XXVI


Quando Magdalena voltou ao Mosteiro encontrou a casa em completa agitação.

Momentos antes havia sido para lá transportado, quasi sem accôrdo, Henrique de Souzellas, que um criado de lavoura se encarregára de trazer da taberna , onde o Canada o recolhera, até o Mosteiro, sobre um carro de herva que vinha guiando.

Ao vêr n’aquelle estado o sobrinho da senhora de Alvapenha, D. Victoria perdeu totalmente a cabeça, e em vez de tomar as providencias que o caso pedia, deu em ralhar, em fazer exclamações, em andar de sala em sala, de corredor em corredor, sem tenção formada, sem methodo, sem direcção. Levava as mãos á cabeça, ajuntava-as consternada; dava uma ordem ociosa; mandava logo suspender a execução d’ella; impacientava-se; chamava a toda a pressa um criado e não sabia depois o que tinha para dizer-lhe; extranhava a tardança de outro que não mandára chamar, e sem dar a final expediente a coisa nenhuma, nem saber o que fizesse.

Os criados resentiam se d’esta falta de intelligente direcção; paravam embaraçados, où corriam sem saber para onde, nem para quê, e sem adeantarem serviço.

As creanças concorriam tambem para está desordem, porque, cheias de susto, andavam agarradas ás saias de D. Victoria, que nem sequer dava por ellas.

Christina foi a unica pessoa que conservou a presença de espirito n’aquella occasião.

Nada do que fazia era inútil: nem uma só ordem dava que pudesse dizer-se ociosa; graças ao methodo com que procedia ás instrucções que ordenava, a tudo se providenciou convenientemente, sem que D. Victoria o percebesse até.

Christina tambem, ao vêr chegar Henrique n’aquelle estado assustador, sentirà-se desfallecer; mas disse-lhe a consciencia que lhe era precisa toda a firmeza, visto que estava ausente Magdalena, em quem sómente poderia descançar, e logo achou na necessidade valor, e, com serenidade apparente, só trahida pela extrema pallidez das faces, a tudo attendeu, tudo previu, tudo providenciou.

Sem uma exclamação, sem uma palavra de desespero ou de susto, sem nem ao menos erguer o tom de voz, où modificar a inflexão affavel, que lhe era natural, preparou um quarto para Henrique e n’elle todos os aprestes que o seu grave estado pedia, dirigiu os primeiros soccorros com intelligencia e efficacia, mandou chamar o cirurgião, enviou a Alvapenha parte do succedido, e ordenou que procurassem Magdalena, occupando n’isto a menor gente possivel, e deixando a outra toda como alimento á impaciencia de sua mãe.

A indole de Christina tinha d’estas energías essencialmente feminis e sympathicas. Não era para o salão que se formára e educára o ingenuo e meigo caracter da prima de Magdalena. Ahi tomava-a um acanhamento, que já não conseguiria vencer, mas nas lides domesticas, na vida do lar era d’essas corajosas luctadoras, a quem a desventura não derruba, cuja intelligencia por tudo se reparte; d’estes genios providenciaes, que pairam sobre o estreito horisonte da familia, activos, laboriosos, achando nas fadigas um prazer, nos sacrificios estímulos para maïs amar, nos sorrisos que provocam, nas dores que alliviam, nas lágrimas que enxugam, premio bastante para compensar as peñas que soffrem.

Mulheres são estás nascidas para serem esposas e mães, o que é quasi o mesmo que dizer: nascidas para serem mulheres.

A chegada de D. Dorothéa, que acudiu apressada logo que soube o que succederà ao sobrinho, não dispensou Christina d’estes cuidados, que voluntariamente tomára.

Comquanto a senhora de Alvapenha fôsse maïs razoavel do que D. Victoria, e de temperamento menos susceptivel d’aquellas inuteis effervescencias, em que está se deixava arrebatar, não era tambem mulher para casos d’estes.

Na sua longa vida de celibataria sem familia, D. Dorothéa perderà où embotára a faculdade preciosa de acertar bom caminho em qualquer imprevista occorrencia.

Facto que destoasse dos monotonos hábitos do seu viver de muitos annos já a lançava em sérios embaraços. Ella propria confessava que inda havia pouco tempo principiára a afazer-se á estada de Henrique em Alvapenha, e a fazer o que era seu costume fazer antes de elle vir.

É pois évidente que D. Dorothéa pouco maïs podia fazer do que rezar, e para isso ninguem estava maïs habilitado do que ella. Em relação á côrte celestial era a boa senhora como esses almanachs vivos, que nos sabem dizer todos os canaes por onde os differentes negocios poderão ser melhor conduzidos nas côrtes... terrestres... Conhecia a especialidade de cada santo e para cada um tinha uma fórmula de requerimento particular.

Christina não a consentiu por muito tempo no quarto de Henrique, onde, com as melhores intenções, maïs embaraçava o serviço do que auxiliàva; usando de uma debil violencia foi-a levando para a sala do oratorio, onde ella encetou uma reza sem fim.

Quando a morgadinha chegou, ainda perturbada com as scenas do cemiterio, e soube do succedido na taberna, correu, assustada, para verificar a realidade do que lhe diziam.

Nos corredores encontrou um criado caminhando, apressado, n’um sentido, uma criada em sentido opposto, emtanto que, na sala proxima, D. Victoria tocava freneticamente a campainha a chamar por ambos.

Magdalena dirigiu-se para lá.

Quando entrou estava D. Victoria pronunciando uma d’aquellas interminaveis e arrevezadas objurgatorias, de que só a fecunda verbosidade feminina é capaz. Em geral as mulheres, seja dito antes em honra do que em censura do sexo, são oradoras de muito maïs folego que os homens que blasonam de eloquentes. O assumpto maïs simples, uma colhér que se perdeu, uma peça de louça que se quebrou, por exemplo, fornecem-lhes thema para uma prédica de duas horas.

Encaram o assumpto por todos os lados, paraphraseiam-n’o de mil fórmas e estendem milagrosamente por muitos períodos aquillo que a um homem a custo daría para uma magra oração.

—­Mas onde estavas tu? Sim, eu quero saber onde é que tu estavas. Faça favor de me dizer onde é que estava?

Isto dizia D. Victoria a um criado, estatelado deante d’ella com a cara e postura de réo.

—­Eu... senhora...—­ia elle a dizer.

—­Eu senhora... eu senhora... eu nada. Ora é o que é. Um desafôro assim!... Eu só quero saber se vossemecê ganha soldada para andar lá por onde muito bem lhe parece. Por as tabernas... por as vendas... Porque elle não ha maïs... Como o dinheiro se vae roubar á estrada... O que tu merecias... Estou eu aquí a chamar ha maïs de duas horas e vossemecê apparece-me lá quando é muito do seu gôsto? Isto atura-se? A culpa tem quem eu sei... Tu cuidas que mandriar não é roubar?

—­Mas...

—­Cale-se! Ouça e cale-se. Tens a lingua muito prompta para responder. Ora toma-me cautela, senão vaes já, já pela porta fóra. Pouca vergonha! Uma pessoa aquí afflicta, com as coisas por fazer, a querer mandar onde é preciso e não apparecer um criado n’esta casa! A pagar-se aquí umas soldadas por ahi além, e, quando se quer o serviço feito, tem uma pessoa de o fazer por suas mãos!... Tu cuidas que isso não é peccado tambem? Deixa, meu amigo, que tens boas contas a dar de ti. Quem é que lhe deu licença para sair sem ordem de seus amos? Faz favor de me dizer?

—­A sr.^a Christininha...

—­Eu não quero saber da sr.^a Christininha, quero saber quem lhe deu licença para sair?

—­Mas é o que eu estou dizendo á senhora.

—­É muito padre-mestre. Ora não seja confiado, e veja como responde.

Emfim, este dialogo promettia ser eterno, não obstante a urgencia do serviço de que falava D. Victoria, serviço que ella propria adiava com este importuno sermão.

A entrada da morgadinha operou uma diversão. D. Victoria esqueceu-se do criado, o qual pôde retirar-se sem ser percebido e sem receber as ordens urgentes para que fôra chamado.

D. Victoria principiou a contar a Magdalena o succedido, conforme ella propria o soubera do moço do carro em que viera Henrique.

—­Andam desaforados—­concluiu ella.—­Já nem attendem a uma pessoa de respeito. É porque não ha justiça n’esta terra. Estão para ahi uns patetas de umas auctoridades, que são outros que taes. Era preciso um exemplo. Ahi está quando eu, se fôsse rei, não tinha pena nenhuma: havia de os esquartejar e era bem feito!

Cumpre dizer que D. Victoria não era capaz de bater n’um gato.

A morgadinha contou tambem rapidamente o que succederà no cemiterio.

Então é que trasbordou a indignação da tia.

—­Tu que dizes, menina?... Tu estás a falar sério?... Pois elles?... Em nome do Padre... Que maïs teremos ainda de ver?... Oh meu Deus!... E esses malvados ainda estão na rúa?... Deixa que teu pae ha de ainda saber... Não, isso não fica assim... D’aqui a pouco põem-nos o pé no pescoço. Nada, nada; para os malvados é que se fizeram as forcas... Ora deixa que... Isto aquí anda trama.

—­Não falemos maïs n’isso. Agora vou vêr o estado do ferido.

—­Vae, e vê se encontras por ahi alguns criados. Eu não sei onde elles se metteram. Ha de ser preciso ir á botica, e muitas maïs coisas, e não vejo nenhum!

Magdalena deixou sua tia a tocar outra vez a campainha.

Encontrou-se na sala immediata com Christina, que ia em direcção ao quarto de Henrique, com um copo de agua acidulada.

—­Que ha, Christe?—­perguntou-lhe Magdalena.

—­Que ha de haver, Lena?—­respondeu Christina com tristeza, mas com serenidade ao mesmo tempo—­uma desgraça, mas que Deus ha de permittir que não seja sem remedio.

—­Como está elle?

—­Estonteado ainda, mas um pouco maïs tranquillo do que quando chegou. Os balanços do carro fizeram-lhe mal. Com as bebidas calmantes que lhe tenho dado, achou-se bem.

—­E ainda não mandaram chamar o cirurgião?

—­Já mandei, já veio, já o sangrou, já...

—­Mas tua mãe não o sabe e ia mandar...

—­Deixa-a lá, Lena. Deixa-a lá com os criados, que por ora não convem que venha. Elle precisa de socêgo. Já mandei sair d’aqui a tia Dorothéa, que não adeantava serviço. Queres vir vêl-o?

Magdalena seguiu a prima, e entraram ambas no quarto de Henrique.

Mantinham-se ainda em Henrique as consequencias da profunda commoção cerebral, que lhe produzira a quéda. A tendencia ao estado comatoso, que apresentava, tornava incerto o resultado e melindrosissimo o caso.

Voltára-lhe a razão e os sentidos; mas tardia aquella, e estes sem possibilidade de longa fixação em qualquer objecto. Sobretudo, o que n’elle se notava pouco de tranquillisar, era uma indifferença morbida pelo seu estado e por tudo quanto o cercava.

Acceitou das mãos de Christina a bebida refrigerante, que ella mesma preparára, com os movimentos quasi instinctivos do somnámbulo.

No fim, como se o prazer que o frescor do liquido lhe causára lhe avivasse por instantes a consciencia, fitou em Christina um olhar de gratidão, sorriu-lhe, e, pousando a cabeça outra vez no travesseiro, fechou os olhos para dormir. Esta somnolencia era habitual.

Christina não ficou inactiva; preparava um remedio, arrumava um movel, desviava os raios da luz da fronte do enfermo; ia ao corredor mandar calar os irmãos où os criados, où desfazer alguma dúvida suscitada por os ultimos sobre o cumprimento de qualquer ordem; outras vezes parava a espiar o aspecto do doente e a escutar-lhe o rhythmo do respirar. E sempre movendo-se agil e sem ruido, diligente e sem confusão.

Magdalena, que se sentára a um canto da sala, quasi subjugada pelas muitas e violentas commoções d’aquelle dia, contemplava a actividade da prima e extranhava-a.

Ella propria, que melhor do que ninguem conhecia Christina, nunca a suppuzera capaz d’aquella firmeza de animo e d’aquelle espirito methodico e providencial de que estava dando agora irrecusaveis provas.

Apreciára-lhe até então os dotes de creança, a bondade do coração, os extremos de affecto que possuia; mas ainda a não tinha visto tomando assim tanto a sério a sua missão de mulher e desempenhando-se d’ella tão dignamente.

Esta ordem de reflexões conduzia naturalmente a outras o espirito da morgadinha. Reparando para Henrique, assim derrubado no leito, e como que sob a protecção de uma timida e debil creança que, maïs do que elle, parecia carecer de amparo, Magdalena não pôde reprimir um sorriso benigno e pensou:

—­Sim; aquella cabeça estouvada pôde até hoje passar por este anjo sem o conhecer; mas é preciso não ter coração para que, ao erguer-se d’aquelle leito, não seja o seu primeiro movimento o de ajoelhar deante d’ella para a adorar. E Henrique não é falto de coração. Lida, lida, minha boa Christina, que para a tua felicidade lidas. Foi a Providencia que quiz que tu vencesses com as maïs abençoadas armas que concedeu á mulher. Confio em Deus que vencerás. Deixar-te-hei todas as fadigas, para te pertencer todo o prazer.

E em harmonia com está resolução, a morgadinha absteve-se de intervir no tratamento de Henrique.

 

XXVII


Foi opinião do facultativo, que tratou de Henrique, que a vida d’este correrà sérios riscos durante a primeira semana, por não sei que complicação que se lhe manifestou no decurso da molestia. Se se enganou o prático, não nos compete a nós decidir; acceitemos-lhe a opinião, como de legitima fonte, e não profundemos materia alheia ao nosso intento.

Ao fim dos oito dias, porém, começaram a manifestar-se melhoras evidentes, e o proprio facultativo foi o primeiro a assegurar ás senhoras, que sempre o vinham consultar á saida com anciosa curiosidade, que «o homem estava salvo».

De facto, nos primeiros períodos da doença, Henrique caira, como já dissémos, n’um d’aquelles estados de indifferença para tudo e para todos, de que se não pode agourar nunca bem. Agora, porém, começava já a manifestar attenção para os cuidados de que era objecto, e a agradecer, com palavras de sincera gratidão, o tratamento affectuoso que recebia n’aquella casa e especialmente os desvelos de Christina.