IX
Dois dias depois da chegada de Henrique, e n’aquelle que se destinára para o passeio á ermida, Christina foi maïs madrugadora do que as aves. Á hora, a que estás ainda se não ouvem chilrear, já a prima de Magdalena abandonava o leito, receiosa de se fazer esperar pelos companheiros da projectada excursão matinal. Quasi não dormirà toda a noite aquella rapariga, com tal preoccupação.
As estrellas viram-a erguer, e tiveram muito tempo de se despedirem d’ella, antes de se esconderem discretas ante o apparecimento do dia.
Christina vestiu-se á pressa e dirigiu-se ao quarto de Magdalena. Esta dormia ainda. O projecto de passeio á ermida não a alvoroçára tanto. Christina foi acordal-a ao leito.
A morgadinha abriu os olhos e fitou-os admirada na prima.
—Que queres tu, Christina? Que lembrança foi essa hoje de andares estremunhando a casa está noite?
—Levanta-te, preguiçosa, levanta-te. Não o dizia eu hontem? Então são estás as madrugadas em que falavas?
—De certo que não são madrugadas; isto é noite é o que é.
—Dentro em pouco é dia. Queres vêr?
E, dizendo isto, Christina abriu para traz as portas das janellas e correu as cortinas.
A estrella da manhã, Venus, aquella brilhante e ao mesmo tempo suave estrella, que umas vezes assiste no crepúsculo ás melancolías da natureza, outras vezes na aurora ao renascimento dos seus jubilos, scintillava mesmo defronte do leito de Magdalena.
—Vês?—disse Christina.
—Muito pouco. É esse o teu sol? Como vae alto! É pena que não alumie melhor do que está lamparina.
Christina sentia redobrar com estás delongas a sua impaciencia, quasi de creança.
—Anda, Lena, anda. Assim não chegamos a vêr do alto da ermida o romper do sol.
—Pois queres vêr isso de lá?! Que crueldade! Em uma manhã de dezembro!
—Está tão bonita, que parece de primavera.
—Triste lembrança a nossa hontem de combinarmos este passeio. Isto é lá coisa que se faça? Vale por uma viagem aos pólos.
Christina não fazia senão ir do leito de Magdalena para a janella e voltar da janella para o leito, em virtude d’aquella irresistivel necessidade de movimento, embora sem ordem nem fim, que experimentamos quando nos deixamos apossar da impaciencia.
—Não fazes ideia como está bonito cá fóra; n’alguns pontos ainda se vê neve.
—Oh, que agradavel e tentadora belleza! Ainda se vê neve!... Parece-me que já estou gelada... Com essa palavra tiraste-me o alento que ia ganhando. Vês?
—Mas não está frio; até parece que aqueceu o tempo. Então, Lena!... Elles... não tardam por ahi. Cuidas que te vae custar muito, e é um engaño; aquí estou eu, que não sinto frio nenhum.
—Ora, mas tu estás em condições muito particulares. Quem tem uma fogueira no coração, não precisa...
—Ahi principias com as tuas coisas!
—Eu não sei; o que é certo é que esse teu enthusiasmo pelos passeios matutinos não é natural. Quantas vezes recusaste acompanhar-me quando eu t’os propunha? Ora, se me dás licença, eu explico isso.
—Não quero saber de explicações; veste-te, anda.
—Seja! Infeliz lembrança a d’este passeio. E foi d’aquella tia Victoria, que nem por isso nos quiz acompanhar. Não, que já tem juizo; dorme a estás horas o somno da madrugada, que é uma consolação. Que sorte de invejar!
E a morgadinha, continuando assim a exaggerar o sacrificio d’aquella madrugada e a alludir aos motivos secretos a que attribuia o ardor e heroicidade da prima ante os rigores de dezembro, tudo isto de proposito para a vêr impaciente, principiou a vestir-se.
Christina ficára á janella, espiando os progressos do amanhecer e transmittindo á prima as observações que fazia.
—Olha, eu que digo?... já o Manoel vae abrir o portão... Não ouves os pardaes?... É dia claro já... Havemos de chegar com sol á ermida, o que não tem graça nenhuma... Avia-te, Lena... Has de ser a ultima a estar prompta... Ahi vae já o Luiz com o almoço. É que não chegamos lá senão ao meio dia. Elle ahi vem! Eu bem digo.
—Elle! Quem é esse elle que vem ahi?
—Pois quem ha de ser? Então não é o primo Henrique que nos acompanha?
—É o primo Henrique, é o sr. Augusto e é o Luiz, que tua mãe teimou em mandar com o almoço. Não sabia qual dos très te merecia as honras de um «elle».
—Eu dizia o primo Henrique, que já ahi está no pateo—disse Christina, que n’esta occasião correspondia ao cumprimento, que o recem-chegado lhe fazia de baixo.
—Então, com effeito já chegou?—perguntou a morgadinha, admirada.—Bravo! Nunca o esperei. Ai, Christe, que me parece que elle tambem tem alguma coisa no coração!
—Tambem o julgo—respondeu Christina, despeitada;—é vêr como hontem te falou.
—Socega. Quando o coração tem alguma coisa, não se fala assim com a pessoa que causou esse mal.
—Não sei o que elle me está a dizer—disse Christina, olhando para o pateo.—Posso abrir a janella, Lena?
—Eu já estou preparada para soffrer todas as crueldades está manhã. Abre lá a janella, abre. Fala-lhe.
Christina correu a vidraça.
A voz de Henrique chegou distinctamente aos ouvidos de Magdalena.
—Então aquella grande madrugadora da nossa prima, onde está?—perguntou elle a Christina.
Christina respondeu, sorrindo:
—Está a fazer a diligencia que pode para ficar prompta antes do meio dia.
—Oh, que vingança a minha! Ella que tanto falou da minha indolencia!—disse Henrique jovialmente, e continuou falando sempre de Magdalena, e elevando a voz ás vezes para se dirigir directamente a ella, mas sempre sem receber resposta.
Esta insistencia impacientou Christina, para quem elle nem um galanteio tivera ainda.
—De maneira que nós, priminha—continuou Henrique—damos uma lição de mestre áquella arrogante de hontem. Estou ancioso por que ella nos appareça; quero vêr a coragem, com que ousa apresentar-se.
—Eu vou chamal-a—disse sêccamente Christina, e veio dizer a Magdalena, com certo modo, que não podia escapar a está:—Olha se appareces alli ao sr. Henrique de Souzellas, que não descança emquanto te não vê.
A morgadinha, que acabava de ajustar ao espelho as tranças, dando ao penteado a maïs singela e graciosa disposição, voltou-se para a priminha e disse-lhe sorrindo:
—Isso são já ciumes? Mal sabes quanto gósto de te vêr assim! Ao menos ha já vida n’esse teu coração, minha pobre pequena. O que te peço é que não me odeies, só porque esse rapaz se lembrou de perguntar por quem não via.
—Estás a imaginär ciumes, como hontem imanavas...
—Amores? justo; e com a mesma felicidade em acertar; podes ir accrescentando. Mas, parece-me que ahi está maïs alguem no pateo. Ouço falar. Vae vêr. Será Augusto? N’esse caso, espera-se só por mim para completar a caravana. E eu estou prompta. Marchemos.
Augusto havia effectivamente chegado ao pateo.
Henrique trocára com elle alguns cumprimentos, e principiaram depois ambos a passeiar, um ao lado do outro, á espera das que deviam ser-lhes companheiras na romagem.
A conversa manteve-se pouco animada. Augusto não era expansivo com as pessoas, a quem o não prendiam hábitos de longa intimidade; Henrique, talvez por não conhecer a extensão e natureza dos conhecimentos de Augusto, abstinha-se de falar dos assumptos, em que entraria de maïs vontade. Falaram pois de coisas indifferentes a ambos, e quasi frivolas; no frio, na chuva, no inverno e no verão, nos prós e contras da vida do campo e de varios outros assumptos sêccos de si e já além d’isso muito esgotados, e tudo cortado por aquellas pausas e silencios constrangidos e insupportaveis, que o leitor ha de conhecer por experiencia.
Digamos nós a verdade; estes dois homens não sentiam um pelo outro aquella subita e inexplicavel sympathia, que abre os corações e dá margens a confidencias.
Nos dois curtos encontros que tinham tido, manifestára-se entre elles certa frieza maïs que ceremoniatica, uma quasi desconfiança instinctiva.
Chegaram as senhoras. Foram acolhidas com prazer por ambos. Ainda quando não fôssem senhoras o seriam; a chegada de um terceiro, quando dois indifferentes estão na presença um do outro, em entrevista forçada e fatigadora, é sempre saudada interiormente como uma redempção.
Magdalena e Christina vinham ambas formosas, com a especie de mantilhas où capuzes de que usavam, adequados aos rigores de uma manhã de dezembro.
Appareceram ambas a rir. Foi o caso que, passando proximo do quarto de D. Victoria, pé ante pé, para não a acordarem, está presentiu-as, e mesmo do leito perguntou-lhes:
—Então já vão, meninas?
—Vamos, tia; vamos, mamã—responderam as duas a um tempo.
—O Luiz já partiu com o almoço?
—Já partiu, já, minha senhora.
—E ides agasalhadas?
—Como se fôssemos para a Siberia—respondeu Magdalena.
—Olhae, sempre levem os guarda-chuvas por cautela. E ide com NossaSenhora.
—Cá os levamos. Adeus, tia; adeus, mamã.
—Adeus, filhas; até logo, se Deus quizer. Olhae lá, não vos estafeis.
Ora os taes guarda-chuvas é que não iam. Para quê? Com uma manhã d’aquellas, que nem de inverno parecia, pois que até o frio abrandára com o vento! Por isso é que vinham ainda a rir.
Chegando ao pateo, cumprimentaram os seus dois companheiros. Henrique, depois de formular um galanteio a Magdalena, offereceu-lhe attenciosamente o braço, que Magdalena recusou com alguma impaciencia, porque se lembrou de Christina.
—Muito obrigada, primo,—disse ella com vivacidade.—Mas é preciso que o advirta de que não vamos passeiar pelas avenidas de um parque. Vamos trepar montés, atravessar ribeiras, costear precipicios , e para tudo isso é necessaria a completa liberdade de movimentos. Ha occasiões, em que melhor nos servem os nossos dois braços, do que o braço de outro, embora seja o de um héroe.
—Mas de certo que não é á borda dos precipicios que esse auxilio se escusa—replicou Henrique.
—É, muitas vezes é. Ha bordas tão estreitas, que mal cabe n’ellas uma pessoa só; felizmente que a natureza nos dá um braço então... um braço de giestas, por exemplo.
—Vê lá, Lena,—disse Christina ao ouvido da prima.—Talvez seja melhor que acceites. Resta-me, a mim, o braço de Augusto.
—Se continuas com essas loucuras, Christina, obrigas-me a odiar-te. Sr. Augusto—continuou voltando-se para este—espero que tome a direcção do nosso passeio; ninguem melhor conhece os maïs bellos pontos de vista; lève-nos por lá, embora tenhamos de comprar as bellezas á custa de perigos e de fadigas. Partamos!
O monte onde se erigira a capella da Senhora da Saude, afamada por seus milagres e pela sua romaria n’um circulo de muitas leguas de raio, era uma elevada rocha vulcanica, que dominava as freguezias ruraes de maïs de dois concelhos. Estendiam-se-lhe aos pés as alcatifas da maïs rica vegetação; banhava-lh’os a agua dos ribeiros, das levadas e torrentes, arterías fertilisadoras de extensas veigas e pomares; mas elle, o gigante orgulhoso e selvagem, recebia aquelles preitos, olhava sobranceiro aquella opulencia, e, como se fizesse gala da sua rudeza, em vez de cobrir os hombros com o manto real, que lhe estendiam aos pés, permanecia aspero, severo e nú, como nas épocas primitivas, em que uma convulsão tremenda o evocára do seio da terra, para o consolidar em colosso.
Apenas, como symbolo de realeza, coroava-lhe a fronte alta a alameda, que, havia perto de um seculo , a piedade christã plantára em volta da ermida, para refrigerio e conforto dos devotos christãos que alli iam. Era custosa a ascenção por o lado, por onde os nossos romeiros, contra os conselhos de D. Victoria, a emprehendiam. Quando, ao sair de uma longa rúa, apertada entre muros de quintas, Henrique achou de subito deante de si a mole immensa e talhada quasi a pique, que lhe disseram tinha de subir; elle, que raro em Lisboa estendia além do Rocio os seus passeios, com medo das ingremes calçadas da cidade alta, julgou ouvir um absurdo.
Parou a contemplar o monte, como hesitando em atravessar o riacho, que d’elle o separava.
O riacho, engrossado pelas aguas da chuva dos dias anteriores, levantava um bramido atordoador ao cair em toalha dos açudes e ao escoar rapido pela cal da azenha, que lhe obstruia o leito e cuja énorme roda movia.
Áquella hora, ainda pouco clara da madrugada, este sitio da raíz do monte tinha não sei que aspecto selvagem e melancólico, que quasi infundia pavor. Os altos choupos, em que se enroscavam, como serpentes negras, os troncos flexuosos e despidos das vides; maïs longe, o cannavial, ondulando ligeiramente ao perpassar através d’elle a briza da madrugada, e, aquí e além, um d’esses degenerados aloes dos nossos climas, debeis e enfezados, como se os devorasse a nostalgia da sua verdadeira patria, eram accessorios que concorriam para o effeito geral do quadro.
A morgadinha, percebendo a hesitação de Henrique, deu-lhe alento com lançar-lhe em rosto a sua pusillanimidade. Henrique encheu-se de brios e atravessou, com não menor denodo do que os outros, o riacho, por o passadiço de altas pedras, collocadas a pequena distancia umas das outras, e que as aguas a cada momento ameaçavam cobrir.
Atravessada a corrente, seguia-se escalar o monte
- para isso tornava-se indispensavel caminhar em continuados zigue-zagues, aproveitando os córtes que a fouce do tempo conseguira abrir n’aquella massa granitica e os toscos degraus, com que uma arte rudimentär procurára facilitar, por aquelle lado, o accesso da ermida á piedade dos devotos.
As difficuldades para Henrique eram continuas.
A cada momento os embaraços d’este forneciam motivo para risos da parte de Magdalena. Christina não lhe podia levar a bem que se risse d’aquillo.
Para compensar as fadigas de tão trabalhosa ascensão, havia porém, a paizagem, que, a cada passo andado, a cada angulo que se dobrava, apparecia maïs surprehendente e maravilhosa.
Poucos peitos teriam fôrça para reprimir um brado de admiração.
As nevoas d’aquella manhã de dezembro não eram bastantes para velarem a belleza do quadro.
Á medida que os nossos quatro peregrinos iam subindo, ampliava-se-lhes maïs e maïs o horizonte; avelludava-se a relva da planicie, parecia aplanarem-se os outeiros vizinhos, e os campos tomavam a apparencia dos canteiros de um jardim.
Henrique não retinha o enthusiasmo, que aquelle espectáculo lhe causava.
—É magnifico! é admiravel! é soberbo!—dizia elle, a cada momento e quando não era inquietadoramente preoccupado com os perigos do caminho.
O enthusiasmo de Augusto não era menos vivo! Dir-se-ia que eram os montés a sua patria, e que a melancolía nostalgica, que o opprimia na planicie, se ia dissipando á medida que subia a encosta.
Magdalena e Christina tambem não estavam menos impressionadas por o que viam. Esta, porém, tinha uma causa secreta a aguarentar-lhe o prazer, que as bellezas naturaes lhe pudessem occasionar.
Era está causa a mesma dos seus leves despeitos de pela manhã.
Henrique continuava a ser todo attenções e galanteios com Magdalena; parava a cada momento n’aquelles pontos do caminho, que lhe pareciam maïs difficeis de vencer, para lhe offerecer a mão a ella, sempre a ella, a quem dirigia tambem todas as reflexões que o aspecto da paizagem lhe suscitava e nunca á esquecida Christina que, n’esses momentos, quasi achava a manhã desagradavel e o sitio feio e sombrío.
A morgadinha respondia sempre em curtas phrases a Henrique e recusava insistentemente o auxilio, que elle lhe offerecia.
—Estou a suspeitar que esses offerecimentos do primo são maïs devidos á necessidade, que sente, de quem o auxilie, do que ao empenho de nos auxiliar—disse ella sorrindo.—A falar verdade, para quem tem passado a vida a trilhar os passeios do Chiado, que admira? Eu fui creada n’isto. Tenho um pouco de alpestre. Adeante.
E de uma occasião, em que estava perto d’elle, disse-lhe a meia voz:
—Pode ser que Christina careça maïs do seu braço, primo. Ainda não teve a lembrança de lh’o offerecer.
Henrique só então deu por esse esquecimento; apressou-se a remedial-o, offerecendo a Christina tambem o braço, que está recusou, córando.
—Então por que recusas?—perguntou-lhe a morgadinha, em voz baixa.
—Porque não quero abusar da delicadeza d’elle, nem da tua.
A morgadinha abanou a cabeça em ar de reprehensão, fitando-a, mas não lhe disse nada.
Pouco a pouco ia sendo maïs completo o silencio em torno d’elles. Já tinham passado acima dos rumores do valle, que não subiam a maïs de meia encosta. Chegaram emfim ao cimo do monte; tudo annunciava o proximo apparecimento do sol.
—Chegamos a tempo!—exclamou Magdalena que, deitando a correr, fôra a primeira que attingira a planura. Sua Magestade ainda se não levantou.
Os outros estavam, dentro em pouco tempo, ao pé d’ella.
Houve um longo espaço de silencio, concedido espontaneamente á contemplação d’aquella perspectiva solemne.
As primeiras palavras, que se disseram, foram ditás em voz baixa, n’aquelle tom, que insensivelmente lhes damos, quando na presença de um espectáculo grandioso e bello. Fala-se baixo e pouco: não se formulam longos períodos de aprimorado estylo, nivela-se a eloquencia de todos em simples phrases, como estás:
—É bello!
—É magnifico!
—É sublime!
E nada maïs. Pouco maïs disseram os quatro na occasião de que falamos. E eu, por analogas razões, os imitarei, desistindo de descrever o que só bem se aprecia, quando pela vista se abrange o conjuncto de todo o panorama. O leitor, que nunca visse alguma scena similhante, não a imaginaria pela descripção, forçosamente pallida, que ahi lhe deixasse d’ella; e para o que a viu, a memoria lhe preencherá bem a lacuna.
Desvanecida a primeira impressão, que não deixa ao espirito a serenidade precisa para os processos da analyse, principiaram, como é costume, a fazerem notar uns aos outros os sitios maïs conhecidos.
Isto manteve por momentos uma perfeita e desenleada familiaridade entre os quatro.
Christina descuidou-se da sua timidez e despeitos; Magdalena dos seus projectos e desconfianças; Henrique e Augusto deixaram tambem a sua mutua frieza.
—Lá está o Mosteiro—disse Magdalena, apontando para o logar indicado.—Como parece pequeño, visto d’aqui!
—E' verdade—respondia Christina—e olha, Lena, como se vêem bem as janellas do teu quarto.
—Lá está aquella que tu abriste está manhã para cumprimentares...
Sentindo a mão de Christina comprimir-lhe o braço, concluiu:
—Para cumprimentares a estrella d’alva.
—As janellas do quarto da mamã julgo que ainda estão fechadas.
—Tanto não posso eu distinguir; comtudo afianço-te que sim. A tiaVictoria não é muito matinal.
—Aquella casa acolá não é a de Alvapenha?—perguntou Henrique, apontando n’outra direcção.
—É—respondeu Augusto—e, maïs adeante, alli tem a deveza, em que passou ante-hontem. Não é verdade?
—É justamente. Com effeito! Foi um soberbo passeio, o que eu dei! D’aqui é que se vê. Lá vejo umas prêsas, por onde me lembro de ter passado tambem.
—Vê, acolá, aquella casa que tem uma capella ao lado?—perguntou Magdalena, apontando para um ponto distante.
—Perfeitamente.
—É a minha quinta dos Cannaviaes.
—Ah! É verdade, lá estão uns cannaviaes, se me não engana a vista.
—Justamente. Não sei se sabe que ha n’aquella capella uma imagem deNossa Senhora, muito milagrosa.
—Sim? hei de visital-a.
—Coisa que se lhe peça, fazendo-se o voto da meia noite, é concedido—disse Christina, fitando d’esta vez Henrique, com a expressão da maïs insinuante sinceridade.
—Que quer dizer o voto da meia noite?
—Tem uma pessoa de rezar á meia noite, e sósinha, sete estações no altar da Senhora—continuou Christina.
—Só isso? Boa é de cumprir a promessa. Já vejo que não ha aquí na terra desejo que se não satisfaça.
—Mais devagar,—acudiu Magdalena, sorrindo—pouca gente se atreve até a ir lá á meia noite, porque a alma de minha madrinha passeia a horas mortas por a sua antiga casa, dizem.
—Cada vez sinto maïs desejos de lá ir—accrescentou Henrique, depois de ouvil-a.
—Além, entre aquellas arvores, sr.^a D. Magdalena, vive um philosopho—disse Augusto, indicando outro ponto de perspectiva.
—É verdade; o bom do tío Vicente.
—Tio Vicente? Quem é o tío Vicente? Temos maïs algum tío, com que eu possa augmentar o meu parentesco na aldeia?
—O tío Vicente é um santo velho, que se occupa a colher hervas pelos montés e valles para fazer remedios, que dizem milagrosos. Ainda é nosso parente, mas em grau muito arredado; comtudo chamamos-lhe tío, assim como quasi toda a gente por aquí.
—Que sombras negras são aquellas que se vêem no adro da igreja?—perguntou Christina.
—Na igreja? Ah! acolá? É verdade, parece um cordão de formigas—disse Henrique de Souzellas.
—São as mulheres que vão ouvir o missionario—respondeu a morgadinha.—Escutem, lá está a tocar o sino.
Effectivamente chegavam ao alto do monte as debeis mas sonoras badaladas do campanario da aldeia.
—A estás horas principiam as lamentações d’aquelle pobre Zé P’reira, que tão mal olhado anda por a mulher, desde que ella deu n’essas devoções—notou Augusto, sorrindo, ao lembrar-se da scena domestica a que na vespera assistira.
—Degenerou aquella mulher!—disse Magdalena—e, se quer que lhe fale a verdade, sr. Augusto, custa-me vêr o Cancella deixar a Lindita entregue assim a essa gente quando sáe da terra. A pequena é tão apprehensiva!
— Visto isso, já chegou aqui á aldeia a influencia dos missionarios? — perguntou Henrique.
— E não tem lavrado pouco! — tornou Magdalena.
Christina, que era um poucochinho devota, censurou timidamente as palavras da morgadinha.
— Primo Henrique—disse ella—julgo que ainda será preciso o seu auxilio para livrar do contagio está innocente Christina.
— Prompto, prima Magdalena; para as boas causas tenho sempre armada a minha vontade.
— Olha, Lena, não vês?—exclamou Christina—são os pequenos que nos estão a dizer adeus das janellas do mirante.
De facto nas maïs altas janellas do Mosteiro agitavam-se uns lenços brancos.
Marianna e Eduardo haviam-se erguido para saudarem, de longe, a irmã e a prima. Estás tiraram tambem os lenços e corresponderam-lhes aos signaes.
Interrompeu-as a voz de Henrique, dizendo:
— Annuncio a v. ex.as, que chega o rei da creação.
Effectivamente o cume do telhado da ermida e as franças despidas da alameda já se tingiam de luz.
Todas as vistas se voltavam para o oriente. Assignalava-o uma esplendida faixa de purpura, que, em insensivel graduação, desmaiava para as extremidades até se perder de todo no azul-céleste.
Rompia já, do meio d’ella, um pequeño segmento do sol, depois, o astro inteiro apparecia afogueado e vermelho, como um escudo de metal candente, e logo se desprendeu da terra, d’onde parecia surgir, e subiu nos ares, como um brilhante aeróstato, ao qual se rompessem as prisões que o retinham.
O monte inundou-se de luz. O valle, em baixo, estava ainda envolto nas meias sombras da madrugada.
Nisto appareceu do outro lado da capella um dos criados de Alvapenha, que veio annunciar que o almoço estava prompto.
—Pois devéras temos um almoço?—exclamou Henrique, sinceramente surprehendido.
—Graças á previdencia de minha tia, previdencia de que eu zombava em casa, mas que sou obrigada a admirar agora. De facto, parece-me que estes ares do monte e frescuras da madrugada lhe devem ter aberto o appetite—respondeu Magdalena. E logo após continuou para Henrique:—Agora é occasião maïs accommodada de pôr em prática os recursos do seu galanteio, primo. Quer dar o braço a Christina?
Henrique, em quem a morgadinha suspeitára a intenção de lhe render a ella a fineza, que assim declinou na prima, teve de condescender, limitando-se a exprimir n’um olhar as suas queixas, olhar que Magdalena fingiu não perceber.
E conversando e rindo, dirigiram-se para o logar onde, sobre uma mesa de pedra e lousa e ao ar livre, estava disposto o almoço.
D. Victoria não era senhora, que se saisse mal de emprezas d’estas. A alvura da toalha, a excellencia da louça e o bem disposto e apurado das iguarias convidavam.
Não se concebe appetite refractario a um tal conjuncto de circumstancias. O fastio, n’este caso, seria um fastio mórbido, correspondente a lesão organica e como tal sem poesia.
Henrique e Augusto principalmente fizeram, como era natural, justiça á cozinha do Mosteiro.
Henrique, que parecia haver esquecido as suas mil e uma doenças, conversou animada e espirituosamente.
Contaram-se anécdotas; Augusto applaudiu as de Henrique; este riu com vontade das que ouviu a Augusto.
A morgadinha, por sua propria mão, preparou o chá.
N’estas alturas do almoço encetou novamente Henrique o tiroteio de amabilidades, de que por muito tempo não sabia prescindir.
Dir-se-ia ser este o signal para se perturbar a santa harmonia do congresso. Parecia que todos os outros, maïs où menos, se sentiam contrariados.
Henrique ficára sentado junto da parede da capella. Inclinando-se sobre o espaldar da cadeira a saborear um charuto havano, descobriu umas letras escriptas na parede, exactamente por cima da cabeça.
—Bravo!—exclamou, depois de as ler para si—não imaginava que havia poetas na aldeia! Querem ouvir?
E leu:
Se estás maïs perto do céo
N’estas alturas da serra,
Ai, porque tens, peito meu
Inda saudades de terra?
Em vez-de erguer os olhares
A' luz d’este firmamento,
Desço-os á sombra dos lares,
Onde tenho o pensamento.
—É pena que a chuva apagasse o resto. Quem é o bardo, prima?
—Não sei; da aldeia de certo que não é—respondeu Magdalena, com indifferença.
Augusto ergueu-se da mesa e foi passeiar para a alameda.
—Da aldeia, não, diz a prima; e por que não? Com está natureza é fácil crearem-se os poetas. Eu estou vendo n’esta quadra a folha solta de um romance. Aquí a serra de algum Bernardim inedito, tão capaz de escrever saudades, como de as sentir. Os lares, pela sombra dos quaes o olhar do poeta trocava os esplendores do céo... algumas d’essas casas, que ahi se vêem em baixo. Quem sabe se não será até o Mosteiro? Eu, por mim, confesso que se estivesse hoje aquí só, ou em outra companhia —accrescentou, olhando significativamente para a morgadinha-não teria dúvida em subscrever está quadra, como a exacta expressão do meu sentir, porque...
Em vez de erguer os olhares.
A' luz d’este firmamento
Eu tambem...
Os abaixaria aos lares
Onde tenho o pensamento.
Christina levantou-se tambem da mesa e foi ter com Augusto á alameda.
Magdalena, que a seguiu com a vista, não disfarçou um gesto de despeito ao ficar só com Henrique.
—Prima Magdalena,—disse em tom maïs affectuoso Henrique, passado tempo, e depois de maïs algumas palavras—deixe-me falar-lhe com franqueza, agora que estamos sós. Conhecemo-nos ha dois dias; eu, porém, sinto-me tão seguro já do que lhe vou dizer, que não hesito. Não pode imaginär a indelevel recordação que me ficará d’esta manhã.
—Perdão,—atalhou Magdalena—diga-me primeiro o que é isso que me vae dizer. Prepara-se para me agradecer o almoço? Eu sou como os reis; gosto de estar prevenida do sentido das felicitações que me dirigem, para ir preparando uma resposta adequada.
-Que prazer tem em ser cruel!
-Deixemo-nos de loucuras—continuou Magdalena, séria já.—Quem ouvisse o sr. Henrique de Souzellas havia de suppôr que se preparava para me fazer uma declaração.
-Uma declaração do maïs puro affecto, do maïs sincero sentimento, por que não?
-Ah! Pois, se eram essas de facto as suas intenções, peço-lhe desista d’ellas.
—Por quê?
—Porque não posso escutal-o.
—Ou não quer.
—Ou não quero; seja.
—Teria eu a desventura de chegar tarde, prima? Acaso o seu coração já...
—Que impertinente pergunta? Se já, não tenho ainda no sr. Henrique a necessaria confiança para o tomar por confidente. Conhecemo-nos apenas de hontem, que é o mesmo que não nos conhecermos.—E accrescentou logo depois:—Christina, anda ser arbitra n’uma disputa entre mim e o primo Henrique.
—Que vae fazer?—perguntou-lhe Henrique, admirado.
Christina approximou-se; Augusto seguiu-a. Henrique não desviava os olhos da morgadinha que, sem lhe dar attenção, proseguiu para Christina:
—O primo Henrique falava com certa exaltação da doçura do teu caracter; o meu amor proprio disse-me que—era pouco delicado estar assim a lisonjear uma mulher na presença de outra—e redargui por isso, pondo em dúvida a asserção e affirmando que havia um fermentozinho de maldade na tua doçura. Elle nega por impossivel, eu insisto e estamos n’isto. Agora dize tu.
Christina córou intensamente e não teve que responder.
Henrique, que nas palavras de Magdalena julgou ouvir algumas que, pelo sentido e inflexão, com que foram dictas, lhe eram dirigidas, acceitou desaffrontadamente a posição, em que Magdalena o collocára, e respondeu:
—Venci eu! O facto de querer a priminha poupar uma réplica amarga á accusação que lhe fazem, é a maïs éloquente prova, já não digo só da doçura, mas da natureza angelica do seu caracter. Já vê, prima Magdalena, que «quando uma das mulheres que diz, fôr como a nossa boa Christina, não se podem admittir essas revoltas de amor proprio, a que alludiu.»
A morgadinha percebeu tambem o duplo sentido d’estas ultimas palavras; mas fingiu não comprehender.
Henrique, ao desviar por acaso os olhos, encontrou os de Augusto fixos n’elle, emquanto um sorriso lhe dissipava um pouco dos labios a grave expressão que lhe era habitual, temperando-a com não sei que de ironico, que não escapou tambem a Henrique.
Os olhares d’estes dois homens trocaram-se por momentos, sem que nenhum parecesse disposto a baixar-se deante do outro.
Desviou-os porém uma dupla exclamação de Magdalena e de Christina, dizendo:
—Olhem o tío Vicente por aquí!
Dobrava effectivamente n’aquelle momento a esquina da ermida, e approximava-se da mesa do almoço, o velho herbanario, em que já temos falado no decurso dos passados capitulos.