XVII
Não havia mentido a grande scintillação das estrellas na noite de Natal.
A manhã do dia seguinte correspondeu ao augurio meteorologico, rompendo pura, desennevoada, com um céo azul sem manchas, e um sol de fundir os gêlos dos montes e os gêlos da velhice.
O frio intenso convidava a sair, e desde pela manhã aldeões de ambos os sexos, de camisas lavadas e roupas domingueiras, atravessavam os campos, saltavam sebes e cancellos, desembocavam das azinhagas e quelhas na direcção da igreja matriz, onde se deviam celebrar as festas da Natividade.
Era dia santo entre os que mais o são; e os dias santos na aldeia teem uma feição solemne e festiva, que mal avaliamos nós, os que passamos a vida nos apertados horizontes das cidades, phantasiando o campo por meia duzia de pardaes, que chilram ruidosamente nas cópas das enfezadas arvores das nossas praças e jardins.
Desde que a moda estabeleceu a lei de não solemnisar o domingo nem o dia santo, com um vestuario mais asseiado, com um prato mais exquisito na lista do jantar, com uma diversão excepcional, que todos deram em vestir-se, comer e trabalhar n’esses dias, exactamente como em todos os da semana, perderam nas cidades os dias do Senhor a feição typica e interessante, que por muito tempo tiveram; e quem hoje bem os quizer apreciar tem de ir n’um sabbado pernoitar ao campo, para amanhecer no domingo ao som do sino, que chama para a missa matinal.
Dirá então se não parece que até o sol tem outra luz e que as arvores e as plantas se toucaram de flores novas, que guardam de reserva para os dias de festa.
Este particular aspecto do domingo estava-o logo pela manhã sentindo Henrique de Souzellas, encostado á varanda do quarto em que pernoitára, e emquanto esperava que o chamassem para o almoço.
De vez em quando a recordação das scenas nocturnas da vespera desviava-lhe para outra ordem de reflexões o pensamento; acudiam-lhe todos aquelles incidentes á memoria, mas vagos e confusos, como se tivessem sido sonhados; chegava quasi a duvidar da realidade d’elles.
Agora estava experimentando certa curiosidade e tambem receio de saber como seria recebido pela morgadinha, e que posição deveria tomar na presença d’ella.
Formava a este respeito varias conjecturas, sem se fixar em nenhuma.
D’estas cogitações veio por fim arrancal-o o toque da campainha annunciando o almoço.
— Vamos, — disse Henrique — preparemo-nos para o primeiro embate. Apuremos a vista para n’um relance julgar do estado das coisas, e por elle regular o meu plano de tactica.
E depois de uma rapida consulta ao toucador, desceu para a sala do almoço.
Já alli encontrou reunida toda a familia do Mosteiro, e a morgadinha presidindo á mesa e preparando o chá.
Todos saudaram Henrique, e a um tempo se informaram da maneira por que elle tinha passado a noite.
Henrique respondeu que a tinha dormido deliciosamente; e, falando, desviava o olhar para Magdalena, que o encontrou do modo mais natural, sem timidez nem audacia.
Seguiram-se os cumprimentos em particular, chegando portanto a vez de cumprimentar Magdalena.
— Bons dias, prima Magdalena, — disse Henrique, estendendo a mão e fixando-a com olhar investigador.
Magdalena respondeu-lhe ao cumprimento, com sorriso que nada tinha de affectado nem de constrangido:
— Bons dias, primo Henrique. Devem-lhe parecer horrorosos estes nossos habitos matinaes. Foi uma indiscreção mandar tocar a campainha. Esqueci-me de prevenir que respeitassem a indolencia cidadã.
— Eu é que não consentia: — disse o conselheiro — na aldeia como na aldeia. Em Lisboa tambem as minhas alvoradas são mais tardias.
— Tem razão, sr. conselheiro. Eu proprio não esperei que me acordasse o toque da sineta. Ha muito que eu namorava a manhã da janella do meu quarto.
— Eu não pude dormir toda a santa noite — disse D. Dorothéa. — Estranhei a cama e a casa. Eu cá sou assim, quem me tira do meu ninho!...
— Ó prima, não vá sem resposta — disse D. Victoria — que tambem eu não puz olho, e mais sou de casa. E por signal que sempre hei de querer saber quem foi o criado que lhe deu para andar toda a noite por a quinta. Eram que horas e eu ainda ouvia pés nas escadas de pedra. É verdade; o primo Henrique não ouviu? Era mesmo junto do seu quarto.
— Não, minha senhora; eu não senti rumor.
E dizendo isto, Henrique procurou os olhares da morgadinha, que justamente n’aquella occasião lhe servia uma chavena de chá, e que de novo o fixou sem perturbação nem affectada indifferença.
Henrique sentiu-se embaraçado com isto. Custava um pouco á sua vaidade este nenhum vestigio de resentimento ou de receio, que encontrava em Magdalena.
No entretanto D. Victoria continuava a commentar com D. Dorothéa o facto das passadas que ouvira de noite.
— Deixe-se d’isso, prima. É porque não sabe o que vae. São coisas d’estes criados. Não faz ideia! É uma pouca vergonha! É preciso paciencia de santa para os aturar.
— Angelo, — disse a morgadinha ao irmão — entretido como estás a conversar com as creanças, esqueces-te de servir a Christe, que tambem se esquece de se fazer lembrar. Que distracções por aqui vão!
Angelo reparou para a prima, que em todo aquelle tempo estivera calada e caida em uma d’aquellas abstracções, a que ultimamente era sujeita.
— Eu não sei que tem hoje esta Christe — disse Angelo. — Julgo que lhe fez mal o frio na noite de hontem.
— É verdade, até está falta de côr! Ora queira Deus que não seja coisa de cuidado. Dóe-te alguma coisa, menina? — perguntou D. Victoria, apprehensiva.
— Não, mamã — respondeu Christina.
— Ó meninas, vocês tambem são umas desacauteladas. Eu bem te dizia hontem, Christe, que levasses mais roupa. Tudo é não faz mal, tudo é não tem dúvida, e depois é que vem o queixarem-se.
Isto disse a senhora de Alvapenha e muitas coisas mais n’este sentido. Estas reflexões fizeram Henrique desviar os olhos para a pessoa que era objecto d’ellas.
Christina estava effectivamnte pallida e pensativa; e d’esta côr e d’esta expressão recebia uns ares de poesia melancolica, que a tornava mais graciosa.
Henrique notou pela primeira vez a belleza d’esta creança, em que mal fixára a attenção até alli, e pela primeira vez se demorou a observal-a com alguma insistencia.
— É interessante esta pequenita — pensava elle comsigo.
Christina ia a levantar os olhos para responder a D. Dorothéa, quando encontrou os de Henrique a fital-a. Assomou-lhe então ás faces um mal pronunciado rubor, a palavra resolveu-se n’um sorriso e os olhos baixaram-se de novo.
— Ha de ser adoravel esta mulher — pensou d’esta vez Henrique, vendo-a sob novo aspecto.
O conselheiro disse, sorrindo:
— Ora, que estão a dizer? A Christe até está com umas côres muito bonitas. Triste? Melancolias dos dezoito annos nunca me deram cuidados. Provavelmente está agora n’algum episodio sentimental no romance da sua imaginação. Não sondemos aquelles mysterios, mana. Já não é para nós comprehendel-os, prima Dorothéa.
Todos riam do dito do conselheiro, o que redobrou o enleio de Christina.
A morgadinha, a quem não passára despercebida a impressão, que a prima d’está vez parecia ter causado a Henrique, quiz aproveitar o ensejo que havia tanto procurava, e para isso propoz que se désse uma volta pela aldeia antes da missa do dia. Esperava ella que as attenções de Henrique, durante o passeio, seriam para Christina, se não decorresse o tempo preciso para que se dissipasse no espirito do voluvel rapaz a impressão que o dominava.
A manhã convidava á excursão campestre. A proposta da morgadinha foi acolhida com applauso. O conselheiro prometteu acompanhal-os até á casa do herbanario, a quem tinha de visitar aquella manhã.
Levantaram-se todos da mesa, e á excepção de D. Victoria e D. Dorothéa, todos saíram.
A morgadinha, sob não sei que pretexto, deixou-se ficar um pouco atraz para dar tempo a Henrique de offerecer o braço a Christina, o que effectivamente aconteceu.
— Bem, — disse Magdalena comsigo ao vêl-os — agora que os anjos bons de um e de outro se convençam da obra meritoria que fazem entendendo-se.
E, approximando-se do pae, Magdalena apoiou-se-lhe no braço.
Angelo ia com as creanças adeante.
Approximemo-nos nós de Henrique e de Christina, para vêr se os anjos bons d’elles ambos accederam ao convite de Magdalena.
— Não ha prazer que se compare ao de um passeio assim pelos campos, n’uma manhã como a de hoje, e em companhia tão amavel — dizia Henrique, procurando aquilatar o espirito da sua partner, n’um certame de galanteria, fóra do qual não concebia que se pudesse temperar uma paixão.
Pobre rapariga! Que eloquentes e apaixonadas respostas lhe estava porventura ditando a alma! mas o enleio da timidez fechava-lhe os labios, não lhe deixando formulal-as; apenas pôde responder:
— Está muito agradavel a manhã, está; nem parece de inverno!
— Pelo que vejo, não gosta do inverno? É natural em uma senhora isso. Faltam-lhe as flores e as aves, suas irmãs. Eu prefiro o inverno, porque prepara a vida intima, as scenas ao canto do fogão, as leituras em commum, e traz-me á ideia as imagens de um viver a que a phantasia de todos sorri; de todos os que teem um resto de coração; refiro-me ás imagens de uma familia.
Não ha quem sustente mais tremendas luctas do que os timidos. A alma revolta-se n’elles, com toda a violencia dos seus instinctos, contra não sei que mysterio de temperamento, que lhes reprime as expansões. Na apparencia é fraqueza e serenidade, mas no intimo ha esforços realisados, que os fortes nem concebem sequer.
Christina encobria no seu enleio uma d’estas luctas. Os labios só puderam responder:
— Na cidade o inverno é mais facil de passar, julgo eu; porém na aldeia...
— Na aldeia e em toda a parte se pode gosar a felicidade que eu imagino. Não é fóra das portas de casa que devemos procurar os elementos para instituir a nossa ventura, e por isso... Mas a prima ha de estar admirada de ouvir falar assim um homem que completou os seus vinte e sete annos sem familia. Não é verdade?
Christina só pôde sorrir:
— Mas que quer? Quem muito idealisa arrisca-se a morrer apaixonado do ideal e abraçado á peor das realidades. É a consequencia legitima e triste do aspirar demasiado. Até hoje tenho encontrado na vida mulheres formosas, amaveis, interessantes; porém nenhuma que satisfizesse ás necessidades do meu coração, de quem me affirmasse a consciencia poder esperar a realisação do meu sonho. Perdôe-me falar-lhe n’isto, priminha; é uma ousadia que tomei, porque um instincto me disse que possue no coração bastante bondade para m’a perdoar.
— Está a gracejar? — disse Christina, em quem redobrava a turbação, e que, ao mesmo tempo que estava sendo feliz, desejava vêr interrompida a sua felicidade: contradicções proprias dos timidos.
— A prima é muito moça — continuou Henrique, que não desesperava ainda de animar esta Galatheia — e talvez por isso lhe causará estranheza este meu modo de falar. Um dia virá, porém, em que o comprehenderá melhor. Se então encontrar um desconfortado como eu, peço-lhe que tenha misericordia d’elle e o salve do desalento, em attenção a quem a conheceu n’uma época, em que só podia vêr em si, priminha, a aurora de uma esperança que já não tinha de luzir para elle.
— Mas... salval-o!... como salval-o!...
— Como as mulheres salvam; amando.
— Bem digo eu que está a gracejar — balbuciou Christina, com voz trémula.
— Tem o defeito da innocencia — disse Henrique para si. — Não se lhe tira uma resposta de geito.
N’isto chegaram defronte da porta, por onde Magdalena tinha saído da quinta na noite passada.
— Agora deixo-os por aqui — disse o conselheiro — irei encontral-os á igreja. Vou arrostar com a fera silvestre ao proprio covil.
— Meu pae, lembre-se do que lhe recommendei — disse Magdalena.
— Socega, filha; serei de cera. Até logo.
— Até logo.
E o conselheiro tomou a direcção da casa do herbanario.
— Era tempo! — disse Henrique comsigo. — A minha eloquencia arrefecia na proximidade d’este gêlo.
A morgadinha havia quasi adivinhado tudo; estudando as physionomias de Christina e de Henrique, conheceu que se não haviam entendido.
— Ainda não! — murmurou ella. — Pobre Christe! como se deve estar odiando a si mesma! Como ha de esta creança vencer este obstinado? Mas não perco ainda as esperanças.
Henrique, na presença d’estes sitios, recordou-se da scena da vespera e tentou outra vez experimentar Magdalena.
— Esta porta é da quinta do Mosteiro, não é, prima?
— É — respondeu Magdalena, imperturbavel; e voltando-se para Angelo: — O que te faz lembrar esta porta, Angelo? — perguntou ella.
— Que muitas vezes por aqui saímos, eu e vós ambas já de noite, e sem a tia saber, para irmos ter com o tio Vicente, que voltava da caça das borboletas.
— Fica perto a casa d’elle? — perguntou Henrique.
— É alli, logo ao dobrar d’aquella esquina — respondeu Angelo.
Henrique pensava:
— Seria para provocar uma explicação que ella fez a pergunta? Esta mulher é admiravel! Não lhe sei resistir.
E já lhe não restavam vestigios da impressão causada por Christina.
— Este herbanario — continuou elle em voz alta — deve, pelos seus habitos excentricos e até pelo solitario do sitio em que vive, ter aqui na terra certa famazinha de feiticeiro.
— E tem, — affirmou Magdalena — mas de feiticeiro bem intencionado.
— Devem correr muitas fabulas a respeito d’elle, do seu viver.
— É certo que poucos se atrevem a passar aqui de noite, apesar de todo o bem que elle faz de dia.
— Ah! Então temem-se de passar aqui de noite!... Pobre homem!... O que lhe valerá é algum espirito forte que ainda por ahi haja, na aldeia. Que diz, prima Magdalena? haverá?
Antes que a morgadinha respondesse, Angelo disse:
— Á excepção de Augusto, que ahi vem quasi todas as noites, ninguem mais o visita.
— Ah!... O sr. Augusto vem ahi quasi todas as noites?!
Magdalena luctava para reprimir a impaciencia.
— Lá me parecia que havia de existir algum de coragem. Para tanto não chegava o seu animo não, prima?
— Tanto chega, que já muita vez alli tenho ido só, e a altas horas — respondeu Magdalena com a maior firmeza.
— Sim?! E não tem mêdo?
— De quê? De almas do outro mundo? não tenho crença para tanto. De malfeitores? não os ha aqui. N’esta terra todos me respeitam, nem com uma suspeita me offendem — disse a morgadinha, accentuando com expressão as ultimas palavras.
Henrique acudiu immediatamente:
— Longe de mim duvidal-o.
E calaram-se por muito tempo.
Pela sua parte proseguia o conselheiro no caminho para casa do herbanario. Cruzou-se com varios homens, mulheres e creanças de aspecto doentio e soffredor, que voltavam de consultar o velho a respeito dos seus males; eram mancos, ictericos, escrofulosos, creanças de aspecto rachitico e enfezado, os mais melancolicos exemplares do infortunio humano.
— São os peregrinos que veem de Meca — disse comsigo o conselheiro. — Pelo que vejo a clientela do meu velho amigo herbanario mantem-se fiel, como d’antes. Valha-nos Deus, que o meu severo censor não trata com muito respeito o codigo.
Entrou emfim a porta do quintal.
Poucos passos andados encontrou-se com o Zé P’reira, que vinha virando e revirando nas mãos um papel e monologando, segundo o costume:
— Ora! ora! ora!... Estragar o vinho de nosso Senhor com esta mexerofada! Isso até era um peccado. N’essa não caio eu!
O conselheiro interrogou-o sobre as causas d’aquelle aranzel.
O homem, depois de cortejar, respondeu mostrando uma receita que lhe dera o herbanario no virtuoso intento de lhe fazer aborrecer o vinho, causa dos seus males. A receita era extrahida da Polyantheia, e tinha por ingredientes uma cabeça e sangue de carneiro, cabellos de homem e figado de enguia; mas o doente ia pouco disposto a experimentar-lhe a efficacia.
Depois de se separar do Zé P’reira, o conselheiro seguiu por uma rua de limoeiros, e como homem a quem era familiar a topographia do quintal. Cêdo chegou á vista do herbanario, que dera audiencia sub tegmine fagi.
Estava sentado á borda de um tanque, a que uma d’essas arvores dava sombra.
O conselheiro saiu emfim de traz dos limoeiros e veio ter com elle.
Ao rumor dos passos, Vicente voltou a cabeça, e, depois de reconhecer quem era, retomou a sua primeira posição e ficou silencioso.
— Bons dias, Vicente — disse o conselheiro com familiariedade e parando defronte d’elle.
— Bons dias, Manoel — respondeu o herbanario, deixando-se ficar sentado.
— Saía agora d’aqui um homem, que julgo será rebelde a toda a tua medicina. Padece de mal que se não cura.
— Os vicios são enfermidades mais rebeldes do que os achaques do corpo, são.
— Já que tu não appareces no Mosteiro, como d’antes, para solemnisar comnosco as festas do Natal, vim eu vêr-te.
— Obrigado.
— A tua misanthropia vae-se azedando, Vicente — continuou o conselheiro, sentando-se á beira do tanque. — Cada vez te estás a sequestrar mais dos homens, cada vez mais os aborreces.
— Eu não aborreço os homens, enganas-te. Não os aborrece quem passa a vida a procurar os meios de alliviar os padecimentos dos seus semelhantes. Estou velho, isso sim; e, como velho, encontro já no mundo pouca gente com quem me entenda. As ideias do meu tempo passaram. Por isso deixo-me ficar em casa a pensar n’elle.
— És um homem singular; um verdadeiro philosopho. Ora dize-me: e em que cogitas tu, quando assim passas uma manhã inteira, sentado n’esse banco, com os joelhos ao sol, os braços cruzados, e os olhos no chão?
— No passado. Pois não t’o disse já? O domingo reservo-o eu para me recordar. Ahi está que ha pouco, quando aqui me vim sentar, ao ouvir os repiques na igreja, lembrei-me de que era, dia de Natal, e o meu pensamento voltou quarenta annos atraz a um dia igual ao de hoje. Lembras-te d’elle, Manoel?
— Do dia de Natal de ha quarenta annos? Não.
— Lembro-me eu. Faz hoje mesmo quarenta e dois annos que, mais cêdo do que estas horas, vieste ter commigo aqui a casa. Tinhas pouco mais ou menos a idade que hoje tem teu filho Angelo. Meu pae saíra; julgámos nós ambos boa a occasião de levar a cabo um projecto que havia muito tempo traziamos na cabeça. Crescia a um canto do muro, além, á beira do poço, uma pequena faia que alli não podia durar muito tempo; meu pae todos os dias a ameaçava com a enxada e a custo a tinhamos defendido. Resolvemos transplantal-a. Deitámos mãos á obra essa manhã, e, no fim de alguns segundos, estava a faia mudada. Trouxemol-a para onde a deixassem em paz os hortelões, e para junto da agua que ella já tinha procurado. Conheces a arvore hoje?
— Não — disse o conselheiro, olhando em roda, como á procura de algum pequeno arbusto.
— Olha que ha quarenta annos; a planta é hoje arvore. É esta a que me encosto.
O conselheiro levantou então os olhos para os ramos vigorosos da arvore, como se lhe parecesse impossivel ter sido removida para alli por suas mãos.
— É singular como os annos correm, e as arvores crescem depressa — disse elle, distrahidamente.
— Depois da nossa tarefa, sentámo-nos — proseguiu o herbanario. — Tu ficaste, exactamente como estás agora, á beira d’este tanque. Então, lembra-me bem; olhando para os ramos tenros d’este arbusto, que ainda não sabiamos se viveria, tu disseste: «Fizemos uma obra que durará mais do que nós.» E eu respondi: «Quem sabe? O machado vem, quando menos se espera.»
— Como te lembras bem d’essas coisas! — disse o conselheiro, sorrindo constrangidamente, porque não agourava bem do exordio que abrira a entrevista.
— Ai, eu tenho boa memoria!
Houve um momento de silencio, que Vicente interrompeu subitamente, dizendo:
— Mas a final o que te trouxe hoje aqui?
O conselheiro respondeu com resolução:
— Vêr-te, como disse, e ao mesmo tempo falar-te de um objecto grave.
— Sim? E commigo é que vens tratar os objectos graves?
— Por que não? sempre foste homem de bom conselho.
— Nem sempre, Manoel, ou nem sempre pensaste assim.
— Não poderás dizer que deixasse alguma vez de te respeitar. Os nossos genios differem, os nossos diversos habitos da vida ensinaram-nos a pensar diversamente a respeito de muitas coisas. D’ahi procedem divergencias naturaes, que comtudo nos não obrigam a deixar de nos estimarmos, julgo eu.
— Bem, então dizias tu que vinhas?...
— Trata-se de um negocio de muita importancia, Vicente.
— Dize.
— Responde-me primeiro: tens ainda animo para sacrificios?
— Pouco tenho que sacrificar.
— Tens, e é um sacrificio doloroso.
— Acaba.
— Trata-se de te desapossar d’esta casa e d’este quintal, para abrir por aqui a estrada em projecto.
O herbanario, contra a expectativa do conselheiro, acolheu sem surpreza estas palavras, e respondeu, com certa ironia:
— E para que me vens consultar? Posso eu oppôr-me a isso? Avisas-me para eu me arredar a tempo da sombra d’estas arvores, mais velhas do que eu, a fim de que não me esmaguem ao caírem decepadas? És generoso, Manoel, em teres ainda em conta a vida de um homem inutil.
— Ahi estás já com as tuas recriminações. Acredita que eu...
— Não mintas, Manoel, não mintas. Ias dizer que não tinhas tomado parte n’este projecto. Tem coragem e lealdade, homem, e dize tudo. Entre mortificares o coração de um velho e pobre amigo e offenderes os interesses de algum rico e poderoso influente, tomaste o primeiro partido; e, como os differentes habitos de vida te ensinaram em muitas coisas, como dizes, a pensar differente de mim, não déste a isso o nome de ingratidão.
— Ouve.
— Sê franco, que eu te ouvirei.
— Pois bem, serei franco. Sim, confesso-t’o; era indispensavel que esta estrada se fizesse. Bem o sabes. Estava n’isso empenhada a minha palavra e a minha honra. Ha muito que os meus adversarios me fazem guerra por causa d’ella. Trabalhei e consegui, apesar d’esta situação politica me ser contraria. Tres traçados se offereciam. Um sacrificava uma grande parte dos bens de meus filhos, de Angelo que não é muito rico, que está no principio da existencia e que só Deus sabe se no decurso d’ella não teria occasião de maldizer a imprevidencia de quem devera olhar por os seus interesses. Querias que o sacrificasse? Sabes que os Brejos, vendidos hoje, nada valiam; e que dentro em pouco tempo, convenientemente trabalhados, podem ser de um valor importante. Querias que o fizesse? ou não me desculpas por o não ter feito?
— Fizeste bem — respondeu o herbanario.
— O outro traçado cortava os bens do brazileiro Seabra. Conheces este homem? Um elemento que, nas mãos de quem lhe saiba lisonjear e conduzir a vaidade, pode ser de utilidade para esta terra; mas tambem uma cabeça que, entregue a si, não faz coisa de geito. O homem oppunha-se formalmente a esse traçado; se o não attendesse, declarava-se, por despeito, no campo contrario ao meu. Se vencia (e algumas armas tem para luctar), imagina a calamidade que seria para este circulo o confiar áquellas mãos os seus destinos; vencido, era perder a esperança de tirar dos bem fornecidos cofres, que o homem possue, alguma coisa mais util do que um sino para a igreja ou vestimentas novas para as imagens dos altares. Eu ando a catequisar o homem, para vêr se consigo d’elle uma casa para escolas, melhor do que esse albergue que ahi temos, e um estabecimento sericicola; se o desattendesse, lá iam as esperanças d’estes melhoramentos tão uteis, e que o mais que nos poderão custar é um diploma de visconde ou uma commenda. Sei que te não agradam estes meios, porém olha que em politica são dos mais innocentes que podem empregar-se. Já vês pois que o segundo traçado tinha desvantagens para o circulo, por cujo interesse me empenho devéras; podes crel-o. Resta pois o terceiro traçado que, lealmente o confesso, não era o melhor, nem scientifica nem economicamente considerado; eu sabia de mais o que valia para o teu coração o sacrificio que se te vinha exigir; eu mesmo possuo memorias ligadas a estas arvores, e não ha homem que, aos cincoenta annos, veja sem repugnancia desapparecerem os vestigios dos seus tempos de infancia e de juventude; mas sabia tambem que tu eras uma alma generosa e heroica, e que não duvidarias comprar, á custa das tuas dores e saudades, um melhoramento para esta terra, que tanto amas. Esta estrada, promettida ha tanto, e concedida ainda agora de má vontade, corre risco de se não fazer, se, quanto antes, não principiarem os trabalhos; a menor opposição dos proprietarios, o menor embargo dilatorio, podem ser motivo para o seu adiamento, porventura indefinido. Por isso tambem me animei, porque contava comtigo, Vicente. Enganei-me?
O herbanario estava cada vez mais pensativo.
— Pensaste bem. A velhice é assim; e eu queria dar mais importancia a dois annos de vida que me restam, do que á vida nova que vae haver para esta terra. Fizeste bem.
— Esperava ouvir isso mesmo de ti, Vicente. Além de que, dissipa as apprehensões com que estás; em toda a parte terás arvores...
O herbanario interrompeu-o:
— Se não entendes o amor que eu tenho a estas, não faças por consolar-me, Manoel, porque me affliges mais.
— Porém deixa-me dizer-te, Vicente, que no Mosteiro, ou em qualquer das nossas propriedades, tens sempre um logar vago á tua espera, tanto á mesa, como ao canto do fogão, e amigos que te receberão com prazer.
— Não receio ficar sem abrigo, Manoel. Em cada choupana de pobre teria tecto e pão. Conto com a colheita de algum bem que semeei.
— Eu farei com que o contracto da expropriação seja o mais favoravel possivel. Vejamos, em quanto avalias...
— Não falemos n’isso. A avaliar por o que eu lhe quero, ninguem m’o pagaria; a não attender a isso, tudo será pagal-o bem.
— Mas...
— Não falemos n’isso, homem. Tenho medo de que estas arvores me ouçam propôr o preço por que as vendo. Se alguma coisa posso pedir-te, então...
— Tudo. Dize em que te posso servir.
— Peco-te que decidas a pretenção d’aquelle pobre rapaz, de Augusto; que te lembres um dia de que aqui na aldeia ha um homem, que tem vinte annos, um coração e uma cabeça como tu sabes, e que de ti e dos teus, da gente que dá e vende graças, honras e empregos, só quer um favor... mais uma justiça: lembra-te d’isso.
— Falas do despacho effectivo para professor? É uma coisa facilima; mais que elle queira... E antes elle quizesse mais; esse rapaz perde por modesto. Acredita, ás vezes é mais facil servir os ambiciosos. Nem eu sei o que tem empatado esse negocio. É certo que ha um competidor, por quem alguem trabalha; mas não importa; conta com isso, como negocio concluido.
— Emquanto não vir...
— Hoje mesmo escrevo para Lisboa. É só isso que pedes? Vê lá.
— E que me deixes agora só.
— E não me ficas querendo mal, Vicente?
— Não. Estou a acreditar que tiveste razão, ou pelo menos que suppões que a tens. Basta-me isso para te perdoar.
— Vêr-te-hei no Mosteiro antes de partir? Depois do dia de Reis volto a Lisboa, e só tornarei para a campanha eleitoral.
— Não prometto.
— Adeus.
O conselheiro estendeu a mão ao herbanario, que não retirou a sua, e partiu.
— Está feito! — ia pensando o conselheiro á saída — não foi tão difficil como julgava. Está razoavel o homem. Quem o viu e quem o vê! O que faz a idade! Bem! Agora é apressar os trabalhos para antes das eleições, a vêr se acalmam algum fermentosito de opposicão, que por ahi possa haver, que pequeno será.
N’estas cogitações chegou á igreja. Magdalena esperava-o no adro.
— Então? — perguntou ella, com anciedade.
— Tudo está remediado; entendemo-nos perfeitamente — respondeu o conselheiro, com manifesta satisfação.
— Devéras! Eu logo vi que o pae havia de ceder! — exclamou Magdalena, com alegria.
— Como ceder? — tornou o pae. — Elle é que foi mais condescendente do que eu esperava. Não oppôz a menor resistencia, nem se queixou muito amargamente.
— Pois consentiu?!
— Sem grande custo, ao que parecia.
— Ó meu Deus! meu Deus! agora é que eu temo devéras. Pobre tio Vicente! assusta-me isso que diz, meu pae!
— Ora vamos; a tua imaginação é que te illude. Mas deixa-me aqui falar com o morgado das Perdizes e com o brazileiro, que julgo que teem que me dizer. Vae para a igreja, que eu vou já ter comvosco.
E separando-se da filha, o conselheiro dirigiu-se ao grupo, em que estavam aquellas duas notabilidades.
— Dou-lhes uma boa nova, meus senhores — disse o conselheiro, depois de cumprimental-os — dentro em pouco temos os alviões a trabalhar cá na terra. Estive agora com o Vicente; receei resistencias da parte do homem, que nos obrigassem a expropriações judiciaes, sempre demoradas. Mas não, achei-o nas melhores disposições; e assim, dentro em poucos dias...
— Mas, para deante da casa d’elle, talvez os outros proprietarios não sejam tão doceis — lembrou o brazileiro.
— Bem sabe que são terras insignificantes, cujos possuidores com pouco se contentam.
— Os antigos possuidores talvez se contentassem com pouco — disse o brazileiro, sorrindo velhacamente — mas os modernos...
— Pois mudaram de senhorio?
— Por contracto de venda assignado e legalisado hontem mesmo.
— E quem os comprou?
— Este seu criado.
O conselheiro teve vontade de o esganar; conteve-se, porém, dizendo:
— Tanto melhor; quero-me antes com proprietarios illustrados e independentes, que comprehendam a importancia dos melhoramentos publicos, do que...
— Isso historias, meu caro amigo; em primeiro logar estão os melhoramentos particulares. Eh, eh, eh.
— De certo que não ha de querer pôr estorvos a uma empreza como esta.
— Estorvos, não, mas emfim... Amigos, amigos, negocios á parte.
O conselheiro sorriu, emquanto que interiormente mandava ao diabo o espirito mercantil e interesseiro do seu antigo condiscipulo.
— Pode-me dar duas palavras, sr. conselheiro? — requereu do lado o sr. Joãozinho das Perdizes.
— Mil que pretenda — acudiu o conselheiro; e tomando o braço do morgado afastou-se do grupo.
— Eu tenho a pedir-lhe um favor — principiou o morgado. — Eu, como sabe, interesso-me muito pelo mestre-escola do Chão do Pereiro, que quer vir ensinar para aqui. Este negocio está empatado, como sabe; por isso queria que o senhor escrevesse para Lisboa a este respeito.
— Pois sim, mas... — fez-lhe notar o conselheiro — não sabe que é Augusto o outro concorrente?
— Então que tem isso?
— Não lhe parece que seria uma injustiça? Um rapaz de merecimento, como elle é, aqui da terra, que já exerce o emprego ha tres annos e com tanta intelligencia? e haviamos de...
— É verdade, — atalhou o outro — pois isso é verdade, mas... Emfim, elle que passe para outra parte.
— Mas se o rapaz quer isto?
— Quer! quer!... tambem o outro quer. Ora essa é fresca. E vamos, sr. conselheiro, a gente tambem não ha de estar só a fazer favores, sem os receber quando os pede. Com este já são très. Pedi-lhe para o meu tío abbade ser conego; foi tanto conego como eu. Pedi umas caudelarias lá para a freguezia... estou á espera d’ellas... Ora isto não se faz. O senhor sabe que eu lhe tenho vencido as eleições com a gente da minha freguezia, que vae para onde eu a levo. Pois agora não sei o que será. A não se decidir este negocio depressa...
—Ora não será isso motivo para tanto.
—Com certeza que é—insistiu o sr. Joãozinho.—Então digo-lhe maïs: a mim já me falaram. Ha ahi alguem que não desgostaria dos votos de que eu disponho, e votar pelos que já estão no poleiro não sei se lhe diga que não é peor.
O conselheiro, mortificado como estava, disse, sorrindo:
—Não posso convencer-me de que o meu amigo seja capaz de fazer isso por qualquer causa que possa dar-se. Mas deixe estar que, em relação ao que me diz, eu verei.
—Mau! Não é «eu verei». Então falò-lhe claro. Se d’aqui até ás eleições não estiver feito o despacho, não conte commigo.
—Mas quem lhe diz que não ha de estar?
—Pois lá isso...
—Socegue. Hoje mesmo escrevo para Lisboa.
—Bem.
O sino tocava a chamar para a festa.
Terminou o dialogo.
—O peor—ia pensando o conselheiro—o peor é que prometti ao Vicente que apressaria o despacho de Augusto. Não tem dúvida; é tão magra a posta, que não vale a pena disputal-a. Para Augusto arranjarei alguma coisa melhor. É preciso ter ambição por elle. Se elle quizesse ir para Lisboa?... Mas, pelo que me disse este basbaque, já se máquina no campo contrario! Hei de sondar o Tapadas, a vêr o que sabe.
Estás conferencias com o brazileiro e com o morgado tinham mortificado o pae de Magdalena a ponto de não conter um movimento de impaciencia, assim que viu que o Pertunhas se approximava d’elle, e, á fôrça de cortezias e cumprimentos, lhe pedia um momento de attenção.
Sabidas as contas, tratava-se do tal emprego de recebedor, que o latinista com tanto ardor namorava.
O conselheiro descarregou sobre este pouco influente eleitor o mau humor que os outros lhe causaram, e respondeu desabridamente:
—Ora adeus! O senhor é uma sanguesuga que se não farta de chupar. Contente-se com o que tem; vá conjugando o laudo, laudas, que outros, com maïs merecimentos, nem isso conseguem; e deixe-me.
O mestre Pertunhas ouviu com humilde sorriso a admoestação, e curvou-se para deixar passar o conselheiro.
Mas lá comsigo dizia:
—Sim? Elle é isso?! Pois veremos se a sanguesuga te não pica.
E entrou tambem para a igreja, com não muito christãs disposições de espirito.