XXXII


Augusto, ao voltar a casa, sentiu que estava inevitavelmente votada á insomnia aquella noite, a ultima que devia passar na aldeia, não porque os preparativos da jornada lhe impedissem o repouso, mas a lucta de tantos pensamentos e paixões encontradas, decerto lhe disputaria o espirito.

Partir é já uma palavra, que quasi nunca se pronuncia com indifferença; partir para não voltar é uma ideia afflictiva, que maïs violenta commoção desafia; partir sem esperanças no futuro... poucas torturas de alma se podem comparar a está!

Experimentava-a Augusto.

Era quasi uma resolução de suicida a sua. Nenhuma ambição tivera poder sobre elle para o arrancar d’alli; tivera-o o desespero.

A cada momento, elle proprio surprehendia-se immovel, abstracto, com os olhos fitos na chamma da véla, com a cabeça entre as mãos, sem saber em que pensava, sem consciencia de si.

A noite estava socegada, e apenas o som monótono de uma fonte proxima interrompia o silencio d’aquellas horas adeantadas.

Augusto abria um livro, mas lia como por certo o leitor sabe que se costuma ler em situações identicas.

Levantava-se para fazer os aprestes da jornada, mas havia em todos os seus movimentos uma indecisão, uma falta de consciencia, que não deixava dúvidas sobre o estado do animo que os regia.

Como que a todo o momento estava esquecendo a que fim convergiam as suas acções; e no meio do cumprimento de uma tenção, perdia a consciencia d’ella.

Parava defronte de um livro, como se irresoluto em saber se o levaria comsigo; mas cêdo afastava-o de si com enfado.

Examinou depois os papeis e as cartas; queimou tudo. Vestigios de passados devaneios, effusão de uma alma sensivel, fructos da juventude e da solidão, a que a primeira inspirára o enthusiasmo, e a segunda a melancolia, tudo consumiu; com certo prazer amargo via atear-se a chamma, desapparecerem as lettras, reduzir-se tudo a cinzas.

Respeitou apenas as cartas de Angelo, que releu commovido. Falava-se em algumas de Magdalena. O sobresalto do seu coração, ao ler aquelle nome, era então mais violento que nunca.

N’estas pesquizas veio-lhe ás mãos um pequeno masso, que pertencêra ao herbanario.

Ia para as queimar tambem, quando a inscripção, que viu por fóra da cinta que as enfeixava, o fez hesitar.

Liam-se estas palavras: — Cartas de Magdalena.

Cartas de Magdalena! Este nome tinha no animo de Augusto o valor de uma tentação.

Cartas de Magdalena! Era quasi ouvil-a falar, prazer a que já tinha renunciado; era entrar em communhão de pensamentos com ella, e infeliz de quem não concebe a casta voluptuosidade d’este gôso.

Mas ao mesmo tempo hesitava.

Pertencia-lhe tambem aquelle legado? Não seria um abuso lel-as? Devia antes queimal-as, mas... eram cartas de Magdalena. E depois, que mal poderia vir da indiscreção? Não tinha elle um coração que não devia abrir-se mais a ninguem? Encerrar alli qualquer segredo era encerral-o quasi em um tumulo.

E que segredos podiam ser os de Magdalena e Vicente?

De que se poderia tratar alli, a não ser de algum affectuoso cumprimento da morgadinha ao velho, que sempre tratára com intima familiaridade, ou algumas meigas reprehensões por a sua porfiada ausencia do Mosteiro?

Augusto recordava-se até do velho lhe ter falado na indole d’estas cartas.

Nas vesperas de renunciar para sempre á felicidade, devia-se perdoar a tentação.

Abriu-as.

Não ia muito adeantado na leitura, quando já todos os signaes de hesitação cediam o logar aos da mais irreprimivel avidez. E terminada a primeira, abriu, leu ou devorou outra, e após outra e outra, até a ultima; da ultima voltava de novo á primeira, e cada vez mais profunda commoção parecia dominal-o.

Transcreveremos algumas d’aquellas cartas, para o leitor julgar de todas.

Dizia uma:

«Meu bom amigo. — Hontem, depois que nos separámos, recebi de Lisboa a encommenda que esperava. O Angelo não se esqueceu. Mando-lh’a, para que mais uma vez faça de feiticeiro, adivinhando os gostos do seu amigo.

«Afianço-lhe que vae acertar com os desejos d’elle. Ha tempos que o vejo, emquanto espera na sala por os pequenos, procurar de preferencia na estante os livros de historia franceza. Custa-me a perdoar-lhe os attractivos que tem para elle a Revolução, mas emfim seja feita a sua vontade. Escuso de lhe recommendar discreção. E, quando nos virmos, peço-lhe que me não torne a falar nos laços em que diz que eu estou a prender o coração. Mette-me mêdo. — Sua amiga, Lena

Esta era uma das mais remotas em data. Outras diziam:

«Meu amigo. — Hontem separámo-nos de tão mau humor, que hoje acordei com remorsos, e não pude socegar emquanto lhe não escrevi para lhe pedir perdão. Espero que perdoará a este rebelde genio que tenho.

«Mas tambem para que me está sempre a ralhar? Não se assuste pelo meu coração; o maior perigo que o tio Vicente receia para elle, faz-me sorrir. — É o de me apaixonar? — Então que tinha? Não sonhe com nuvens, e vá representando o seu papel de adivinho, que é uma generosa acção que pratica. — Sua arrependida inimiga, Lena

«Meu bom tio. — Ahi vão uns livros, de que eu não entendo nada. Augusto falou d’elles ao filho do administrador, que veio de Coimbra. Conheci n’elle desejos de possuil-os. Tomei nota. O Angelo remetteu-m’os hontem. Para Augusto não desconfiar, finja atraiçoar um pouco o mysterio, e fale no filho do administrador. Do mais, já nada digo.»

A de mais recente data dizia apenas:

«Tio Vicente. — Pensei no que me disse do estado do coração do seu... do nosso amigo. Parece-me que exaggera. Mas, se fôsse verdade, podia tranquillisar-se. Eu lhe afianço que d’ahi nunca para elle virá a infelicidade. No entretanto, discreção por ora. — Sua affeiçoada sobrinha, Magdalena

Por a amostra, que lhe damos, o leitor não deve estranhar que estas cartas estivessem causando a Augusto o effeito que dissemos.

Cada uma era uma revelação.

Augusto vivera sem o saber, sob a influencia benefica da morgadinha; d’ella lhe viera pois grande parte da instrucção que recebera, alli, na solidão d’aquella aldeia!

O mysterio dos presentes do herbanario, a que tão diversas explicações dera, esclarecia-se emfim. Havia-os attribuido a Angelo; suspeitára, pelo menos, que era a elle que o herbanario se dirigia para escolher os livros.

Nunca, porém, se lembrára de Magdalena; agora, que sabia de que origem provinham, beijava-os, como sagradas reliquias, venerava-os com expansões de verdadeira idolatria. Já não tinha coração para se separar d’elles.

Nas cartas em que Magdalena se referia, mais ou menos jovialmente, aos cuidados que parecia dar ao herbanario esta sympathia manifesta d’ella por Augusto, não havia para elle menor encanto. Pelo que tantas vezes lhe dissera o herbanario, conjecturava de que natureza deviam ser as reflexões a que Magdalena alludia.

O velho Vicente estava, por assim dizer, no meio d’aquelles dois corações, estudando-os a ambos, receiando por ambos, lidando por extinguir n’um e n’outro a sympathia que via crescer e que ameaçava degenerar em paixão. Toda a sua intervenção consistia em fazer com que elles se não revelassem; era o meio isolador que impedia que se ateasse o incendio. Nas suas mãos paravam os dois fios da corrente, só elle a interrompia.

Esta situação do herbanario era para elle causa de grandes iuctas.

Amando Augusto com sentimento paterno, tinha ambições por o amigo; e, ás vezes, movido d’ellas, sentia-se tentado a favorecer aquella paixão. Por outro lado, não estimava menos Magdalena, e prevendo as resistencias e repugnancias com que ella teria a luctar, e os tormentos a soffrer, hesitava e desejava poder abafar no coração dos dois os germens de pesares futuros.

Tivemos occasião de o vêr sob estas diversos impressões. Umas vezes reprehendendo Augusto, outras quasi deixando-lhe entrever esperanças. A chegada de Henrique de Souzellas e os successos subsequentes despertaram no velho uma especie de ciume, e fizeram-n’o mais ardente partidario de Augusto.

Tudo isto estava agora transparecendo ao espirito de Augusto.

Beijou as cartas da morgadinha, releu-as, apertou-as ao coração, e tão enlevado estava pelo perfume do affecto que rescendia de todas, que nem se lembrava já da hora proxima da partida do motivo que a originára. Motivo que era o desmentido da sua illusão.

Mas esta ideia amarga acudiu a final, e a impressão que produziu foi dolorosa. Pela primeira vez, n’aquella noite lhe vieram as lagrimas aos olhos, a fronte pendeu-lhe, quasi desfallecida, sobre os braços, e assim permaneceu por muito tempo.

Depois levantou a cabeça n’um impeto de desesperação, exclamando:

— Para que me haviam de vir á mão estas cartas? Que espirito diabolico se compraz de martyrisar-me assim? Saber que um anjo me acompanhava com a sua vista protectora só quando elle me vae deixar para sempre! E dizia ella que me não podia vir o infortunio d’aqui!... Não contava com as mudanças do proprio coração.

Na vidraça da sala terrea, em que se achava Augusto, soaram algumas leves e rapidas pancadas que o fizeram estremecer.

— O Cancella já?... É pois certo que vou partir?

Levantou-se para abrir, e os passos vacillavam-lhe lhe como os do condemnado ao caminhar para o supplicio.

Chegára o momento de romper com todas as esperanças.

—­Estou prompto—­disse elle, abrindo a porta e voltando para dentro, sem reparar em quem entrava; e poz-se a réunir e a ordeñar os papeis que tinha dispersos na mesa.

—­Cuidei que era maïs cêdo—­continuou elle.—­Distrahi-me a ler umas cartas que estive a pôr em ordem, e o tempo correu. Vamos lá, meu pobre amigo, deixemos está terra para os venturosos.

E, dizendo isto, desviou o olhar para o sitio onde julgava que devia estar o Herodes; mas, em vez d’elle, achou deante de si Angelo e Magdalena, que, parados no meio da sala, o fitavam com melancólico sorriso.

Augusto estremeceu, soltando um grito de surpresa, e com o olhar fito em Magdalena, ficou por bastante tempo n’essa muda contemplação.

Magdalena foi a primeira que falou.

—­Admira-se de nos vêr aquí?—­disse ella.—­Que ha de maïs natural? Angelo recebeu a sua carta e mostrou-m’a. Tivemos ambos o mesmo pensamento; viemos para dizer-lhe... pelo menos o adeus que lhe deviamos... visto que vae partir.

E havia n’estas palavras de Magdalena um mal pronunciado tom de recriminação, que feriu Augusto.

—­E é certo que quer partir?—­perguntou Angelo.

—­Sim... parto...—­respondeu Augusto, perturbado.

—­Mas por quê? Que significa essa resolução? Lena contou-me ha pouco tudo. Eu nada sabia. Disse-me que o offenderam com uma suspeita infâme, e em nossa casa! Mas, já resolvemos; ámanhã, eu e Lena, havemos de falar, havemos de conseguir...

—­Não, Angelo. É inútil. Deixe-me com o meu destino. É a elle que eu obedeço.

—­Não fala verdade,—­acudiu a morgadinha—­diga que obedece á sua phantasia, e commette uma ingratidão.

Á palavra «ingratidão», Augusto não pôde reprimir um sorriso de amargura.

—­Uma ingratidão, sim—­repetiu Magdalena, respondendo com firmeza e serenidade áquelle sorriso.—­Ha dias, depois de uma scena dolorosa para todos nós, quando saía do Mosteiro subjugado por uma mysteriosa e cruel fatalidade, encontrou alguem no limiar da porta, que lhe pediu que não partisse sem se despedir... de quem através de tudo, o acreditaria innocente. E para está pessoa não houve uma só palavra na carta de despedida que mandou a meu irmão! E escreveu-a sobre o tumulo de minha mãe!

Estás palavras fôram ditás com tão sentida commoção, que Augusto esteve quasi a lançar-se-lhe aos pés, para pedir perdão; reteve-se, porém, e respondeu turbamente:

—­Porém, minha senhora, por essa occasião eu jurei tambem á pessoa de quem fala, e a quem serei sempre grato, que não procuraria tornar a vêl-a, nem falar-lhe antes de me poder mostrar aos olhos de todos digno da sua generosa confiança.

—­Foi isso que jurou, où antes que não procuraria ser visto?—­perguntou Magdalena, sorrindo.—­Veja qual d’esses juramentos será maïs em harmonia com os seus actos.

A lembrança da excursão nocturna aos Cannaviaes, para espiar Magdalena, tirou a Augusto o animo de responder.

Magdalena comprehendeu aquelle embaraço, e não insistiu.

—­Mas supponhamos que assim foi; visto isso, parte para buscar as provas da sua justificação?

—­Não, minha senhora, parto, porque desisto d’ella. Basta-me estar justificado para com a consciencia.

—­Não tem direito para o fazer. Uma alma, que é nobre, deve homenagem a si propria. Resignar-se á suspeita, é como um suicidio moral.

—­Justamente, minha senhora; e não concebe que haja casos em que o suicidio seja natural?

—­Meu Deus, Augusto—­exclamou Angelo—­como eu o estranho! o que o levou a esse desespero?

A morgadinha sorria, ao responder ao irmão:

—­É uma febre que passa, verás. Quer que lhe fale com franqueza, sr. Augusto? Tenho um secreto presentimento a dizer-me que, apesar d’essa descrença, apesar d’essa carta, e apesar de estar por minutos o momento da partida, não só não partirá, mas até ha de tomar parte na nossa primeira festa de familia, a do proximo casamento de Christina.

Estás ultimas palavras fizeram impressão em Augusto, que instinctivamente repetiu:

—­Do proximo casamento de Christina?!

—­Pois não sabia que Christina vae casar?-perguntou Magdalena com a maior naturalidade, mas fitando os olhos em Augusto.—­É verdade, o sr. Henrique de Souzellas teve pressa de legitimar o título de primos, com que arbitrariamente nos tratavamos.

Augusto olhou para Magdalena, com indefinivel expressão, dizendo:

—­Quê?... pois é com Christina... pois Henrique vae casar com...

Só depois de lhe romperem dos labios estás palavras, é que, reconhecendo a indiscreção da sua surpresa, accrescentou com mal simulada indifferença:

—­Ah! não sabia!

—­Devéras? Pois não tinha ouvido falar d’este casamento? Oh... querem vêr que suppunha tambem que era eu a que me casava?... Digo isto, porque o Cancella tambem estava na mesma crença. Parece que correu essa voz na aldeia. Estes boatos!... E acham logo quem se fie n’elles!

E, mudando de inflexão, proseguiu:

—­São dois noivos exemplares, Henrique e Christina, perdidos um por o outro. Christina, com a sua timidez, exerce um forte imperio sobre aquelle incorrigivel da capital. Mas para isso foi preciso encontral-o doente. Tenho orgulho de ser eu a primeira a legitimar, de alguma maneira, aquella sympathia. Fôram singulares as circumstancias em que isto se effectuou. Eu lhe conto. Foi de noite, e noite de chuva, na capella-mór da minha propriedade dos Cannaviaes, onde Christina fôra rezar, pela saude de Henrique, as estações da meia noite; onde Henrique foi para seguir e observar Christina, e onde eu fui, com a Brizida, para os vigiar a ambos e preparar-lhes o futuro; intervenção algum tanto perigosa, porque podia haver quem me seguisse a mim com menos generosas intenções de que as de qualquer dos très, e que, ao vêr-me em tão extraordinario sitio, a taes horas, não me concedesse a confiança precisa para acreditar, através de tudo, na minha innocencia.

A allusão era clara, e maïs clara a fazia a inflexão com que foi pronunciada.

Augusto curvou a cabeça e murmurou:

—­Tem razão, algum miseravel.

—­Ou algum infeliz—­corrigiu delicadamente Magdalena.—­Os infelizes são tambem sujeitos a perderem a fé. Mas quem lhes pode levar a mal isso?

Houve alguns instantes de silencio, no fim dos quaes a morgadinha disse maïs jovialmente:

—­Mas afiancei ha pouco que não partiria. Acaso me enganei?

Augusto, como o leitor concebe decerto, já não tinha animo nem razão para dizer que partia. Calou-se.

Angelo, a cuja prompta intelligencia não tinha ficado latente o verdadeiro sentido d’este dialogo, graças tambem ao conhecimento que elle tinha, havia muito, do coração de sua irmã e do de Augusto, respondeu por elle:

—­Não te enganaste, não, Lena. Tambem eu já digo que Augusto não partirá.

E Augusto sem protestar!

Magdalena tornou-se de subito maïs séria e grave do que até alli, e a mesma gravidade tinha na voz, quando de novo se dirigiu ao irmão, dizendo:

—­Para vir aquí, pedi o auxilio do teu braço de creanca, Angelo, como se fôra o de um homem. Deixa-me considerar-te por maïs algum tempo ainda da mesma maneira, emquanto não termino a minha missão. Ha pouco, depois que me leste a carta, que a ti tinha sido dirigida, perguntaste-me: «Que tencionas fazer?» Não é assim?

—­Foi, e tu respondeste-me o que eu esperava. Pediste-me que te acompanhasse aquí.

—­Has de já ter percebido que o pensamento que me obrigou a este passo, que não sei se me deverão censurar, creio até que devem, que esse pensamento não está cumprido ainda.

—­Vejo que não.

—­Pois é deante de ti, Angelo, que considero como um homem, como um bom conselheiro, é deante de ti, como seria deante de quem quer que ahi estivesse em teu logar a ouvir-me, que eu vou concluir o meu pensamento.

E voltando-se para Augusto, Magdalena accrescentou com firmeza, que só um demasiado rubor trahiria, se a luz fôsse bastante para o denunciar:

—­Augusto, está pobre, sem familia, sem amigos, e, para ultima provação, até as traições e as suspeitas lhe não pouparam o nome honrado que herdou. Essa posição dá-lhe direitos que eu sei comprehender, creia. É uma especie de nobreza, de que se não pode exigir humilhação alguma. Por isso, sem hesitar, com toda a lealdade, vim aquí em companhia de Angelo para estender-lhe a mão e dizer-lhe que se, como tenho razão para crer, as sympathias de uma alma que ha muito o comprehende, Augusto, se essas sympathias podem bastar ás aspirações da sua, se, para ganhar coragem, os meus affectos lhe podem servir, conte com o auxilio da minha alma... e dos meus affectos. É deante de ti, que faço está confissão, Angelo. Terás que me ralhar por causa d’ella?

Ao ouvir aquellas palavras, Augusto esqueceu toda a hesitação, e tomando entre as suas a mão que Magdalena lhe estendia, cobriu-a de beijos apaixonados.

Magdalena não teve pressa de retiral-a.

Angelo veio tambem beijar as faces da irmã. Era assim que respondia á pergunta d’ella.

Pobres creanças! Porque a final eram creanças todos très, creanças a quem ainda os romances namoram, sem que se lembrem de que, ao transplantal-os para a vida real, todos os desconhecem e censuram, e só regando-os de lágrimas é que as maïs das vezes se consegue nutril-os.

O olhar de Augusto radiava já com o vivo fulgor da alegría.

—­Obrigado, Magdalena, deu-me a vida com essas palavras generosas. Deixe-me adoral-a, anjo, anjo libertador! Comprehendo os deveres que tenho a cumprir. Hei de ter fôrça para conquistar as provas da minha innocencia. Preciso agora d’ellas; hei de obtel-as, e depois...

Aquí reteve-se de subito, e uma nuvem de tristeza toldou-lhe de novo o rosto.

Magdalena, como se o comprehendesse, concluiu:

—­E depois sou eu quem tem o direito de exigir que não pare. Bem vê que, depois do passo que dei, se algum escrúpulo où orgulho pesasse no seu coração, Augusto, seria uma dolorosa offensa que me fazia. Acceitou a mão, que eu com lealdade lhe offereci; a lealdade obriga-o agora a seguir o caminho do Mosteiro.

Depois de alguns instantes de reflexão, Augusto respondeu outra vez com firmeza:

—­Tem razão, Magdalena. Terei coragem para cumprir o meu dever.

Escusado é dizer que o Herodes teve de partir só.

O bom homem ficou espantado ao encontrar em casa de Augusto tão inesperada companhia, mas não lhe foi difficil, depois do que viu e ouviu, conjecturar qual a natureza dos motivos que tinham feito mudar de resolução o seu companheiro de jornada.

Partiu, desejando todas as felicidades aos seus amigos.

Estes não conseguiram dissuadil-o de partir.

Não havia já estímulo para arrancar aquelle coração ao desalento.

Magdalena e Angelo voltaram ao Mosteiro.

O resto da noite de Augusto passou sob a influencia de tão violentas paixões, que desisto de descrevel-as.