XIX
No dia seguinte ao dos Reis partiram para Lisboa, como estava determinado, o conselheiro e Angelo, o que deu logar no Mosteiro a muitas saudades. O conselheiro devia voltar sómente por occasião das eleições geraes que estavam proximas.
Alguns dias depois, n’um domingo em que se festejava na aldeia o padroeiro Santo Amaro, de quem reza a Igreja a quinze de janeiro, estava Henrique de Souzellas na sala de jantar de Alvapenha, escutando sua tia e Maria de Jesus, que ambas o entretinham com longas conferencias de coisas de pouco intéresse e ás quaes elle ligava a minima attenção.
Tinham acabado de jantar havia pouco tempo. A mesa conservava-se ainda posta; Henrique fumava um charuto, recostando-se para o espaldar da cadeira; D. Dorothéa, de mãos cruzadas deante da cinta, falava; Maria de Jesus que, depois de pôr em arranjo a cozinha, viera, segundo o costume patriarchal, tomar parte na sala na conversa do pospasto, auxiliava a memoria da ama sempre que está emperrava, corrigia-lhe as involuntarias e frequentes inexactidões em que a via cair.
Henrique habituára-se já a estes placidissimos hábitos; e apesar de não ligar attenção á conversa, où por isso mesmo que lh’a não ligava, achava-lhe certas virtudes estomacaes, que lh’a tornavam agradavel.
Depois de muitas voltas a conversa caíu sobre as occorrencias do auto dos Reis.
—Eu ainda estou para saber como aquillo foi!—dizia D.Dorothéa.—Quando me lembro! Como aquella rapariga falava!
—Ó senhora; olhe que já me disseram que a pequena tinha espirito—disse Maria de Jesus, com ar de mysterio.
—Olhem o milagre!—respondeu D. Dorothéa.—Por essa estou eu.
—Diz que desde aquelle dia anda amarella e triste, que nem parece a mesma.
—Então é maïs do que certo.
—Ai, a tia Dorothéa tambem com crendices!—disse Henrique, rindo.—Então parece-lhe que traz espirito aquella creança?
—Pois, menino, aquillo a falar a verdade!
—E não é maïs natural suppôr que alguem lhe ensinou os taes versos?
—Mas quem? se o Pertunhas diz que os versos eram outros e até que aquelles não calhavam bem nas lôas?
—O Pertunhas é um parvo. Houve alguem que ensinou aquillo á pequena e até suspeito com que fim.
—Não, sr. Henriquinho, olhe que alli anda coisa ruim. Tambem o filho do Ceboleiro, quando trazia o espirito, dizia coisas tão bonitas, que nem um livro. A senhora não se lembra?
—Ora se lembra!
—Digam-me—insistiu Henrique.—Quem ha aquí na aldeia que faça versos?
—Versos!—repetiu a D. Dorothéa, admirada.—Ninguem, que eu saiba.
—Ó senhora! Então o João do Trolha? Não deità tão bonitos versos nos desafíos?
—Sem ser o João do Trolha—tornou Henrique, sorrindo.
—Ai, não se ria, sr. Henriquinho; olha que os deità muito bem! Ainda no outro dia, na noite de Janeiras, não se lembra, senhora, dos versos que elle botou?
Viva a senhora D. Dorothéa,
Raminho de bem-me-queres,
Quando põe a sua touca
É a rainha das mulheres.
—E depois a mim:
Viva a senhora Maria,
A perola das criadas,
Quando se chega á janella
Ficam as estrellas pasmadas.
—Ora com o que você vem, mulher! Não tinham as estrellas maïs que fazer do que pasmarem—disse D. Dorothéa.
—Isso é por dizer, senhora; já se sabe que... sim... como o outro que diz...
—E além do João do Trolha, quem ha maïs que faça versos?—perguntou Henrique.
—Que eu saiba...—disseram as duas.
—E aquelle Augusto?
—O Augustito do doutor? O filho! Coitado do pobre rapaz. Elle sim! Credo! Não, aquillo é um rapaz de muito juizo.
—Isso não tira. Então a tia julga que só os tolos fazem versos?
—Tolos não digo, mas...
—Mas um pouco feridos na aza, não é verdade?
—Ora pois então dize-me tu, menino, se um homem sério... sim... um homem de respeito, faz versos?
—Por que não?
—Versos?!
—Versos, sim, senhora.
D. Dorothéa fez um gesto de incredulidade.
Henrique ia redarguir, quando ouviram passos no patamar de pedra da entrada e após algumas pancadas á porta da sala.
—Abra, tia Dorothéa—disseram de fóra as vozes de Magdalena e deChristina, que fôram logo reconhecidas.
E cêdo depois entravam alegremente na sala, em companhia de D. Victoria, que vinha maïs retardada.
D. Dorothéa levantou-se para recebel-as.
—Bons dias ou boas tardes, tia Dorothéa, porque me parece que já jantaram. Vimos aquí para confiar aos seus cuidados a tia Victoria, que não nos quer acompanhar a ouvir a palavra éloquente do missionario—disse a morgadinha.
—Eu não; para apertos e barafundas é que não estou.
—E tu vaes, Lena? perguntou D. Dorothéa.
—Então? Não quero passar por impénitente. Ainda o não ouvi. Pode crer? Além de que percebi na Christe um fervor, com o qual quiz condescender.
—Dizem que préga tão bem—atalhou Christina.
—Pois prégará, mas eu é que já não estou para sermões—ponderou D.Victoria.
—Vou eu tambem ouvir o missionario—disse Henrique, levantando-se.—Já m’o mostraram ha dias. Se os dotes oratorios do homem corresponderem á figura...
—Então?—interrogou D. Dorothéa.
—É um homem gordo e vermelho, de pulso grosso e, em geral, typo da grossura do pulso.
—Pois bom é que vás, menino—disse D. Dorothéa—para acompanhares as pequenas.
—Como quizer, primo,—acudiu Magdalena—mas não se constranja. OTorquato tambem vae.
—Que quer dizer? Que me dispensa?
—Não; mas que se é só por condescendencia que...
—É por prazer. É por devoção.
—N’esse caso...
E Henrique foi procurar o chapéo para acompanhar as duas primas á igreja.
O Santo Amaro fôra festejado com espavento na freguezia da sua invocação. Vesperas, missa cantada, duplo sermão, e procissão á volta da igreja, nada faltára para solemnisar a festa.
O sermão da manhã fôra prégado por o abbade; o da tarde havia sido concedido ao missionario, que o aproveitára para uma das suas catechéses.
A procissão já tinha recolhido, quando chegaram á igreja a morgadinha e Christina, na companhia de Henrique e de Torquato. Havia no adro muita gente, e algumas barracas de doce e de café, como n’um arraial.
Pela porta principal da igreja engolfava-se a multidão, como em bôca de sorvedouro, subitamente aberto no leito de um rio, se precipitam as aguas impetuosas.
A fama, que pelas aldeias circumvizinhas apregoava o nome do missionario, attrahira immensa gente a escutar o sermão.
As senhoras do Mosteiro romperam a custo por entre a compacta massa popular, que se amontoava á porta da igreja, e conseguiram, por deferencia excepcional dos mesarios, entrar pela sacristía para a capella-mór.
Tinha um aspecto melancólico o interior da igreja n’aquella occasião. Pobre de si e pouco alumiada, maïs escura e lugubre parecia com a extraordinaria quantidade de gente que a enchia, na maior parte mulheres de roupas escuras e em que só alvejava o lenço branco que usavam á cabeça.
Apesar da quadra ir fria, como de janeiro que era, respirava-se alli dentro uma atmosphera quente, abafadiça e pouco salutar.
Um surdo murmurio formado por centenares de vozes rezando, a meio tom, orações e ladainhas, contrastava com as altas vozes de festa, que se escutavam lá fóra, e requintava a triste impressão que se recebia ao entrar. Alli um grupo de mulheres, de joelhos, escutavam a leitura de pias orações, que uma fazia em tom lutuoso, e respondiam em côro com Padre-Nossos e Ave-Marias; além viam-se outras com as faces rojadas no chão, batendo no peito e desentranhando exclamações, para commoverem a Divindade; outras em extase, como Santas Therezas, de braços abertos deante da imagem da Virgem; outras amortalhadas, em cumprimento de promessa feita a algum santo. Cavados na espessura das paredes havia uns pequenos cubiculos, que serviam de confessionarios. Ás portas d’estes nichos, munidas de um crivo de folha, adheriam, como as lapas nos rochedos, os vultos escuros das penitentes, fazendo para dentro a circumstanciada exposição dos peccados da semana, e recebendo de lá regras de bem viver, preceitos de devoção, ás vezes exaggerada e inspirada de certa moral de convenção, com que a ignorancia ou a má fé porfiam em falsificar os simples e luminosos dictames da moral, que a consciencia reconhece e que o Evangelho apregôa.
Ás vezes despegava d’aquelle crivo de peccados uma das confessadas; e exhausta de fôrças, abatida de animo, descrendo da misericordia divina, ia cair com desalento nos degraus do altar de Deus, que o fanatismo cego, senão hypocrita, lhe pintára inexoravel verdugo. Quando outra se não succedia a esta, via-se rodar nos gonzos a pequena porta d’estes cubiculos, e sair de lá um padre de batina, sócos e capote de cabeção, satisfeito de si, e revendo-se n’aquelles corpos prostrados, n’aquelles gemidos surdos, n’aquellas lagrimas humedecendo o pavimento do templo, tristes indicios de desalento moral, com que conseguira quebrantar os ingenuos espiritos que dirigia pela intimidação cruel.
De tudo isto vinha o aspecto sombrio e lugubre á igreja, que nem as luzes dos altares, nem as sanefas e cortinas de damasco, que com tanta arte dispuzera mestre Pertunhas, conseguiam dissipar.
Henrique estava sendo desagradavelmente impressionado por o que via.
Olhava com desgosto para aquelles signaes de um terror supersticioso, e sentia exacerbarem-se-lhe as prevenções que nutria contra o clero, cuja influencia moral, aliás justa e vantajosa, é cada vez mais diminuida por aquelles dos seus membros que pretendiam augmental-a por meios improprios da sublimidade da sua missão e até dos preceitos da religião, de que se dizem ministros.
Henrique fez algumas reflexões n’este mesmo sentido a Magdalena, que não pôde deixar de apoial-as, tanto mais que sabia o animo de Christina, que os escutava, não de todo superior a este apparato terrorifico.
A hora marcada para o sermão approximava-se; haviam-se já evacuado os differentes confessionarios, e o povo cada vez se apertava mais em todos os pontos da igreja e trasbordava para fóra das portas do templo. Quem de dentro olhasse para a porta principal veria que a grande distancia, na rua, se prolongava a multidão.
Apenas um confessionario permanecia ainda occupado. Havia mais de uma hora, que alli estacionava de joelhos uma penitente com a cabeça coberta por a capa de panno, com que rodeava o crivo do confessionario.
Nem o menor movimento revelava animação n’aquelle vulto.
Henrique notára essa immobilidade, que ao principio o fez sorrir; depois causou-lhe espanto e acabou, emfim, por o indignar. Qual, porém, não foi a sua surpreza e a de Magdalena, quando, ao terminar a confissão, reconheceram as feições da penitente por as de Ermelinda, a filha do Herodes, a formosa e amoravel creança, que, dias antes, tanto enthusiasmo causára, agora pallida, abatida, sem aquelles sorrisos nos labios, que tanta graça lhe davam!
E era esta creança que tão longos peccados tinha a narrar, para assim ficar tanto tempo aos pés do confessor?
Ermelinda, vagarosa, trémula, tendo claros os vestigios de lagrimas, e, como que enleiada de vergonha, caminhou por entre os grupos de mulheres ajoelhadas na igreja e veio cair de joelhos ao lado da madrinha e cêdo rojava com ella a fronte no chão, que regava de lagrimas ferventes.
Pobre creança! Que negros crimes lavariam aquellas lagrimas? Que culpas teria a expiar aquella inconsolavel dor?
O confessionario d’onde ella se afastára, abriu-se, emfim, e ás vistas, que para alli se voltaram, mostrou um padre gordo, córado, de olhos e fronte pequenos, cabellos grisalhos, rompendo-lhe a um dedo das sobrancelhas. O homem parou algum tempo a fitar o auditorio.
Espalhou-se no templo um sussurro particular; um movimento commum animou aquellas cabeças todas, quando este homem appareceu.
Era o missionario.
A sua passagem para a sacristia foi uma passagem verdadeiramente triumphal. Curvaram-se até ao chão as beatas, beijando-lhe a mão ou as borlas da batina, e pedindo-lhe a benção, que elle distribuia com profusão.
Mas a meio caminho da sacristia, para onde se dirigia, surgiu-lhe quasi do chão um estorvo.
Zé P’reira, o desconfortado marido, estava deante d’elle, gesticulando e realisando um triplice e admiravel esforço para firmar as pernas, para abrir os olhos, e para desembaraçar a lingua.
Dizia o homem:
— Ó sr. aquelle... ó sr. padre, ou missionario, ou lá o que é... eu quero-lhe perguntar uma coisa. Deus disse... sim, Deus disse... A religião manda... Quando um homem se casa...
O missionario não esperou pelo fim da inesperada interpellação; com modos rudes e pulso vigoroso arredou de si o atrevido, e bradou, fulo de cólera:
— Então que desafôro é este? Deixam um homem n’este estado vir ter commigo?!
E com maneiras e palavras igualmente asperas impoz silencio ao povo, que rira do desengano do Zé P’reira. Os mordomos acudiram logo para afastarem o Zé P’reira d’alli para fóra. Elle deixou-se ir, limitando-se a dizer mansamente:
— Ora, senhores, que é forte desgraça a minha! Então uma pessoa não pode dizer o que sente?
Ia elle já fóra da igreja e ainda se lhe ouvia a voz repetir:
— Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!
Quando depois d’esta scena, o missionario passou por Henrique, murmurou este em voz perceptivel, ao ouvido da morgadinha:
— Diga se este todo e este modo de tratar ovelhas não é mais de magarefe do que de pastor?
O missionario ouviu estas palavras, pois que se voltou como se uma vibora o picasse, e faiscou-lhe no olhar o fulgor de um odio pharisaico. Henrique arrostou-o com audacia provocadora.
O padre entrou para a sacristia.
No entretanto o auditorio dispunha-se para escutar o sermão, o mais commodamente que era possivel n’aquelle pequeno recinto.
No fim de alguns minutos apparecia no pulpito a figura bem nutrida e pouco attrahente do famigerado educador dos povos.
Fitou com sobranceria os ouvintes e com particular insistencia fixou em Henrique, que lhe ficava fronteiro, um olhar, que elle sustentou com firmeza.
Esta tacita provocação durou alguns minutos, no fim dos quaes poderia talvez, quem estivesse prevenido, distinguir nos labios do padre um sorriso rancoroso e perceber-lhe um movimento de cabeça quasi ameaçador:
Emfim soltou o texto latino do sermão.
Seguiu-se nova pausa, e principiou.
Apesar do exemplo de Sterne, que não duvidou entresachar nas paginas humoristicas da Vida e opiniões de Tristam Shandy, um sermão sobre a consciencia, eu não ouso transcrever para aqui o modelo de eloquencia sacra, recitado pelo missionario n’aquelle dia.
Ainda se eu pudésse transmittir aos leitores o tom rouco de voz, a extravagancia de gestos, o decomposto dos movimentos com que o orador acompanhava a recitação dos descosidos periodos d’aquella indigesta prática, talvez me animasse á empreza, para lhes dar um exemplo da vigorosa eloquencia, com que se anda atrazando a civilisação do povo e prejudicando a verdadeira religião, a despeito dos bons sacerdotes, cuja voz é abafada por aquella gritaria.
As mais tetricas e pavorosas imagens adornavam o discurso.
Era o enxofre a ferver, o chumbo derretido, as caldeiras de pez, as fornalhas ardentes, innumeras torturas, a que o menor delicto, tal como um jejum mal guardado, uma confissão mal feita, uma involuntaria falta á missa, uma penitencia esquecida, uma oração supprimida, arriscava as almas por toda a eternidade. Para cada peccado venial uma perspectiva de tormentos sem fim. O tribunal de Deus foi arvorado em tribunal de Santo Officio, onde os autos de fé, os pôtros, e cavalletes aguardavam os delinquentes arrastados até alli; eis o resumo da oração. A fatal e desesperadora sentença, que o poeta florentino esculpiu no portico do inferno, traçava-a este sobre os umbraes do tribunal do Eterno.
Na esculptura de Christo, obra rude do buril popular, mostrava o vulto de um accusador, surgindo alli a pedir vingança, e não o do Redemptor sublime a implorar e prometter perdão. E tudo isto de mistura com imprecações contra as modernas instituições sociaes, contra a obra do seculo, contra os descobrimentos, contra a sciencia, contra tudo em que se descobrisse o cunho da época e que tendesse a modificar os costumes e as ideias em sentido menos favoravel á propaganda reaccionaria.
Á medida que a oração progredia, animava-se a voz do orador; augmentava a desordem dos gestos e refinava a selvageria das imagens.
Ao mesmo tempo os gemidos, os soluços e os ais do auditorio, e principalmente da parte feminina d’elle iam crescendo em choro manifesto, em gritos e alaridos. Cêdo era já um angustioso clamor em toda a igreja. Magdalena, que se sentia, ella propria, um pouco impressionada por este espectaculo de desolação, voltou os olhos para Christina. Viu-a trémula, pallida, com as faces banhadas em lagrimas, tendo no gesto todos os signaes de um intenso pavor.
Assustada com o estado da prima, a morgadinha fez notal-o a Henrique, e tacitamente lhe communicou as apprehensões que sentia.
Henrique comprehendeu a necessidade de dissipar a funesta influencia que se estava exercendo no animo timido de Christina.
Sentou-se por isso junto das duas raparigas e principiou a distrahil-as com commentarios satyricos ás palavras do sermão e á figura do orador, que ambas offereciam farto alimento para elles.
D’ahi a pouco Magdalena instava já com Henrique para que se calasse.
Previa o perigo que poderiam correr, persistindo n’aquelles commentarios improprios do logar.
Effectivamente não tinham passado despercebidos, do padre os commentarios de Henrique, nem os sorrisos mal disfarçados de Magdalena; e a raiva despertada pela descoberta cada vez inflammava mais o orador, exacerbando-lhe a virulencia da phrase.
Já não podia tirar os olhos d’aquelle grupo, e por vezes a cólera, estrangulando-lhe quasi a larynge, interrompera-lhe o discurso.
Alguns ouvintes, seguindo a direcção d’aquelles olhares faiscantes, haviam attingido já a causa d’elles.
D’ahi algumas murmurações que principiaram a sussurrar pela igreja.
No grupo das beatas, em que estava Ermelinda, fôram ellas mais acerbas do que nenhumas. A sr.a Catharina e as suas companheiras fartaram-se de anathematisar a impiedade e a heresia da gente do Mosteiro, e no coração da filha do Cancella, dominado pelo terror que o sermão levára ao cumulo, calavam aquelles dizeres, que a faziam quasi olhar, como se fôssem já prezas do inferno, para Magdalena e Christina, a irmã e a prima de Angelo, do seu amigo de infancia, em quem já não se atrevia a pensar.
N’uma occasião em que o missionario fulminava com mais vehemencia os progressos da industria moderna e chamava redes do demonio e caminhos do inferno aos telegraphos electricos e ás vias-ferreas, Henrique approximando-se dos ouvidos das duas primas, fez não sei que reflexão tanto a proposito, que a morgadinha não conteve o riso; a propria Christina sorriu tambem.
Era de mais! O padre pulou no pulpito. Com os olhos em chammas, as faces apopleticas, os labios espumantes, os punhos cerrados e os braços hirtos e estendidos na direcção de Henrique, rompeu n’estes violentos termos:
— Fóra do templo, pedreiros livres, que vindes aqui escarnecer da palavra do Senhor! Fóra do templo, impios libertinos, que não respeitaes os ministros de Deus, nem o seu altar! Andam lobos no povoado e vieram esconder-se entre as ovelhas na casa do Senhor! Escorraçae-os, irmãos, se não quereis que se vos pegue a lepra do peccado e que Deus arraze esta aldeia, como arrazou Gomorrha e Sodoma. São esses os que trazem das cidades a peste para as aldeias; são estas as pragas que nos veem com as estradas e com a civilisação. Fugi d’elles, que trazem o demonio na alma! Homens sem religião, mulheres sem temor de Deus, mações, pedreiros livres, vindes para aqui tentar as almas? Eu vos esconjuro! eu vos requeiro! Vade retró, Satanaz, vade retró! vade retró!...
E de cada vez que repetia a fórmula exorcista, o missionario estendia o braço na direcção de Henrique.
Este, desde que viu que a imprecação lhe era dirigida, levantou-se e fitou o padre com ousadia imprudente. Preparava-se para lhe responder alli mesmo.
Quando o missionario concluiu, o sussurro da igreja degenerou em desordem. Das beatas transmittiu-se a revolta aos homens do campo, cuja má vontade, para com a gente das cidades, cresce sempre que se suspeitam alvo dos desdens ou zombarias d’esta. As ameaças soavam já distinctas, os varapaus mexiam-se pouco pacificamente, o escandalo tomára proporções assustadoras.
Christina quasi desfallecia; Magdalena, pallida, mas sem perder a presença de espirito, que nunca a abandonava, segurou o braço de Henrique e queria obrigal-o a retirar-se da igreja.
Henrique resistia e procurava falar.
O velho Torquato, trémulo e enfiado, puxava tambem por elle como podia.
O alarido, a confusão, a desordem recrudesciam. O padre tinha perdido a cabeça, e do pulpito animava a anarchia, berrando e bracejando.
Alguns homens prudentes, e entre elles o santo homem de um cura que havia na freguezia, obrigaram, quasi á fôrça, Henrique a sair da igreja por a porta da sacristia.
Ao vêl-o retirar, acompanhado das senhoras, o povo precipitou-se em confusão para a porta principal, para os vir esperar á saída da sacristia, e correu clamando atordoadoramente.
E de feito, quando alli chegaram, viram-se em frente de uma impenetravel parede humana, de centenares de rostos que os fitavam furiosos, de braços que os ameaçavam, e de bôcas d’onde partiam gritos de «morte aos pedreiros livres, aos libertinos e aos herejes.»
Magdalena recuou; Christina encostou-se-lhe ao hombro, quasi desmaiada.
Henrique parou á porta, pallido, mas sem recuar deante d’aquella gente furiosa e ameaçadora.
— Que querem de mim e d’estas senhoras? — perguntou elle, com voz firme.
Em vez de responder-lhe, berraram com mais violencia:
— Morra o pedreiro livre!
— Ensinem esses senhores da cidade!
— Pouca vergonha!
— Isto não fica assim! Isto é de mais!
— Mação!
— Hereje!
— Quero passar! — repetiu Henrique, no mesmo tom imperioso.
— Havemos de ensinar estes fidalgos.
— Excommungados!
— Havemos de lhes dar os risinhos na egreja.
Henrique não podia já reprimir a impetuosidade do genio; deu um passo para elles, levantando o chicote que trazia na mão.
Era uma imprudencia perigosa. N’um momento uma verdadeira nuvem de varapaus cruzou-se sobre a cabeça d’elle.
E os gritos de «morra! mata! abaixo os pedreiros livres e herejes!» levantaram-se mais ameaçadores do que antes. Magdalena susteve, a tremer, o braço de Henrique.
E o tumulto crescia cada vez mais e cada vez mais augmentava o perigo.
Uma grande pedra, impellida de longe, veio bater na verga da porta da sacristia, e na quéda ameaçava ferir a cabeça de uma creança que, entremettendo-se no grupo dos amotinadores, conseguira collocar-se junto de Magdalena, e de olhos espantados assistia áquillo tudo com infantil curiosidade, emquanto a mãe afflicta a chamava em altos gritos, procurando-a no adro. A morgadinha, estendendo as mãos para proteger a cabeça da creança, foi ferida nos dedos pela pedra. Com gesto sereno, e em tom desaffectadamente reprehensivo e ao mesmo tempo placido, disse para toda aquella gente:
— Não vêem que iam matando esta creança?
Esta simples acção, e estas palavras da morgadinha, produziram mais effeito do que todos os arrazoados e todas as resistencias. Havia n’ellas claros indicios de uma indole generosa, e a generosidade foi e será sempre um dos mais poderosos elementos para dominar e commover as massas. Sabem-o os especuladores politicos, que tanto se esforçam por simulal-a, quando precisam do povo.
— Quem foi que atirou a pedra? — perguntou um.
— Temos tolice!
— Nada de pedra, olá!
— Então isto é coisa de garotos!
Estava a quebrar-se a furia da onda popular. Os que antes gritavam «morra» achavam já reprehensivel a primeira tentativa de lapidação. E comtudo era a pedra a arma mais prompta para executar a sentença. Era evidente que o maior perigo passára e que um pouco de prudencia resolveria a crise.
O peor era que Henrique possuia em pequeno grau essa qualidade, e, irritado pelo insulto, ia commetter talvez algum acto irreflectido, apesar dos esforços de Christina e de Torquato para o reprimirem.
Uma circumstancia, porém, veio inesperadamente em auxilio d’elles, e concorreu para dissipar a tempestade.
Foi o caso que, depois de ser posto fóra da igreja o Zé-P’reira, que, pelas razões que o leitor já sabe, e inda mais depois do mallogro da interpellação ao missionario, não olhava com bons olhos para este, veio desconsoladamente sentar-se no adro, sobre os degraus de um cruzeiro, tendo ao seu lado o popular tambor, instrumento das suas glorias, e que ainda n’aquelle dia servira á frente da procissão.
Ahi se conservou em quanto durou o sermão. Junto do artista deitára-se a dormir o seu satellite, o rapaz do bombo, o que, a passadas compassadas e valentes, secundava os rufos rapidos e febris que o outro executava na caixa — pancadas que eram, por assim dizer, as virgulas d’aquelles floridissimos periodos acusticos.
Em posição de cansaço e desalento o Zé P’reira monologava, como era habito seu, sempre que tinha o cerebro repassado do espirito familiar.
Lamentava comsigo, o bom do homem, o desmazêlo domestico da sua cara metade; a influencia funesta dos missionarios na paz das familias, e sobre tudo a indifferença que principiava a perceber nas massas para as maravilhas do predilecto instrumento, que elle conhecia a preceito.
Era de facto esta uma das causas dos pesares secretos do hortelão.
Desde que, por influencia do mestre Pertunhas, se instituira a philarmonica na aldeia, Zé P’reira andava triste e desassocegado.
N’aquillo viu elle a morte da sua arte. Um ceci tuera cela, como o que preoccupava e entristecia o arcediago de Notre-Dame de Paris, analogamente inquietava o nosso homem. O espirito e gôsto publico entravam em nova phase, preparava-se uma revolução na arte. O reformador era o mestre Pertunhas; instituindo a banda marcial, verdadeira extravagancia romantica comparada á simplicidade e nobreza classica dos portentosos rufos do Zé P’reira, o mestre de latim realisou um commetimento digno de menção na historia da arte.
Pobre Zé P’reira!
Estas reflexões estavam-lhe acudindo todas, e mantinham-o, havia perto de uma hora, em uma posição contemplativa deante do tombado instrumento de seus ruidosissimos triumphos. Lia-se n’aquelles olhares fixos uma melancolía quasi poetica.
N’esta contemplação o surprehendeu a tumultuosa e subita saída do povo pela porta da igreja, e as scenas de motim que se lhe seguiram. A intelligencia pêrra de Zé P’reira não achou logo a explicação do que via. Pouco a pouco porém os varapaus no ar, os gritos, a confusão, principiaram a dar-lhe uma vaga consciencia da desordem popular.
Os instinctos ordeiros e pacificos de Zé P’reira acordaram, e o homem ergueu-se.
Olhou algum tempo para o logar do maior tumulto, e em seguida passou ao tiracollo a alça do tambor.
Olhou outra vez, e com um pontapé acordou o seu satellite, que, estremunhado, tomou automaticamente para si o bombo do acompanhamento.
Olhou outra vez, e viu nos ares a pedra que feriu Magdalena. Então o Zé P’reira não esperou maïs nada, tomou uma resolução, fez um signal ao rapaz, e...
Pom—fez a baqueta d’este, caindo com toda a fôrça sobre a retesada superficie do bombo.
Taplão, taplão, rataplão, rataplão...—responderam as baquetas movidas pelas amestradas mãos do Zé P’reira.
Muitas cabeças de amotinados voltaram-se na direcção do som.
O Zé P’reira proseguiu; adquiria cada vez maïs velocidade o jogo das baquetas; começava a ganhal-o o vapor do enthusiasmo.
Principiou a acudir o povo para junto do artista.
Este tomára-se já do raptus, do phrenesi musical. Já não eram só as mãos, eram os cotovelos, eram os joelhos, era a cabeça que rufavam. De olhos fechados, dentes ferrados nos labios, ventas offegantes, contrahidos quasi tetanicamente os músculos do pescoço, a vergal-o para traz, Zé P’reira parecia endemoninhado. Não via, não ouvia, não sentia, não tinha consciencia de si, nem dos seus actos; todo elle era fogo, delirio, convulsão, febre, loucura. Parecia que poderosas correntes electricas se transmittiam do tambor ao cerebro, e do cerebro ao tambor, desafiando aquelles movimentos choreicos, aquelles grunhidos surdos, aquellas visagens extravagantes, aquellas contracções geraes, que o torciam, desconjunctavam e desfiguravam.
Vencera-o completamente a febre; sangue, nervös, músculos, cerebro, tudo era dominio seu; congestionado, allucinado, louco, rufou, rufou, rufou com desespero, rufou até as baquetas se não avistarem, de rapidas que se moviam; rufou até o ouvido quasi não perceber a descontinuidade dos sons; rufou finalmente até cair por terra exhausto, no collapso que succède ás convulsões do espasmo. Se tinha de ser aquelle o declinar de uma gloria, todos os astros lhe invejariam tão espléndido crepúsculo.
O povo inteiro applaudiu o artista.
E quando voltaram a si do extase em que elle os tivera, acharam já fechadas as portas da sacristía e nem vestigios da familia do Mosteiro. O povo dispersou pacificamente.