XXVIII


A casa e quinta dos Cannaviaes, deshabitadas depois da morte da velha morgada, madrinha de Magdalena, era uma sombria residencia, situada n’um dos maïs êrmos e melancolicos logares da aldeia.

O tempo, cuja acção não contrastada se exercera livremente n’ellas, viera augmentar o aspecto soturno que desde a origem apresentava esta casa, ennegrecendo-lhe as paredes, revestindo-lhe de hervas os telhados, de musgo as padieiras e as junturas de pedra, e povoando-lhe de morcegos e de corujas os buracos dos muros. Emfim a superstição popular terminára a obra fazendo divagar as almas do outro mundo por aquellas salas e corredores vazios, e nas ruas d’aquella quinta, entregue á natureza.

A defuncta morgada, que não se recolhera á aldeia senão depois de ter gosado na capital de todos os esplendores da vida das cidades, e brilhando nas mais concorridas e elegantes salas do seu tempo, gosava n’esta pequena terra, onde passára o resto da vida, de uma fama de espirito forte, que em grande parte concorrera para generalisar a opinião de que a sua alma andava ainda penando por cá.

Contavam-se entre o povo anecdotas absurdas, em relação aos annos da mocidade da morgada. A imaginação popular fazia a biographia d’aquella senhora, colorindo-a com as tintas maravilhosas com que costuma phantasiar a vida dos grandes centros, de que vive afastada.

A morgada, que só renunciou ao mundo quando os espelhos começaram a falar-lhe da vaidade das glorias que repousam nos encantos da belleza, passou, como succede muitas vezes, de um extremo a outro extremo, e da vida elegante ás práticas de devoção.

Nos Cannaviaes ouvia missa todos os dias, confessava-se todas as semanas, commungava todos os mezes, sem comtudo resignar absolutamente os habitos de elegancia de que já fizera uma necessidade natural. Trajava sempre com distincção e esmero, e ao corrente das modas.

Tudo isto e as proprias devoções da morgada, acabaram por convencer o povo de que havia grandes culpas no passado d’ella, as quaes procurava remir á fôrça de missas. Dizia-se que a morte a viera tomar antes das contas saldadas, e que por isso a sua alma voltava á terra penando.

Já se vê que o logar era para apavorar as imaginações timidas, e de noite pouca gente da aldeia gostava de passar por lá.

Henrique depois de ter dicto em Alvapenha que ia passar a noite ao Mosteiro, d’onde voltaria tarde, saiu mais cêdo do que a hora devida, e fazendo obra pelas informações da morgadinha, dirigiu-se para os Cannaviaes para escolher posição d’onde pudesse, sem ser visto, observar Christina, não tendo ainda resolvido se lhe appareceria ou se a deixaria imperturbada na sua piedosa tarefa.

A noite fizera-se escura e ameaçava chuva.

Henrique, alumiando-se com uma lanterna de furta-fogo, já um pouco habituado aos caminhos estreitos e escabrosos do campo, atravessou a aldeia, examinando com attenção todos os objectos que lhe deviam servir de indicadores da estrada.

Pouco passava das dez horas, quando se achou em frente de uma casa que por apparencia, julgou ser a demandada propriedade.

Era uma casa escura, crivada de pequenas janellas e peitoril, tendo a um lado um alto portão da quinta, do outro a capella, cuja porta Henrique achou ainda fechada.

O sussurro dos cannaviaes agitados pelo vento era uma garantia de haver acertado.

Principiavam a cair algumas grandes gottas de chuva e a escuridão a fazer receiar grandes aguaceiros.

Henrique achou prudente procurar um abrigo onde pudesse resguardar-se. N’este intento approximou-se do portão. Com grande espanto seu, achou-o aberto.

Já teria chegado Christina?... Enganar-se-ia elle na casa?... Estaria habitada a quinta?

Estas tres explicações do inesperado facto debatiam-se-lhe no espirito, sem que elle soubesse qual adoptar.

Transpoz o portão e entrou na quinta. Nenhuma apparencia de vida.

A chuva caía com mais fôrça. Para se abrigar, Henrique subiu os degraus de pedra, no tôpo dos quaes havia um patamar lageado e convenientemente toldado.

Ao chegar alli achou tambem aberta a porta da primeira sala, e ao fim de um corredor pareceu-lhe divisar luz.

Henrique parou indeciso.

— Decididamente enganei-me. Não é aqui a casa dos Cannaviaes. Sempre perguntarei.

E bateu as palmas.

Ninguem lhe respondeu.

Bateu outra vez; o mesmo resultado.

Aventurou-se a entrar, deu alguns passos pelo corredor e bateu.

O mesmo silencio; seguiu até o fim do corredor em direcção á luz; chegou a uma sala mobilada com antigas cadeiras de alto espaldar, e alumiada por um candieiro de metal, pousando na pedra da chaminé, em cujo fóco brilhavam ainda uns carvões candentes.

— Parece uma historia de fadas! — pensava Henrique. — Dar-se-ha que a alma da morgada goste ainda das commodidades?

Ia a dirigir-se a uma porta para chamar, quando se abriu outra do lado opposto, e appareceu-lhe uma mulher velha, com um vestuario meio do campo, meio da cidade, e trazendo uma luz na mão. Henrique voltou-se e preparava-se para lhe dirigir a palavra, quando ella primeiro lhe disse:

— Procurava alguem, o senhor?

— Peço perdão pelo meu atrevimento. Bati muito tempo á porta, e emfim como a visse aberta, decidi-me a entrar. Desejava saber onde é aqui a casa dos Cannaviaes.

— A casa dos Cannaviaes é esta mesma.

— Mas... eu julgava... suppunha ter ouvido dizer, que não morava aqui ninguem.

— E não o enganaram. Hoje por acaso é que está cá a sr.a morgada.

— A sr.a morgada? — perguntou Henrique, sem bem saber o que devia pensar da resposta e de tudo que via.

— Sim, senhor; a sr.a morgada, e não tarda aqui. Ella esperava-o.

— Ah! A sr.a morgada esperava-me?

— É verdade — disse a mulher, sorrindo. — Adivinhou que o senhor vinha aqui. E o que é que ella não adivinha?

Henrique dava tratos á imaginação para comprehender esta scena.

— Então é a sr.a morgada em pessoa que...

— Que o convida para tomar uma chavena de chá — disse uma voz por traz d’elle.

Henrique julgou conhecer o timbre d’aquella voz.

Voltou-se, viu a morgadinha que entrava na sala, com o sorriso nos labios e a mão estendida, com aquella habitual franqueza de maneiras, que de tantos encantos a revestia.

Henrique exclamou, admirado:

— A prima Magdalena!

— A morgadinha dos Cannaviaes, se faz favor. Competia-me fazer as honras da minha propriedade, que pelos modos está para ser muito visitada hoje. Chamei, para me acompanhar, a Brizida, que viveu muitos annos aqui com a minha madrinha, e hoje vive em casa sua do rendimento do legado que aquella senhora lhe deixou. A Brizida é quem se encarrega de vir, de quando em quando, abrir as janellas d’esta casa, para que os ratos não a destruam de todo, e os tortulhos lhe não enfeitem as paredes.

— Mas como soube que eu?...

— Isso é um segredo. Não o esperava, porém, tão cêdo, nem imaginei que nos viesse ter assim ao intimo da casa. Fiquei embaraçada quando o vi. Ao principio quasi julguei que era a alma de minha madrinha. Mas fez bem em recolher-se... Ouve?

E com o gesto indicava a chuva, que já batia com fôrça nas vidraças.

— O peor é se isto não espalha e a Christina muda de tenção.

— O vento é do mar, menina; isto são aguaceiros — notou Brizida, como para desvanecer aquelle receio.

— Pois sabe que Christina vem?

— Eu sei tudo. Ora sente-se ao fogão, que deve vir muito frio. Accendi o lume, porque estava aqui dentro um ar humido e mofento, muito pouco hospitaleiro. — Brizida, olhe que se não percebam lá fóra as luzes, que podem amedrontar Christina. E feche a porta da sala. Abra o côro da capella e prepare chá para quatro. Aqui mesmo, Brizida, aqui mesmo, porque a cozinha está pouco habitavel.

Emquanto Brizida cumpria as ordens que a morgadinha lhe dava, esta, chegando uma cadeira para o fogão, sentou-se defronte de Henrique de Souzellas.

— Agora conversemos amigavelmente, primo Henrique. E antes de mais nada, responda-me a uma pergunta! O que o trouxe aqui?

— Pois não diz que sabe tudo?

— Até certo ponto, entendamo-nos. Não vão tão longe as minhas faculdades que cheguem a devassar intenções, que por ventura á propria consciencia de quem as fórma, repugne acceitar.

— Não é esse o meu caso; as minhas intenções são reconhecidas e approvadas pela minha consciencia. Vim para assistir ao espectaculo commovente de um anjo que ora por mim. É um espectaculo a que ainda não assistira, prima. Admira-se da minha curiosidade?

— Acho-a natural e até... louvavel. O ponto está que a sua convalescença esteja bastante segura já. Porque o primo Henrique convalesceu ha dias de duas doenças.

— De duas?

— Sim; e a mais rebelde não foi a de que o cirurgião o tratou.

— Então?

— A peor, aquella de que eu havia chegado já a desesperar, era a que lhe tinha descoberto logo na sua chegada aqui, uma doença moral; revelava-se por uma maneira de vêr as coisas, de pensar e de proceder verdadeiramente doentia.

— Estou curado d’isso.

— Estará? eu sei!... É certo que já é bom signal admittir que era doença.

— Dou pelo seu diagnostico, prima, e até pelo tratamento que me aconselhou em tempo; falou-me na vida campestre, no interesse pelos negocios locaes... e sobretudo em uma paixão sincera.

— Ah! e experimentou a receita?

— Experimentei e curei-me.

— Ou tomou por fôrças de saude o que era apenas o falso vigor da convalescença? Convem não abusar; ouço dizer aos medicos que são perigosas as recaidas.

— Pois teme que eu recaia?

— Por que não? Esta sua vinda aos Cannaviaes a horas mortas... comquanto motivada por louvaveis intenções... tem ainda assim uma certa feição romantica... que era bom vigiar... Sempre vim para acudir a algum accidente.

— É um perfeito medico da época; não tem fé na efficacia dos remedios que prescreve.

— Tenho; mas não desacompanho a acção d’elles, isso não. Agora fale-me com franqueza: ao recordar-se de certas ideias com que veio de Lisboa não se lhe figuram algumas extranhas e inacceitaveis já?

— Confesso que algumas...

— E comprehende agora o que eu lhe dizia? o remedio para o mal do coração que o minava, tinha-o a seu lado, desde o primeiro dia em que puzera os pés no Mosteiro, e teimava em ser cego para o não vêr.

— Desde o primeiro dia? Pois Christina...

— Christina deixou de ser creança desde aquelle dia.

— Querido anjo!

— Querido anjo?... Diz bem; deve adoral-a, tal como ella é ingenua, timida, supersticiosa até, se quizer; mas bondosa, mas adoravel, mas uma indole talhada para acalmar as paixões demasiado violentas de um caracter como o seu; para lhe fazer ter mais esperança na vida, mais coragem e mais fé no futuro.

Henrique, depois de instantes de silencio, disse, sorrindo, para Magdalena:

— Diga-me uma coisa, prima Magdalena; comprehendendo tão bem as necessidades do coração dos outros, não pensou ainda nas do seu?

— E quem lhe disse que as tinha?

— Conceda-me tambem um pouco da sua admiravel perspicacia, e não se julgue tão impenetravel, que não offereça leitura aos olhos que a observam.

— Ah! Então leu?

— Uma pagina eloquente de sentimentos generosos, prima; uma pagina que eu só agora estou habilitado para a apreciar como merece; pagina, porém, tão recatada, que julgo que ainda a não leu bem o principal interessado n’ella. Cego, como eu fui.

— Não leria? — perguntou Magdalena, sorrindo. — Está certo d’isso?

— E pode ser que lesse, pode; ou pelo menos que por inspiração a adivinhasse. Ha casos d’esses.

Magdalena tornou, mudando de tom:

— É ainda cêdo para tratar de mim. Quando me resolver a isso, verá que sou um doente modelo. Não hesitarei ante a violencia do remedio.

— E por que demora o tratamento?

— Pois parece-lhe que será urgente o caso?

— Prima Magdalena, o que vejo é que ha mais fortaleza da sua parte do que....

— Silencio! — disse a morgadinha, escutando. — Pareceu-me ouvir...

N’este momento a Brizida, que fôra a uma sala immediata, voltou, dizendo em voz baixa:

— Parece-me que abriram as portas da capella. Devem ser elles.

— Então depressa — disse Magdalena. — Abra-nos o côro; mas antes apaguemos as luzes. Teve uma feliz lembrança em prevenir-se com essa lanterna de furta-fogo. Traga-a e siga-me; mas occulte a luz. Não faça barulho.

Apagadas as luzes da sala, Magdalena e Henrique entraram, por um corredor estreito, no côro da capella, d’onde a morgada costumava ouvir missa, emquanto mandava patentear ao povo o pavimento inferior.

Quando alli chegaram, com as precisas precauções para não fazer estalar as tábuas do soalho, havia já em baixo uma luz escassa, que desenhava longas no pavimento as sombras de duas pessoas, ainda occultas sob a varanda do côro.

Cêdo se adeantaram para o altar, e claramente se reconheceu serem Christina e Torquato.

Caminharam silenciosos até ao altar principal. Torquato subiu os tres degraus, sobre que este ficava elevado e accendeu duas vélas de cera que, em ennegrecidos castiçaes de madeira dourada, ornavam uma imagem da Virgem da Soledade. Espalhou-se no recinto uma frouxa claridade, que não dissipou as sombras dos recantos, nem as que se condensavam no tecto.

Christina fez signal então a Torquato, para que se retirasse; e o velho, com os passos arrastados e tossindo, caminhou para a porta, que dentro em pouco se ouviu gemer sobre os gonzos e fechar-se com estrondo.

Tudo ficou depois em silencio.

Christina então ajoelhou deante d’aquella imagem, que era a de que a tradição popular contava milagres, e em profundo recolhimento ficou immovel a rezar a devoção promettida.

Henrique de Souzellas sentia-se enlevado por esta scena. Aquella angelica creatura viera alli agradecer á Virgem o tel-o salvado! Aquelle anjo amava-o? Havia pois no mundo quem o amasse com um amor puro e candido, em que elle já nem acreditava. E cabia-lhe a suprema ventura de gosar um amor assim!

Magdalena via com alegria a commoção de Henrique.

A oração de Christina prolongou-se por alguns minutos.

Henrique murmurou, ajuntando as mãos:

— Deus te recompense, anjo, a consolação que me dás.

— Não peça a Deus o que está na sua mão — respondeu-lhe em voz baixa Magdalena.

— Que diz?

— Está ou não sinceramente apaixonado?

— Como nunca imaginei que fôsse possivel estar.

— Crê na pureza d’aquelle coração?

— Como na dos anjos.

— Está convencido de que o pode salvar, ella?

— Não ha crédo que professe com mais fé.

— Por que não vae então ajoelhar ao lado d’ella e jurar-lh’o?

— E consente?

A morgadinha respondeu-lhe, conduzindo-o ao principio de umas estreitas escadas que pela espessura da parede iam do côro para a capella-mór.

— Aqui tem o caminho — disse ella. — Siga-me. E, servindo-se da lanterna de furta-fogo, foi descendo com precaução. Henrique seguiu-a.

No fim da escada, Magdalena occultou de novo a luz, e, dados mais alguns passos, parou junto de um reposteiro.

— Agora faça o que lhe dictar o coração — disse ella para Henrique.

Este correu o reposteiro com precaução, e achou-se na capella.

Christina rezava ainda, e como a porta por onde Henrique entrára ficava por detraz d’ella, não o viu chegar.

Henrique ficou a contemplal-a todo o tempo que ainda durou a oração.

Ao levantar-se, Christina, voltando a cabeça, descobriu-o, e soltou um grito de susto. A obscuridade que havia na capella não lhe deixou perceber logo quem fôsse, o que mais lhe augmentou o terror.

Henrique caminhou para ella, dizendo-lhe:

— Não tenha receio, Christina. Sou eu.

Reconhecendo-o, a timida rapariga ficou espantada. Como se explicava a presença de Henrique n’aquelle logar? Nem tempo teve de imaginar explicações. Henrique accrescentou:

— Sou eu, Christina: eu a quem a menina salvou e por quem com tanto fervor veio rezar aqui. Obrigado, mais uma vez lhe digo, obrigado, Christina. Quiz fazer-me comprehender todos os castos e abençoados prazeres da familia; depois de me dedicar as suas vigilias, dedicou-me as suas orações. Deixe-me beijar-lhe a mão com todo o affecto, com toda a paixão que pode haver na minha alma.

E dizendo isto, levou aos labios a mão, que ella, de enleiada, nem ousára retirar das suas.

— Agora peço-lhe, Christina, que, já que me fez antever as delicias do viver da familia, não me condemne para sempre ao supplicio de não as vêr realisadas. Lembre-se de que não conheci mãe, de que não tenho irmãs, de que tenho vivido só, e de que cêdo voltarei a essa vida solitaria e gelada, que me será agora uma tortura. Compadeça-se de mim. Quer vir occupar no meu coração o logar vago que ha n’elle para as affeições de mãe, de irmã, e de...

— Henrique!... — murmurou quasi inintelligivelmente a sobresaltada creança.

— É deante d’esta Virgem, a quem orava com tanto fervor, é pousando a mão sobre os Evangelhos d’esse altar, que eu lhe prometto mais do que uma paixão ephemera de rapaz, prometto-lhe a constante adoração, rodeada de respeito, do homem que as suas virtudes reconciliaram com o mundo. Acceite, Christina, acceite o offerecimento do meu coração.

Christina tremia sem poder responder.

Magdalena entrou por sua vez na capella.

— Não se pode exigir assim uma resposta directa, primo Henrique — disse ella.

Christina, cada vez mais surprehendida por estas successivas e inesperadas apparições, correu para a prima.

— Tu, Lena! Tu tambem aqui?!

— Então não me competia receber em minha casa as visitas? Mas vamos, dize-me aqui ao ouvido a resposta que queres que eu dê por ti ao sr. Henrique de Souzellas, que me parece acaba de te pedir, muito terminantemente, a tua mão.

Christina não respondeu, senão cingindo-a mais intimamente ao seio.

— Não responderam os labios, primo, — continuou a morgadinha — mas falou o coração ao meu na linguagem das pulsações. Estou-o sentindo.

— E disse?...

— Que havia de dizer? Que sim.

E Magdalena, que tinha a mão de Christina na sua, extendeu-a a Henrique, que a apertou apaixonadamente e a beijou de novo.

Parece-me poder affirmar que d’esta vez já houve correspondencia.

O velho Torquato, farto de esperar de fóra da capella, e achando que as rezas se prolongavam de mais, resolveu chamar Christina.

Ao entrar divisou porém tres pessoas em logar de uma só, que esperava, e recuou estupefacto e aterrado.

Suppôz que almas penadas andavam na capella.

O bom do homem não ousava approximar-se.

Magdalena, que o ouvira entrar, animou-o, dizendo:

— Não tenha mêdo, Torquato. A alma de minha madrinha encarregou-me de fazer esta noite as suas vezes. Sou eu.

O espanto do feitor não era agora menor. Esfregava os olhos, como se receiasse estar dormindo, e não passava de olhar para Magdalena, para Henrique e para Christina, sem entrar na explicação do que via.

Custou a fazel-o voltar da sua estupefacção.

Momentos depois entravam todos quatro na sala onde Henrique fôra recebido por Magdalena, e ahi a velha Brizida lhes serviu o chá.

A antiga criada da morgada fez muita festa a Christina, e, como já percebera a casta de sentimentos que havia entre esta e Henrique, soltou algumas insinuações, que a obrigaram a córar, e a rir Magdalena.

Passou-se uma bella noite, conversando-se e rindo-se em perfeita intimidade.

— Que longe estava eu hoje de pensar n’este delicioso serão! — disse Henrique. — Decididamente é de maravilhas esta casa; o povo tem razão. A morgada defuncta foi decerto quem se encarregou de fazer os convites.

— É verdade, como foi que vieram aqui? — perguntou Christina, já mais desenleiada. — Já sei, foi este Torquato que me não guardou segredo. O que merecia!...

— Eu, menina?! Ora essa! Eu até...

— N’este Torquato ha alguma coisa mais para receiar do que a indiscreção — disse Magdalena.

— Que é? — tornou a prima.

— É a discreção.

— Então por quê?

— Torquato é discreto, com umas meias palavras, que exprimem mais do que a verdade.

— Eu... — ia a dizer o velho, justificando-se, quando Henrique o interrompeu.

— Mas emfim, expliquemos mutuamente a nossa presença aqui.

— N’esse caso é justo que fale primeiro Christina.

— Que hei de eu dizer?

— Explica a tua presença aqui. Então não ouviste o primo Henrique?

— Ora, já o sabem.

— Mas talvez não lhe seja desagradavel ouvil-o outra vez da tua bôca.

— Não, não, a minha vinda, essa não tem que explicar.

— Que diz, primo Henrique?

— Não tenho coragem para pedir mais do que tenho pedido já.

— Pedido e obtido, pode accrescentar. Bem, Christina veio aqui trazida por um sentimento de piedade e de...

— Lena!

— Assim mesmo sempre seria curioso ouvir a narração dos sustos que ella sentiu por o caminho desde o Mosteiro até aqui. O Torquato não era decerto bastante para lhe limpar a estrada de visões e malfeitores.

Christina poz-se a rir.

— Mas vamos ás explicações da presença dos mais. A Christina avisou o Torquato, o Torquato avisou o primo Henrique...

— Eu?!

Christina olhou para o velho com um meigo gesto de reprehensão.

— Se eu o soubesse!...

— Eu... eu não disse... eu... só disse...

Henrique tomou a palavra.

— Torquato não é de todo o culpado. Pois acha que não haveria em mim alguma coisa que me ajudasse a adivinhar? Torquato atraiçoou-se involuntaria, inconscientemente. Mas quanto á prima...

— Eu? Soube-o tambem do Torquato.

— Pois tambem a ti o disse? Olhem que homem de segredo!

— Isso é que não. Eu não disse á sr.a D. Magdalena... Ella é que...

— Foi o que eu disse ha pouco. A discreção do Torquato é que revelou o segredo.

— Como?

— O Torquato falou com o seu velho amigo herbanario.

— Eu a esse não disse.

— Não, a esse quiz occultar, e d’ahi é que veio o mal.

— Ora, ora...

— O que eu sei é que Vicente veio procurar-me á porta do Mosteiro, e ralhou-me com uma severidade e uma aspereza, como ainda lhe não tinha merecido nunca. Estava o homem convencido de que eu era a heroina de umas aventuras romanticas que se verificavam de noite n’esta minha propriedade dos Cannaviaes. E tão irritado estava, que me não quiz ouvir, quando eu procurava esclarecer o que para mim era um perfeito enigma. Ao retirar-se, porém, disse-me que não lhe quizesse occultar a verdade, porque do Torquato soubera tudo.

— Eu não disse...

— E depois a prima...

— Eu então chamei este senhor, armei-me de toda a minha gravidade, e exigi que falasse e me dissesse tudo o que havia e tudo o que sabia a respeito de uns passeios aos Cannaviaes; elle estava pêrro, mas a final falou.

— Mas sabia tambem que eu vinha? — perguntou Henrique.

— Pois não se lembra de que pela manhã me tinha cançado com perguntas a respeito do caminho para a casa dos Cannaviaes? Eu já extranhava a insistencia; depois do que soube, tive uma suspeita. Perguntei ao Torquato se lhe falára n’isto. A resposta d’elle, apesar da sua hesitação e ambiguidade, habilitou-me a concluir que teria o gôsto de receber o primo em minha casa.

— E que disseste no Mosteiro? Sabem que vieste?

— Não. Disse que ia visitar Brizida, onde passaria a noite. Bem me viste sair. Viemos ambas para aqui ainda com dia para pôr a casa em arranjo.

— São mesmo coisas tuas — disse Christina, rindo.

— Mas eu não disse nada — insistiu Torquato.

— Porém, por que motivo se irritou tanto o herbanario? — perguntou Henrique. — Que imaginava elle a final?

-Ah!... É porque este sr. Torquato teve a habilidade, com as suas meias palavras, e reticencias indiscretamente discretas, de arranjar as coisas de maneira que o velho Vicente chegou a persuadir-se de que havia aqui um romance em que entrava eu... A discreção do Torquato é das que respeita os nomes, de maneira que as honras da aventura fôram-me todas attribuidas... N’este mesmo romance parece que entrava tambem o primo Henrique...

— Ah! percebo agora — disse Henrique, rindo. — O velho é ciumento por procuração.

Magdalena abanou a cabeça, sorrindo tambem.

Christina, que já estava habilitada para entender a allusão de Henrique, sorriu com elles.

O Torquato foi o unico que nada percebeu.

Eram perto de duas horas, quando a morgadinha lembrou a necessidade de voltarem a casa.

— Choverá? — perguntou Brizida.

— Julgo que não — respondeu Magdalena, e como para assegurar-se correu a vidraça da janella e examinou o firmamento.

Henrique acompanhou-a.

— A noite está serena — disse ella. — São horas de voltarmos.

— Mal sabe a tia D. Victoria por onde lhe anda parte da familia a estas horas — disse Henrique, — Mal sabe a tia D. Victoria por onde lhe anda parte da familia a estas horas — disse Henrique, debruçando-se á janella, e continuou: — Mas que agradavel noite! Não poder prolongal-a por toda a eternidade!

—­Vamos, vamos,—­respondeu Magdalena—­o dia d’ámanhã deve ser feliz ainda, porque...

N’isto, como se alguma coisa tivesse observado na rúa que lhe attrahisse a attenção, calou-se, mal podendo reter um lève grito.

—­Que foi?—­perguntou Henrique, que o percebeu.

—­Nada—­respondeu ella, correndo a vidraça e afastando-se da janella.

—­Viu a alma da morgada?—­perguntou jovialmente Henrique, vendo-a preoccupada.

—­Não—­respondeu Magdalena, meio a sorrir e meio séria.—­Pode porém haver apparições peores.

—­Que é, Lena? Que viste tu?—­perguntou Christina, assustada.

—­Socega, filha, nada que possa transtornar o nosso regresso. Vamos.

E, passados poucos minutos, sairam todos os que até alli animavam aquella habitação solitaria, e ella permanecia outra vez em trevas, em silencio e na sua quasi desolação.