XXIV


O processo instaurado contra o Cancella seguiu os seus trámites normaes; porém, graças ao empenho do conselheiro, a quem a morgadinha escrevêra a favor do prêso, e apesar da perseguição que lhe moviam os padres, contava-se que elle fôsse sôlto, e era esperado na aldeia dentro em poucos dias.

Magdalena não se descuidára de mandar todos os dias ao pobre homem noticias da filha, a qual, depois de ter por algum tempo inspirado sérios cuidados á medicina da terra, parecia haver entrado n’um periodo de convalescença.

Magdalena assim o participou ao Cancella para o animar, mas, sem saber por quê, ella propria não sentia as esperanças que dava.

Ha espiritos tão instinctivamente sensiveis e perspicazes, que, á maneira dos medicos experientes, presentem a gravidade où a approximação do mal, ainda quando os symptomas tenham perdido toda a feição assustadora.

Já os sorrisos fluctuam nos labios do doente e um desmaiado rubor de saude principia a tingir as faces, até então pallidas, e elles sentem-se ainda estremecer de secretas apprehensões.

Assim acontecia a Magdalena ao contemplar as feições da pequena Ermelinda.

A frequencia e intensidade dos accessos diminuirà; certo colorido de vida principiára já a animar-lhe o rosto infantil, havia pouco gelado de terror e pela doença; ás vezes até um sorriso, ainda que melancolico, distendia-lhe os labios desmaiados, e só de quando em quando raras nuvens de tristeza, evocadas por uma recordação penosa, parecia assombrarem-lhe o olhar limpido e meigo; os somnos eram tranquillos, as vigilias serenas, e apesar de tudo a morgadinha entristecia ao reparar n’ella.

O facultativo da localidade, apalpando com os dedos robustos o delicado pulso da creança, assegurára que ella estava já livre da febre; e apesar d’isso, Magdalena quasi sentia remorsos, quando escrevia ao Herodes a dar-lhe a boa nova.

E é certo que mais do que justificadas tinham de ser estas apprehensões da morgadinha.

Na tarde d’aquelle mesmo dia, em que Ermelinda acordára mais tranquilla e animada, renovaram-se subitamente, e assustadores como nunca, os indicios do mal profundo.

Um delirio violento, caracterisado por vagos e mal definidos terrores, gritos angustiosissimos, contracções espasmodicas, que parecia despedaçarem aquelle corpo fragil e delicado, surgiram de novo, e, ao dissiparem-se, deixaram, como rastos, uma prostração extrema, uma quasi completa insensibilidade de funesta significação.

Magdalena, assustada, tomou nos braços a debil e emmagrecida creança, e trouxe-a para junto de uma janella, d’onde ainda se avistava o sol, já quasi a esconder-se por detraz de uma collina distante.

Dir-se-ia querer pedir, aos frouxos raios de um quasi crepusculo de inverno, um pouco de calor para fundir os gêlos da morte, que principiavam a invadir os membros delicados d’aquella formosa creança; ao clarão levemente afogueado do horisonte, um pouco das suas tintas para aquellas faces morbidamente pallidas; á amenidade da paizagem, um reflexo de sorriso para aquelles labios, onde elle se apagára.

Os olhos de Ermelinda fitaram-se tristemente no sol já vacillante, com a expressão, cheia de saudade e de poesia, de uma alma joven que se despede da vida, e, quando o sol desappareceu, desviaram-se lentamente para o rosto de Magdalena, que a observava com anciedade.

Ermelinda sorriu; um sorriso mais triste do que as mais tristes lagrimas.

A morgadinha apertou-a ao seio, commovida.

— Que tens tu, minha filha? — disse-lhe com meiguice, afagando-a.

Ermelinda não respondeu, mas continuou a fitar Magdalena com a mesma expressão de affecto e de tristeza.

A morgadinha approximou os labios dos d’ella para beijal-a.

A pequena doente correspondeu-lhe ainda ao beijo e continuou a fital-a como d’antes. E durou, e durou este olhar até que pareceu a Magdalena haver n’elle não sei que estranha fixidez, que a inquietou.

Palpou as mãos da creança; estavam frias; o coração, parado; chamou-a pelo nome... a mesma fixidez no olhar, a mesma immobilidade nas feições... estava morta.

Foi assim que se despediu da vida aquelle candido espirito. Foi como o adormecer de uma alma, que algum anjo invisivel, namorado d’ella, arrebatasse nas azas para o throno de Deus.

A morte de uma creança como Ermelinda é um facto de ordinario indifferente na vida social; alguns sorrisos de menos no mundo; uma voz que emmudece nos festivos córos da infancia; algumas sentidas lagrimas de mãe sobre um berço vazio; algumas flores sobre um tumulo; e á superficie das ondas sociaes nem sequer a leve vibração que a rosa desfolhada imprime á agua tranquilla do lago... eis tudo.

A multidão segue no delirio das festas, na lucta das paixões, na febre da ambição e das glorias, e o perfume da flor pendida não lhe affecta os sentidos embriagados.

Ás vezes, porém, não succede assim, e assim não devia succeder com Ermelinda.

As paixões humanas, que ante o cadaver de uma creança, coroada de flores candidas e cingida da alva tunica da pureza, deviam abrandar-se, como deante de uma visão do Céo, tomam-n’o ás vezes por estimulo para mais furiosas se desencadearem, e proclamarem a lucta, a sedição e a vingança.

Desde que fôra publicada a portaria, prohibindo expressamente os enterramentos na igreja, medida tão adversa ao espirito do povo, não tinha havido na terra uma morte que obrigasse a pôr a medida em execução.

A ira popular, exacerbada de contínuo pelas secretas instigações de alguns padres fanaticos ou hypocritas, e dos adversarios politicos do conselheiro, rugia, havia muito, surdamente, mas não rompêra em explosão por falta de pretexto.

Notava-se apenas uma maior affluencia de gente na taberna do Canada, um maior calor nos discursos dos tribunos, e a tendencia á formação de magotes nas encruzilhadas e nos largos.

Quando porém se espalhou a noticia da morte de Ermelinda, augmentou a effervescencia dos animos. Era chegado o momento.

A morgadinha, que chorou com lagrimas sinceras a filha do Cancella, quiz que ella fôsse sepultada no mausoléo da casa do Mosteiro. Cumprindo assim a lei, prestava-se tambem culto á affeição que todos sentiam pela creança, companheira de brinquedos de Angelo, que lhe queria como irmã.

Sabendo-se d’esta resolução, rebentou a indignação popular.

No dia seguinte ao da morte de Ermelinda, e n’aquelle, no fim da tarde do qual devia realisar-se o enterro, havia na taberna do Canada extraordinario ajuntamento.

O brazileiro, o sr. Joãozinho das Perdizes, o latinista Pertunhas, alguns padres e lavradores, caseiros e camaradas do sr. Joãozinho, falavam, berravam e gesticulavam a um tempo.

O morgado das Perdizes, cujo animo fluctuava indeciso entre favorecer e guerrear o conselheiro, mas que, depois do despacho do professor que pedira e conseguira, como que sentia remorsos de o atraiçoar, achava-se agora muito abalado, porque na questão dos cemiterios era intolerante, não podendo levar á paciencia que quizessem enterrar um homem, como elle, n’um logar onde chovia e fazia sol, como n’um campo de centeio.

O brazileiro, conscio do valor do voto eleitoral do sr. Joãozinho, não se cançava de o catechisar, usando para isso de todas as armas e atacando-o por todos os pontos vulneraveis que lhe conhecia.

Era assim, por exemplo, que sabendo da sympathia e gratidão do morgado para com o herbanario, insistia muito sobre a dureza do coração do conselheiro, que privára cruelmente o pobre velho da sua propriedade, golpe fatal, que dentro em pouco o levaria ao tumulo; e a proposito contava como o herbanario pedira de joelhos ao conselheiro para lhe poupar a casa, e como este se rira das lagrimas do velho, porque tinha interesse em que não fôsse adoptado o outro plano, que lhe cortava uma grande porção dos proprios bens.

Ouvindo estas coisas, o sr. Joãozinho, que tinha mais de grosseiro e bestial do que de perverso, dava punhadas sobre a mesa, despejava copos de quartilho e dizia pragas sacrilegamente eloquentes.

Outras vezes era no tópico do cemiterio que ardilosamente o espirito tentador do brazileiro insistia. Fazia avivar a ideia ao morgado de que elle proprio tinha de ser alli enterrado, porque na freguezia de Pinchões iam tambem ser prohibidos os enterros na igreja, o que este negava, berrando; e todos affirmavam o mesmo que o brazileiro dizia, o que dava logar a novas punhadas, novas irritações e a novas pragas do sr. Joãozinho.

No dia que dissemos, multiplicára o morgado, mais que de costume, as suas libações de vinho; e com as faces injectadas, os olhos meio fechados, ouvia com irritação os commentarios dos circumstantes e distribuia com profusão pragas e murros.

— Com os diabos! — berrava elle, acabando de despejar um copo de quartilho. — Se me chega a mostarda ao nariz... sou homem para ir á igreja e obrigal-os a enterrar lá a pequena.

— Isso não se faz assim com essa facilidade e arreganhos — disse velhacamente o brazileiro, de proposito para o irritar ainda mais.

— Eu lhe diria se se fazia ou não, se se tratasse de coisa que me dissesse respeito!... Mas, lá com a filha do Cancella... não tenho eu nada... lá se avenham.

— A questão não é ser filha do Cancella ou deixar de ser; — tornava o brazileiro — a questão é do exemplo; enterrado o primeiro, enterram-se os outros.

— Menos eu — exclamou o morgado.

— Se Deus quizer tambem vmc. se ha de lá enterrar.

— Diabos me levem se...

— Pelos modos — disse um padre do lado — elles enterram a rapariga no tumulo da familia do conselheiro.

— Pois vêdes; se elles são todos da mesma confraria! — ponderou o Pertunhas.

— E se não, é vêr no outro dia o que o Herodes fez ao missionario! Então julgam que aquillo não foi combinação? — disse o padre.

— Dizem que o Herodes ganhou vinte soberanos para lhe bater — accrescentou um lavrador.

— A mim me disseram que trinta.

— Sempre uma pouca vergonha como aquella!

— E verão que não lhe succede mal.

— Pois não, não; elle está alli, está na rua.

— Diz-se que o soltam á fiança.

— Não pode ser; aquelle crime não tem fiança — ponderou um fazendeiro, que se tinha por muito visto em demandas e coisas de justiça.

— Ora adeus! com o que vossê vem! Querendo elles...

— Aquillo parece uma seita.

— E ainda ahi está? Pois já se sabe que elles são pedreiros-livres.

— E o tal lisboeta?

— Esse, então, é que é d’aquelles!

O sr. Joãozinho pestanejou, ouvindo falar de Henrique.

— Ah! é do tal petimetre que falam? No tal que foi para a igreja caçoar com o missionario? Sempre vossês são uns homens de lama, tambem! Ó Cosme — continuou, voltando-se para um alentado camarada que estava ao lado d’elle — olha aquillo comnosco, hein? Onde estaria o amigo?

O valentão sorriu modestamente, encolhendo os hombros.

— Pois, senhores — proseguiu o brazileiro, que não queria deixar arrefecer o enthusiasmo e a irritação do publico — hoje decide-se a coisa... D’aqui a uma hora está enterrada a pequena e depois... o uso faz lei.

— Isso é que é verdade — secundou o Pertunhas.

— Faz lei emquanto eu me não lembrar de ir desenterral-a — respondeu, cada vez mais azedado, o sr. Joãozinho

— Não; isso lá mais devagar — acudiu o brazileiro — vossemecê bem sabe que, estando ella no mausoléo do conselheiro...

— Importa-me cá o mausoléo? O senhor está a ler. Eu com um empurrão arrumo aquella platafórma a terra. Ó Cosme, olha nós, hein?

O Cosme tornou a fazer o mesmo gesto expressivo.

— Ahi está quando era preciso que houvesse n’esta terra um homem de vontade, que não deixasse fazer o enterro — disse o padre.

— Era bem feito, para elles saberem tambem que se não brinca assim com o povo.

— Lá isso era! — repetiram algumas vozes.

— Eu por mim... se alguem fôr... — aventurou um.

— E eu, eu — ouviu-se dizer de alguns pontos da sala.

— Deixem-se de contos, — continuou o padre — elles fazem o que querem, porque sabem que não ha um homem de coragem, que se ponha á frente do povo...

— Lá isso é que é verdade.

— Já não ha homens para as occasiões.

O morgado das Perdizes, que tinha presumpções de valente, e se gabava de ter varrido feiras a varapau, espinhou-se com estas palavras, e protestou dizendo:

— Então julgam vossês que eu, se me der para ahi, não vou ao cemiterio, eu só, e ponho tudo aquillo em cacos? hein?

— Isso não se faz com essa facilidade — disse o brazileiro impertinentemente.

— A quanto aposta vossê? — bradou, cada vez mais afogueado, o sr. Joãozinho.

— Ora vamos — continuava o brazileiro com os mesmos modos — não que a auctoridade...

— A auctoridade! Para mim é que elles veem! Olha o regedor! O regedor commigo! E os cabos? Ó Cosme, hein? Que te parece? Os cabos comnosco?

O Cosme sorriu e resmungou por entre dentes:

— Se queres tentar...

— Com mil demonios! — disse o morgado, exgotando mais um copo — vamos a isto! anda d’ahi, ó Cosme!

O Cosme levantou-se.

— Nada de imprudencias — aconselhou o brazileiro, de um modo que tinha a significação contraria ao pensamento que exprimia.

— Quem tiver mêdo, que fique em casa. Ora quero mostrar a esta gente se ha ou não ha um homem para as occasiões.

E estavam no meio da sala o sr. Joãozinho e os seus arrojados camaradas, e o brazileiro já conferenciava com o padre, que lhe respondia com signaes de intelligencia, como quem tinha projectos filiados n’aquelle movimento, quando entrou na taberna uma nova personagem que, por não habitual alli, e por outras circumstancias faceis de conjecturar, causou geral extranheza.

Era Henrique de Souzellas.

Tendo sabido da morte de Ermelinda, e encontrando no Mosteiro todos occupados com os aprestes do funeral da pequena, Henrique montou a cavallo e deu um longo passeio pelos arredores.

Na volta achou-se defronte da taberna do Canada.

Chegou-lhe aos ouvidos o rumor das altercações e das pragas que iam lá dentro, e isto resolveu-o a entrar, cumprindo assim a promessa que fizera a si mesmo de estudar aquelle terreno, a vêr se encontrava vestigios que o levassem a provar a innocencia de Augusto.

Apeou-se, prendeu o cavallo ao peão da porta e entrou.

Ao entrar, percebeu que havia causado sensação a sua presença, e até, pela expressão com que o fitavam, suspeitou que talvez não fôsse demasiado prudente o passo que dera.

Era tarde, porém, para recuar, e o orgulho impedia-lhe a menor manifestação de receio.

Sentou-se tranquillamente n’uma banca vazia.

O Canada, como taberneiro attencioso, veio informar-se pressurosamente do que desejava o recem-chegado.

Henrique pediu vinho, para pedir alguma coisa, e não obstante estar firmemente resolvido a não lhe tocar.

O Canada trouxe-lhe um copo largo para deante d’elle, e de motu-proprio associou-lhe algumas azeitonas, que recommendou como excitadoras da sêde.

Henrique pediu lume para accender um charuto, e pondo-se a fumar correu a vista pelos grupos que enchiam a sala. A effervescencia dos animos havia abatido com o chegar de Henrique, como a da agua em que se lançasse uma pedra de gêlo.

Reinava, porém, um rumor surdo, um cochichar pouco tranquillisador, e que ameaçava degenerar em maior tormenta.

O brazileiro escondia-se por detraz de uns homens do povo, para não ser visto; o sr. Joãozinho olhou para Henrique, como se o não conhecesse, e conversava em voz baixa com o seu camarada Cosme, o qual fitava no recem-chegado olhares sombrios e ameaçadores.

Henrique, ainda que interiormente não tranquillo, sustentava-os sem desviar os seus, e continuava fumando quasi provocadoramente. Pouco a pouco subiu de tom a conversa dos dois, assim como a dos outros grupos.

— É preciso ensinar estes espiões — dizia uma voz audivelmente.

— Que quererá d’aqui este figurão? — perguntava outro.

— Era bem feito que lhe ensinassem a não se metter com a nossa vida...

O morgado, cada vez mais excitado pelo vinho, cruzou os braços sobre a mesa, e com o corpo inclinado para deante e os olhos abertos para Henrique, principiou a dizer, retardando-se-lhe já algum tanto a voz nas fauces:

— Eu se sei que ha alguem que me anda a seguir os passos e a espiar, sempre lhe dou uma lição, que lhe ha de lembrar toda a vida! Não, que isto aqui não é Lisboa! Eu não admitto que se olhe para mim com falta de respeito... Já disse! Eu não gosto de repetir as coisas... Tenho dicto! O senhor não ouve?

Henrique continuou a fumar, sem desviar os olhos do morgado.

— Ó senhor lá... Faz favor de não olhar para mim d’essa maneira?

Henrique exhalou uma baforada de fumo e sorriu.

— Vossê ri-se!... Elle riu-se, ó Cosme? Pois elle riu-se de mim? Espera!

E o sr. Joãozinho executou um movimento para levantar-se.

O Cosme imitou-o, e os camaradas puzeram-se a postos.

Susteve-os o brazileiro e outros igualmente pacificos.

— Então! então! isso o que é?

— Quero perguntar áquelle senhor de que é que se ri — bradava o morgado, furioso.

— Para isso não se incommode — respondeu Henrique — eu mesmo d’aqui lhe respondo. Rio-me da ridicula figura que está fazendo.

— Ah!... ouvem-n’o? Larguem-me, deixem-me, deixem-me... Ó Cosme!...

E o morgado barafustava entre os braços debeis que o retinham. No povo principiou a subir a maré das murmurações contra Henrique.

— O senhor vem para aqui armar desordens?

— É para espiar?

— Depois queixe-se...

— Não se metta com a gente.

O morgado bracejando, espumando, e largando por pouco a jaqueta nas mãos que o retinham, conseguiu, graças aos seus musculos robustos, sacudir de si todos os obstaculos, e correu para Henrique, que por prevenção se collocou a pé.

O sr. Joãozinho, cego de embriaguez e de raiva, berrava, voltado para elle:

— O senhor conhece-me?... O senhor sabe com quem fala? Olhe bem para mim... Quero vêr agora se ainda se ri.

— Por que não? Se cada vez está mais ridiculo!

O morgado deu um urro selvagem e fez um movimento como para se atirar a Henrique.

Este recuou um passo, e pegando no copo que ainda tinha intacto deante de si, despejou-o todo sobre aquella figura já avinhada, dizendo motejadoramente:

— Ahi tem; é isso provavelmente que vem buscar.

O rosto, as mãos e a camisa do sr. Joãozinho ficaram litteralmente tingidas. Soltando um rugido de fera, levou a mão á faxa da cinta, como a procurar uma arma. Henrique, percebendo-lhe o movimento, antecipou-se a segural-o pela garganta, para o reter e afastar de si.

O morgado torcia-se e espumava sob a constricção de Henrique, e já congestionado e rouco bradou:

— Ó Cosme!... Ó Cosme!... Mata esse maldito!...

A phalange do sr. Joãozinho correu em soccorro do chefe. O varapau do Cosme girou no ar, produzindo um zunido como o de um enorme zangão.

O braço diligente do Canada, movido pelo empenho de salvar o crédito do estabelecimento, afastou a tempo Henrique do terrivel embate, que infallivelmente lhe seria fatal.

A pancada caiu sobre a mesa, que lascou ao comprido.

Henrique estava incólume, e o morgado sôlto.

Mas o perigo não passara para Henrique. O morgado preparava-se com os seus para nova investida, quando se ouviu a voz do brazileiro e do padre bradarem:

— Já está a tocar o sino! Ao cemiterio emquanto é tempo!

E no entanto o brazileiro, chamando de lado o Cosme, convencia-o, por varios generos de argumentos, da conveniencia d’este partido, e tão convencido o deixou, que elle berrou d’ahi a pouco:

— Deixa o homem para outra vez, João, deixa-o e vamos a elles ao cemiterio!

— Ao cemiterio, ao cemiterio! repetiram algumas vozes.

— E queime-se a papelada da camara!

— E mate-se o escrivão de fazenda!

— E quebrem-se os vidros do Mosteiro!

— E pegue-se fogo á casa!

Eram de bastante fôrça estes argumentos para convencer o sr. Joãozinho.

— Pois vá lá, rapazes! Com este faremos contas depois. Ao cemiterio! Atiremos a terra com o tal mausoléo!

E prepararam-se para sair tumultuariamente. Henrique, ouvindo isto, percebeu do que se tratava, e prevendo sérios riscos para as senhoras do Mosteiro, desembaraçou-se dos braços do Canada, que teimava em segural-o e em dar-lhe conselhos de prudencia, e correu a montar a cavallo para se anticipar aos desordeiros. Effectivamente assim o fez; mas, ao passar por entre o grupo d’elles, o varapau do Cosme, floreteando outra vez no ar, caiu sobre a cabeça do cavallo. O animal, atordoado por a pancada, partiu em galope desenfreado, e apesar de toda a arte de Henrique, acabou por o arrojar a terra com tal violencia, que o deixou como morto.

Os desordeiros seguiram, capitaneados pelo morgado, o caminho do cemiterio. O brazileiro, o padre e o Pertunhas, acolheram-se pacificamente aos lares.

O sino da igreja continuava a repicar.