O sermão de Ângelo foi um verdadeiro acontecimento, que logo se apoderou da curiosidade de Paris inteiro.
Por toda a parte se falava em tal, e se comentava aquele pálido e meigo seminarista, que vinha, da sombra silenciosa de um pobre mosteiro, abalar o coração de toda a corte de Luís XV.
Discutiam-lhe os olhos, a boca, os cabelos. Falava-se do seu ar angélico, da sua encantadora expressão de santo inspirado, e da maravilhosa doçura da sua voz.
Formaram-se logo mil lendas a respeito dele, e sabia-se que o rei, depois de lhe oferecer um lagar na capela real, o que foi imediatamente recusado pelo velho Ozéas, propôs-se a assistir à sua missa nova, graça que não tinha até aí concedido a nenhum outro iniciado, e prometeu também presenteá-lo com as vestes e paramentos que o seminarista tinha de pôr nesse dia, o que equivalia a dizer que Ângelo iria ordenar-se cercado de todos os esplendores.
E começaram, tanto os que presenciaram o famoso sermão de quinta-feira santa, como os que apenas ouviram falar dele com insistência, a esperar o dia da iniciação de Ângelo, para ter, ao menos, o prazer de ver esse imberbe e afortunado pregador, que assim abalava escandalosamente o alto e baixo público de Paris.
Ângelo era o assunto de todas as palestras da rua e das salas. No teatrinho que o duque de Orléans tinha no seu palácio de Bagnolet, célebre pelas cenas licenciosas que aí se representavam, tratava-se já de fazer subir à ribalta uma peça com o nome dele, na qual o duque desempenharia um dos principais papéis.
No salão teatral da duquesa de Villeroi, onde o rei da Dinamarca viera uma vez para ouvir declamar o popularíssimo Le Kain e MºClairon, pensava-se também em montar uma comédia de assunto sacro, cuja ação se passava na capela real, e cujo protagonista era um pregador de vinte anos.
E, assim, no teatro do barão de Esclapon, no da duquesa de Mazarin, no do Sr. de Magnaville, no do príncipe de Condé, no da Guimard, e nas salas alegres de Sofia Arnoud, pontos esses de reunião em que melhor se fazia espírito e, com mais graça e mais picante maldade, se discutiam as novidades e os escândalos do dia, era ainda Ângelo o assunto da palestra e o objeto de mil epigramas, sátiras e trocadilhos.
Mas onde incontestavelmente o assunto despertou maior escândalo, foi no salão da condessa Alzira, bela, cínica e espirituosa cortesã, célebre por ser nessa época a mulher mais insensível e mais fria de Paris. Juravam todos que a formosa condessa jamais sentira por ninguém a menor partícula de amor, e que o seu melhor momento de alegria era quando, por causa dela, algum dos seus inúmeros apaixonados caía morto em duelo ou metia uma bala nos miolos.
Começando pelo rei, que fora o seu primeiro amante, pertencera ela depois simultaneamente, ora mais ora menos tempo, a toda a gente da corte capaz de manter mulheres caras.
Tinha uma virtude: a ninguém enganava, porque, não só confessava francamente ao seu dono da ocasião toda a sua insensibilidade, fosse lá por quem fosse, como não repartia com um segundo aquilo que um primeiro houvesse arrematado já e pago à vista.
Esta sinceridade original em uma pessoa das suas condições, valeu-lhe a estima de alguns homens de espírito. De sorte que as quintas-feiras de Alzira eram freqüentadas por boa roda de rapazes, e a gente se não aborrecia entre as quatro paredes das suas riquíssimas salas.
Como fiéis, reuniam-se lá todas as semanas suas amigas, a cantora Sofia Verriére, Gabriela Vanguyon, Margarida Duclos, o conde de Saint-Malô, Artur Bouvier, e, principal e invariavelmente, o seu velho amigo, o único homem para quem Alzira tinha às vezes um sorriso de amizade, o Dr. Cobalt, médico de nomeada, que fazia algum ruído em volta do próprio nome com os seus estudos sobre o materialismo, então apenas nascente em França.
E as reuniões eram boas quase sempre. Na imediata ao sermão de quinta-feira santa, era Ângelo o assunto forçado em todos os grupos.
— Um triunfo! exclamava Sofia; um verdadeiro triunfo! Em alguns dias o tal discípulo do velho Ozéas tornou-se quase tão popular como a Pompadour!
— É exato! confirmou o conde de Saint-Malô; depois de Bossuet, não se ouviu em Paris uma prédica tão notável. Nem as melhores de La Rose!
— Ah! interveio Artur Bouvier; o sermão de quinta-feira foi com efeito uma obra-prima no seu gênero! Vi desfazerem-se em pranto criaturas, a quem eu supunha fosse impossível arrancar uma lágrima!
— Pois se até a Guimard chorou!. . . disse Margarida, mostrando os seus dentes grandes como os de uma inglesa.
Bouvier replicou:
— A Guimard não admira, é uma mulher! Feia é verdade; magríssima, não há dúvida; sarapintado de marcas de bexiga, ninguém o nega; mas afinal é uma mulher! Comover, porém, o duque de Fronsac e o marquês de Sade até à lágrima. . . isso é que é verdadeiramente extraordinário!. . .
— Pois esses dois monstros choraram?... perguntou Gabriela, afetando grande surpresa. Oh! como hoje em dia a lágrima está ao alcance de todas as bolsas! . . .
— Pois choraram. . . insistiu Bouvier. Tanto que a propósito Sofia Arnoud disse que o jovem pregador, fazendo brotar água de tais rochedos, conseguira maior milagre do que o seu legendário colega Moisés.
— Ah! suspirou Margarida. Não há dúvida que o talento sabe fazer todos os milagres!. . .
O Dr. Cobalt, que a um canto da sala conversava com Alzira, mas aplicava meio ouvido à palestra dos outros, exclamou de lá:
— Não! não! perdão! não foi o talento que fez o milagre, minhas gentis amigas; não foi o talento, nem tampouco a ilustração teológico do jovem seminarista, o que tão profundamente impressionou Paris...
Estas palavras do médico abriram na sala um silêncio de surpresa e indignação.
— Como? Pois o Dr. Cobalt tinha a coragem de negar talento ao pregador de quinta-feira santa? . . . Oh!
O conde de Saint-Malô aprumou-se ainda mais sob os bofes bordados da sua camisa de rendas. Bouvier cerrara os lábios revoltado, e Gabriela assentara sobre o doutor o seu lorgnon de tartaruga.
— Negar talento ao pobre moço!. . . Com efeito!
Cobalt sorriu, levantou-se, e, indo colocar-se entre eles, respondeu com a sua fleuma habitual, afagando o ventre:
— Sim senhor, sim senhor; não foi o talento, nem foi a ilustração do seminarista, o que impressionou Paris inteiro. Há por aqui milhares de teólogos, muito mais fortes na matéria e mais oradores do que Ângelo, que não conseguem abalar um só dos seus ouvintes.
— Então o que é que foi?... interrogou a formosa Gabriela, sem abaixar o lorgnon.
— Uma cousa muito simples, minha querida senhora, uma cousa extremamente simples. . .
Todos se aproximaram dele, vencidos pela curiosidade.
— Que foi — Que foi?— Que foi então?. . .
— A sinceridade, respondeu o médico.
— A sinceridade?. . . exclamaram em coro.
— Sim, meus caros amigos. A verdadeira convicção nas suas crenças, o verdadeiro sentimento do que ele afirmou no púlpito. Foi só daí que lhe veio aquela poderosa e dominadora eloqüência. Ângelo falou mais com o coração do que com a cabeça, e só por isso Paris o ouviu tão comovido.
E depois de uma pausa:— Sim, porque é preciso confessarmos uma cousa, meus idolatrados amigos: os parisienses de hoje dispõem de muito espírito e de muita enciclopédia, mas, em questão de sentimento e de sinceridade. . . são de uma pobreza franciscana.
— Não é tanto assim!. . . arriscou Artur.
— Nós, os parisienses de hoje, prosseguiu o médico, somos muito corteses, muito engraçados, sim senhor, mas. . . falsos e hipócritas como ninguém. . .
— Ora essa, doutor!. . . resmungou o conde com um trejeito de ressentimento.
Cobalt acrescentou, torcendo para baixo a linha fria da sua boca barbeada:
— Paris admirou em Ângelo o que Paris já não possui e só por isso considera extraordinário. Foi o assombro do homem desfibrado e gasto, produzido pelo homem ainda forte e perfeito. Admirou a fresca e delicada flor do sentimento, que ele supunha há muito tempo extinta; admirou esse estranho Ângelo como se admirasse uma raridade preciosa, uma das nossas armaduras dos tempos gauleses por exemplo.
— Não sou dessa opinião! opôs Gabriela, voltando o rosto.
Alzira, que não deixara o canto do seu divã, ia cada vez mais se mostrando empenhada no que dizia o médico. Agora tinha o cotovelo fincado na almofada, a mão amparando o rosto, e os olhos espetados no teto.
— Era muito natural, continuou aquele; muitíssimo natural que, em meio de uma sociedade devassa, em meio da França da Pompadour, aquele verbo sincero, ingênuo, convicto e apaixonado, a todos fulminasse, como se fora ele raios de luz vingadora enviada diretamente por Deus. Paris, meio eletrizado de Champagne, havia adormecido embalado por uma canção de Bouflers, guinchada por qualquer espalier do teatro de Audinot, e acordou estremunhado no dia seguinte à voz cristalina e matinal de uma criança, que vinha repetir em linguagem bíblica o que há quase dezoito séculos apregoavam em Galiléla os discípulos de Cristo. É natural que se comovesse... e foi isso justamente o que sucedeu. Paris, que há tanto tempo só sabe fazer uma cousa bem feita e com graça,— a orgia,— ficou embasbacado defronte da casta e simples palavra de um pobre seminarista sem pretensões. Nada mais justo! Mas o que lhes afianço, meus amigos, é que, se o simplório do padreca visasse a qualquer efeito; se desconfiasse, ao menos, da impressão que ia produzir no público, a ninguém teria comovido. Se ele conhecesse a sociedade que hoje o aclama; se ele tivesse tido a menor aspiração de glória; se ele não fosse, enfim, coitado! mais inocente e mais puro do que a menina mais inocente de Paris, juro-lhe que não conseguiria o triunfo que obteve. O choque foi grande, porque foi inesperado. Os parisienses morrem pelo imprevisto e pela novidade; e ninguém, hoje em dia, lhes poderia proporcionar melhor novidade, do que o singularíssimo caso de um rapaz de vinte anos perfeitamente imaculado e puro!
— Mas, doutor, ele será com efeito tão puro como se diz por aí?... perguntou Gabriela em ar de riso. Não creio!
— O que há de mais puro, confirmou o médico.
— Um homem virgem em pleno século dezoito! . . . Qual! disse Sofia Verrière, soltando uma risada. Também não acredito!
— Nem eu! reforçou Margarida, sem rir.
— O Dr. Cobalt exagera com certeza. . . observou Gabriela.
— Não exagero, tornou o materialista; e digo mais, que ele nenhum mérito revela com semelhante raridade, porque tal pureza não é obra sua, mas sim de frei Ozéas.
— Mas, afinal, perguntou Alzira, saindo da sua abstração e encaminhando-se para o doutor; afinal, qual dessas mil e uma lendas, que correm por aí a respeito de Ângelo, é a verdadeira?
— Quais sejam as mil e uma, não sei. . . disse o médico, sentando-se no meio do grupo; mas a verdadeira é esta que vou contar:
— Pois venha a lenda!
— Venha a lenda!
— Atenção!