pensou Henrique, como quem modificava uma opinião que concebera antes e folgava com a modificação. ― Será irmã? Talvez... Ou mestra... É mais provavel que seja mestra. Esta mulher foi de certo educada na cidade. Tem uns ares distinctos...

E elevando a voz:

― v. ex.a está-me recordando uma scena de um precioso livro, que nunca me canço de ler.

― Qual é?

― Werther.

― Ah!

― Conhece?

― Conheço... quero dizer, li-o, por acaso, ha pouco tempo. Compara-me a Carlota? É por estar a distribuir as rações d’estas creanças? Que mulher ha que não seja Carlota, n’essa parte? Em todas as casas se passa uma scena assim. Bem se vê que não tem familia.

― Por quê?

― Por lhe fazer tanta sensação o espectaculo d’esta.

― É certo ― respondeu Henrique com melancolia. ― Deve ser essa uma das causas; mas não a unica ― accrescentou galanteadoramente.

E, de si para si, estava encantado de saber que a sua interlocutora tinha lido Werther.

Magdalena, para mudar de conversa, perguntou-lhe:

― Então que lhe parece esta nossa aldeia?

― Um jardim. Hontem, ao chegar, confesso que me foi desagradavel a impressão recebida. Nem admira; a noite, o frio, a chuva, o cansaço. Esta manhã, porém, a transformação foi completa. Estou encantado, fascinado! N’uma palavra, minha senhora, eu, cidadão em corpo e alma, reconciliei-me em poucas horas com a vida do campo.

― Desconfie da mudança rapida. Habitos radicados, qualidades ou defeitos de educação não se perdem assim depressa. Alguns dias aqui, e suspirará por Lisboa outra vez.

― Talvez não. Hoje estou até em acreditar que tinha razão o doutor, que me prometteu a cura das minhas doenças, se me costumasse devéras a estes habitos campestres.

― Ai, prometteram-lhe isso? E espera costumar-se?

― Por que não? Hoje já almocei ás sete horas, já andei mais do que uma semana inteira ando em Lisboa. E inda tenho por vêr as raridades da terra.

― As raridades?! E que raridades são essas que inda tem para vêr? A nossa pobre aldeia não lhe merece essa ironia.

― Então acha tão pouco curiosa esta terra? Do quasi nada que d’ella observei esta manhã, parece-me até...

― Ai, se fala da natureza, é outra coisa. A cada passo se encontra um ponto de vista, que nos obriga a uma exclamação. Mas ha por ahi certos cicerones, que insistem em mostrar aos hospedes as bellezas da arte. Peça a Deus que o livre d’esse flagello.

― v. ex.a assusta-me. Embora; se lhes cair nas mãos, farei por achar curioso o que elles acharem. Vae ser esse o meu systema de cura. Interessar-me por tudo o que a um homem da aldeia interessa. Foi o regimen que me prescreveu o medico, quando me receitou o campo, a titulo de emolliente; se o seguir, salvo-me.

― E não o diga a rir. Se quizer prender-se á aldeia, abjurar os attractivos da cidade, deve rustificar-se em tudo; principiar por cultivar o interesse por as questõesinhas da terra; deve, por exemplo, declarar-se pelo abbade contra a junta de parochia ou pela junta de parochia contra o abbade; ralhar do regedor na questão com os taberneiros ou defendel-o. Emquanto não chegar a isso, desconfie da sua acclimação.

― Farei por conseguil-o o mais depressa possivel. Outra coisa necessaria é deixar-me convencer ingenuamente dos inexcediveis dotes de espirito das notabilidades da terra, o que é de rigor; estar em perpetua admiração deante de uns certos nomes famosos que ha sempre em todas as terras pequenas, e que nos atiram á cabeça a cada momento. Por exemplo, aqui já sei de um, com que encherei a bôca a proposito de tudo; é o de uma celebre morgadinha dos Cannaviaes, pessoa em quem ouço falar, desde que puz os pés, ou por mim a alimaria que me trouxe, n’este productivo torrão.

Magdalena sorriu de uma maneira singular, ouvindo isto.

― Então com que, tem ouvido falar muito n’essa morgadinha?

― Oh! mas não faz ideia; de uma maneira desesperadora. Não ha pinhal, quinta, azenha, choça ou lameiro que não pertença a essa entidade, para mim desconhecida. Este nome anda-me já nos ouvidos, como um estribilho de cantiga popular; na estrada, nos campos, em casa de minha tia, na loja do correio, em toda a parte o ouço pronunciar. Parece que voga nos ares.

― Isso deve ter-lhe excitado a curiosidade de conhecer a pessoa.

― Qual! tem-me impacientado a ponto de nem perguntar por ella. E demais parece-me que a estou a vêr.

― Ora diga. Então como a imagina? Annica, não tens ahi um guardanapo?

― Como a imagino? Imagino-a uma morgada, e está dicto tudo; uma senhora nutrida, a rever saude por todos os póros, encarnada como uma romã, sobre quem os vestidos á moda assentam como pendurados de um cabide, as mãos cheias de anneis, meias luvas de retroz, um chapéo com uma cercadura de rendas, pousado no cocoruto da cabeça... v. ex.a ri-se? Acertei?

― Parece-me que sim; mas julgue-o por si já que tem á vista o original.

― Como?!

― A morgadinha dos Cannaviaes, sou eu.

― Vossa Excellencia!...

Henrique de Souzellas, apesar do seu uso do mundo, esteve por muito tempo sem saber como sair da situação em que se puzera.

Magdalena ria com toda a vontade; os pequenos riam, por contagio, sem saberem de quê. Tudo augmentava pois a confusão de Henrique.

― Ora confesse ― insistia cruelmente Magdalena ― confesse que o está lisonjeando a exactidão das suas conjecturas.

Henrique teve emfim uma lembrança. Tirou do bolso a carteira, em que, horas antes, esboçára rapidamente a figura esbelta da morgadinha, rodeada das mulheres do povo, e mostrando-lh’a, disse:

― Veja v. ex.a se esse esboço, apesar da sua imperfeição, está de accordo com a estupida concepção, que eu formára.

Magdalena lançou a vista para a carteira e sorriu.

― Ah! desenha?

― Quando os modelos tentam, tenho d’essas ousadias. Os resultados são lastimosos, como estes. Perdôe-me o original, que julguei possivel copiar, o desacato, mas...

Magdalena fitou em Henrique um olhar penetrante.

― Isso que diz sabe-me a um galanteio. Devo advertil-o de uma coisa, sr. Henrique de Souzellas. Não ha nada tão mal empregado como uma fineza no campo. Tudo quer o seu logar. Em Lisboa talvez o achasse pouco delicado... ou pelo menos pouco amavel, se me não dirigisse d’essas phrases conceituosas e bonitas. Vive-se d’isso lá. Aqui acho-as affectadas e inuteis... Que quer? Influencias da scena. Ha tanta semceremonia no campo! Aqui todos nos tratamos como parentes: ha de vêr. Não repara como eu o recebo n’uma sala de jantar, sem nem sequer tirar os babeiros a estas creanças? Olhe lá que fizesse o mesmo em Lisboa...

― Então v. ex.a já lá esteve?

― Eu nasci lá e lá me eduquei.

― Ah! bem se vê.

― Ah? Ahi está um ah, que eu desejaria muito que me explicasse.

― Não me será difficil fazel-o. É que antes já de ouvir falar v. ex.a, só ao vêr certa distincção, certa elegancia de maneiras, conjecturei...

― Basta. É um ah portanto, que tem umas poucas de más qualidades.

― Devéras? Uma interjeição tão innocente!

― Pelo contrario, é a voz mais perfida e inconstante da nossa lingua; tudo exprime, a hypocrita. O seu ah é vaidoso, adulador e iniquo pelo menos. Pela vaidade castigue-o algum resto de modestia que ainda se abrigue no seu coração lisbonense; a adulação competia-me castigal-a, mas perdôo-lh’a porque quero ainda suppôr que é um symptoma da doença das cidades, a meu vêr, a principal doença, que o obrigou a procurar a aldeia; da iniquidade, da injustiça, que faz á educação que se pode dar na provincia, ha de convencer-se dentro em pouco, quando eu lhe apresentar minha prima Christina, uma rapariga, que tem vivido aqui sempre e que protesta contra essa sua opinião; possue tudo quanto pode dar de bom a educação das cidades, e, o que mais vale, aquillo que lá é tão facil perder-se depressa, uma candura adoravel. É a irmã mais velha d’estas creanças ― accrescentou, pousando a mão na cabeça dos pequenos, que comiam e conversavam um com o outro.

― Mas v. ex.a...

― Perdão. Outra coisa. Já agora que entrei no caminho das admoestações, permitta-me mais uma, antes de perder o ar grave, que hei de por força ter. Não me sôa bem o impertinente tratamento de excellencia, que me dá. Essa excellencia está a pedir-me uma senhoria, pelo menos, e, confesso-lhe ingenuamente que me custaria a voltar na lingua uma palavra tão comprida.

― Como quer então que a trate?

― Eu sei?... Olhe, uma ideia! Ha pouco não me comparou á Carlota de Goethe? Deixe-me pois adoptar uma lembrança d’ella. Está certo de que tratou o Werther por primo, a primeira vez que lhe falou? É um tratamento como outro qualquer; e entre nós mais justificado, porque sendo o sr. Henrique sobrinho direito de D. Dorothéa, e teimando minha tia Victoria, a mãe d’estes pequenos e de Christina, que D. Dorothéa é ainda uma especie de nossa tia arredada, e como tal a tratamos, nós a final de contas vimos a ser uma especie de primos tambem. Pelo menos assim o sustentou e decidiu hontem minha tia Victoria; e ha de vêr como por primo o tratará! É um tratamento menos incómmodo; eu chamar-lhe-hei primo Henrique; chamar-me-ha, se quizer, prima Magdalena, e desterraremos para sempre a antipathica senhoria e excellencia; concorda?

― Acceito e acho deliciosa a proposta. Adoptamos o principio falso, admittido pela fidalguia em Portugal, de que «os primos dos nossos primos, nossos primos são.»

― Fica pois ajustado?

― Fica ajustado.

― Bem. Mas que ia dizer ha pouco?

― Nem eu já sei... Ah!... Perguntava se tinha estado muito tempo em Lisboa e o que a obrigou a vir viver para aqui.

― Isso é nem mais nem menos do que pedir-me a historia da minha vida. Seja; é um sacrificio inevitavel a quem se vê pela primeira vez. Deixe-me primeiro attender a estes pequenos, que eu principio.

E, depois de partir a cada creança uma fatia de queijo, a morgadinha principiou:

― A historia é curta e sem peripecias, tranquillise-se. Eu sou filha de Manuel Bernardo de Mesquita e...

Este nome era o de um dos principaes vultos politicos da época, e que então militava no campo opposicionista, sendo indigitado para ministro na primeira reforma ministerial, homem influente, de grande capacidade politica, tendo sempre advogado no parlamento as ideias mais liberaes, e militado no partido progressista.

Henrique de Souzellas, que conhecia todas as personagens de importancia no paiz, fitou Magdalena com olhar estupefacto: tão longe estava de encontrar alli a filha de um futuro ministro.

― Filha do conselheiro Manuel Bernardo! v. ex.a?

― Excellencia! Esquece-se da nossa convenção? Repare! É verdade. Não sabia que meu pae era d’aqui? Eu e meu irmão Angelo, que estuda actualmente n’um collegio em Lisboa, somos os unicos filhos de meu pae. Nasci, como disse, em Lisboa, mas as continuas enfermidades de minha mãe fizeram-nos vir para aqui viver na companhia d’ella; aqui mesmo morreu, e aqui está sepultada. O Angelo nasceu já n’esta casa. A morte de minha mãe deixou-me orphã aos doze annos, e incompleta a educação que ella principiára a dar-me e para a qual, se vivesse, ella só bastaria. Fui pois obrigada a voltar a Lisboa, onde continuei com mestra a minha educação. Mas, ao chegar á idade dos quinze annos, receiando meu pae que os ares da cidade desenvolvessem em mim germens de molestia, que porventura tivesse herdado, mandou-me outra vez para aqui, onde sempre passava alguns mezes no anno, e para onde me chamavam tambem habitos adquiridos em creança. Eu sou muito aldeã. Para aqui vim pois. A morte de meu tio, passado pouco tempo, impressionou profundamente a minha tia Victoria, que ficou desde então um pouco... um pouco... com pouca paciencia para olhar por as coisas domesticas. Isto creou-me novos deveres; havia aqui muitas creanças, estas duas, outras que estão lá dentro, e Christina, que era então creança tambem; occupei-me a ajudar minha tia.

― E tão admiravelmente, que a mais carinhosa mãe o não faria melhor.

― Dou-me bem com as creanças, dou. E a meu pae devo, em parte, o ter aprendido cedo esta sciencia. Porque é uma sciencia tambem.

― Então como procedeu o conselheiro para a ensinar?

― Eu lhe digo. Meu pae tem em certas coisas umas ideias muito singulares. Excellentes as acho eu. Oh! não imagina que boa e excellente alma é a de meu pae! Era eu uma creança, tinha onze annos, talvez, quando elle, um dia, vindo de Lisboa passar aqui algum tempo comnosco, me trouxe uma boneca, realmente bonita; uma maravilha de Nuremberg. Nos primeiros dias não me fartava de a vêr, de a beijar, até commigo a deitava. Oito dias depois succedia o que era de esperar, já nem d’ella sabia. Meu pae notou-o. ― Então, Lena ― aqui todos me chamam assim ― já não gostas da tua boneca? ― Disse-lhe eu: Gosto, mas... ― Bem sei, já fizeste tudo o que tinhas a fazer por ella, e como, pela sua parte ella nada faz por ti, enfastias-te, canças-te de conceber, a cada momento, brinquedos novos. Tens razão; onze annos já não é idade em que o interesse se sustente com tão pouco, é necessario mais. Ora dize-me, Lena, ― continuou elle ― se eu te mandasse vir uma boneca que movesse os braços e os olhos, que te sorrisse, que chorasse tambem, que te beijasse até... ― Pois ha bonecas assim? ― perguntei eu, admirada. ― E desejaval-a? ― Oh! se a houvesse!... ― Trago-t'a ámanhã. Não dormi aquella noite a pensar na boneca. No dia seguinte apresentou-me meu pae uma creança de um anno, orphã de uma pobre familia, que uma epidemia extinguira, e disse-me: ― Ahi tens a boneca que te prometti, Lena; vou confial-a aos teus onze annos. Veremos se tens juizo para brincares com ella. É assim que eu quero que aprendas os deveres de mãe, que é a verdadeira sciencia apropriada a mulheres. E o que é certo é que eu, dissipado o desgosto dos primeiros momentos, porque o tive, confesso, costumei-me a querer áquella pobre creança, fui avara nas suas caricias, troquei por ella todos os meus brinquedos, e senti-lhe do coração a morte, quando, um anno depois, ella me expirou nos braços. Quando fui para Lisboa, já ia educada para amar creanças.

Magdalena contára tudo isto naturalmente, sem a menor affectação, sem deixar até de attender aos primos, o que augmentava o interesse com que a escutava Henrique.

― E assim fica sabendo quem é a morgadinha dos Cannaviaes ― concluiu ella, desatando o babeiro das creanças, que tinham terminado o lunch.

― É verdade, mas d’onde lhe vem este titulo singular, prima Magdalena? ― perguntou Henrique, tomando ao collo uma das creanças, que a morgadinha pousou no chão.

― É que eu sou realmente a morgadinha dos Cannaviaes. Quero dizer, minha madrinha vivia na quinta dos Cannaviaes, uma quinta que fica d’aqui perto. Era uma senhora velha, rica, elegante e muito caprichosa; chamavam-lhe todos a morgada dos Cannaviaes. Tomou-me ella affeição, e, sempre que passeiasse, me havia de levar comsigo; d’ahi começaram a chamar-me de pequena a morgadinha. Quando ella morreu deixou-me tudo quanto possuia; n’esse legado entrava a quinta dos Cannaviaes, de que sou proprietaria ainda. Foi uma como confi ― É que eu sou realmente a morgadinha dos Cannaviaes. Quero dizer, minha madrinha vivia na quinta dos Cannaviaes, uma quinta que fica d’aqui perto. Era uma senhora velha, rica, elegante e muito caprichosa; chamavam-lhe todos a morgada dos Cannaviaes. Tomou-me ella affeição, e, sempre que passeiasse, me havia de levar comsigo; d’ahi começaram a chamar-me de pequena a morgadinha. Quando ella morreu deixou-me tudo quanto possuia; n’esse legado entrava a quinta dos Cannaviaes, de que sou proprietaria ainda. Foi uma como confirmação do titulo, que já desde creança me tinham dado; e para todos sou aqui a morgadinha, titulo na verdade pouco elegante e que tão mau conceito fez conceber ao primo Henrique da possuidora d’elle.

― Retracto-me, prima Magdalena; agora que sei a pessoa a quem elle pertence, parece-me outro. Acho-o bonito, gracioso...

― Vamos, vamos. Confesse que o titulo não é dos mais romanticos e que, de boa vontade, escreveria outro nome debaixo do desenho de phantasia que ahi fez, da mesma maneira que deu á humilde e fiel jumenta, que eu montava ha pouco, a conformação e orelhas elegantes de um palafrem, e quasi me transformou em uma amazona ingleza.

Henrique respondeu, sorrindo:

― Na impossibilidade de reproduzir as graças naturaes, soccorri-me ao expediente das bellezas de convenção. Confesso o meu deploravel erro.

― Olhe que não estamos em Lisboa, primo Henrique. Repare para essas arvores e refreie o sestro galanteador, com que está.

― Por quem é! Não leve o rigor a tal extremo. Tão injusta é comsigo, que se recuse a acceitar, como naturaes e sinceras, as phrases que a sua presença inspira?

― Ai, meu Deus, como refina! Veja como essa creança, que tem no collo, o está encarando com os olhos espantados. Se ella nunca ouviu falar assim aqui!

Henrique beijou as faces da creança, movimento em que não ia uma intenção menos lisonjeira do que nas phrases que dissera, porque elle percebia que Magdalena era extremosa pelos seus pequenos primos.

Abriu-se, n’este meio tempo, a porta da sala, e entrou, saltando, outra creança mais crescida, mas ainda de vestidos curtos, trazendo na mão uma folha de papel.

― Lena ― dizia ella em alta voz. ― Olha; queres vêr o que o sr. Augusto só me emendou hoje no thema francez?

Chegando ao meio da sala, parou a olhar com estranheza para Henrique.

― É o sr. Henrique de Souzellas ― disse Magdalena. ― O hospede da tia Dorothéa. Esta é Marianna, outra de minhas primas ― accrescentou, voltando-se para Henrique. ― Já vê que não faltam creanças n’esta casa; e ainda ha mais. É o que lhe dá o ar alegre que tem.

Marianna cumprimentou Henrique e não se constrangeu por mais tempo; mostrando á prima a composição que o mestre lhe emendára, disse:

― Ora vê que não tive muitos erros.

Magdalena sorria, examinando o thema.

Henrique ia a fazer não sei que pergunta a Marianna, quando á mesma porta, por onde ella entrára, appareceu o mestre, de quem se falava.

Augusto, que assim se chamava o recem-chegado, era um rapaz de pouco mais de vinte annos de idade; de rosto pallido e physionomia intelligente.

Ninguem adivinharia n’aquelle typo um mestre-escola de aldeia.

Trajava com simplicidade, porém com asseio e gôsto, e havia em toda a sua figura certo ar de distincção, que feria quem pela primeira vez o visse.

N’um leve pendor de cabeça, no olhar penetrante e fixo, e nos labios, como habituados a fecharem-se á saida dos pensamentos intimos, lia-se o caracter pouco expansivo d’aquelle adolescente.

Magdalena dirigiu-lhe a palavra, em tom de manifesta deferencia.

― Como vão os seus discipulos, sr. Augusto?

― Optimamente, minha senhora ― respondeu o interrogado.

― O sr. Augusto ― disse Magdalena, apresentando-o a Henrique ― o primeiro mestre de meu irmão Angelo e hoje mestre de Marianna e Eduardo.

― Esquece-se, minha senhora, ― accrescentou Augusto ― que de Angelo sou discipulo tambem, e mais discipulo do que fui mestre.

― Do que me esqueci, e, a falar a verdade, não devia, foi de que de Angelo é effectivamente mais do que mestre, é amigo; assim como de todos nós. Este senhor ― continuou ella, concluindo a apresentação ― é o senhor Henrique de Souzellas, que se esperava em Alvapenha; é ainda nosso primo.

Os dois cortejaram-se com affavel delicadeza.

― Teve carta de Angelo? ― perguntou em seguida a morgadinha.

― Não recebi ainda o correio de hoje.

― Nem nós; e é de estranhar que meu pae pelo menos não me escrevesse! Angelo não virá passar a festa comnosco? Pobre rapaz! Parece que renasce quando se vê aqui. É uma perfeita creança então.

Eduardo, outro primo de Magdalena, que Henrique ainda não vira, entrou n’este momento na sala, trazendo um masso de cartas na mão. Depois de cumprimentar Henrique, a quem Magdalena o apresentou, disse para Augusto:

― A mamã deu-me essas cartas para o sr. Augusto escolher d’ahi aquellas que eu pudesse ler.

― Eu verei devagar ― disse Augusto, guardando-as n’uma pasta que trazia.

― Ah! já temos o Eduardo a ler cartas! ― disse a morgadinha, afagando o primo.

― Pelo que vejo ― disse Henrique de Souzellas, vendo Augusto em disposições de partir ― tem uma vida muito occupada?

― E tanto que sou obrigado a pedir licença para me retirar. Tenho de ir esta tarde a casa do Seabra...

― Ai, lecciona ainda as pequenas do brazileiro? ― perguntou Magdalena.

― Ainda, sim, minha senhora.

― E como vão essas mulatinhas?

Augusto encolheu os hombros, sorrindo; gesto que não devia lisonjear a vaidade do sobredicto brazileiro, se tomasse a peito os dotes intellectuaes das referidas mulatinhas.

Passados segundos, Augusto retirou-se, apertando a mão a Magdalena que familiarmente lh’a estendeu, e a Henrique, que a imitou.

― Ia apostar que vae alli uma intelligencia ― disse Henrique ao vêl-o sair ― algum d’esses grandes espiritos, que vivem e morrem ignorados e improductivos, porque os não aquece o sol do favor publico, nem os bafeja a aura da moda caprichosa. É terra de maravilhas esta, ao que estou vendo.

― É um rapaz intelligente, é ― disse a morgadinha ― e uma alma generosa. Desde tenra idade costumou-se a trabalhar. Não tem familia. O pae foi um pobre e honrado advogado de um logar perto d’aqui, que morreu quasi na miseria, deixando-o por educar. A mãe, que era d’estes sitios, para ahi veio, depois que viuvou. Elle tem sido, pode dizer-se, mestre de si mesmo. Dirigiu os primeiros estudos de Angelo e hoje é o seu melhor amigo. A morgada, minha madrinha, legou-lhe um patrimonio para elle se ordenar: não quiz, e preferiu ser mestre-escola. Meu pae, que lhe reconhecia intelligencia para mais, tentou dissuadil-o d’isso, mas nada conseguiu. Não ha quem o arranque d’estes sitios.

― Prende-o talvez alguma paixão?

― Não sei. É certo que é um professor modelo. O seu primeiro despacho foi temporario; agora, porém, espera meu pae fazel-o effectivo; para o que já elle fez novo concurso. Já vê que ambições são as d’este rapaz.

― Na verdade! com muito menos fundamentos ha quem aspire a ser ministro. Mas com certeza o coração entra como elemento no problema d’esse caracter.

― Mas ainda agora reparo! ― exclamou a morgadinha ― eu esquecida a conversar, e sem avisar a minha tia e Christina da sua chegada! Não o fiz logo, porque as sabia occupadas em umas longas novenas, em que andam; mas agora é tempo. Vae, Marianna, e tu, Eduardo; ide ambos dizer-lhes que está aqui o... o primo Henrique de Souzellas.

Marianna e o irmão sairam a correr.

― Vae conhecer duas boas almas ― disse Magdalena, voltando-se para Henrique ― minha tia é uma santa senhora, cujo peor defeito é suppôr-se victima dos criados; e Christina... Christina é um anjo.