Quando Bouflers chegou à rua, lançou para o palácio de Alzira um olhar de indiferença e disse, cruzando a capa sobre os ombros:

— Ora! Não perdi grande cousa! Alzira e o marquês que vão para o diabo!

E depois cantarolou, seguindo em direção da tavolagem do conde de Charolais, príncipe de sangue:

"Corramos ao

jogo,

Que o provérbio

diz:

Amor sem ventura,

— É jogo feliz!..."

Mas, ao dobrar a esquina, o marquês, que desgalgara a escada a quatro e quatro, assomou à porta da rua e gritou-lhe, correndo:

— Olá! Ó poeta bêbado! Se não és um covarde, espera!

Bouflers voltou-se incontinenti e levou a mão aberta sobre os olhos.

— Quem é?!

Reconheceu o marquês, e perguntou com impaciência:

— Que queres de mim, basbaque?. . .

— Castigar-te, miserável, como se castiga um perro!

— Ah! Ah! Chegou-te afinal a indignação?. .. Ainda bem! (E desembainhou a espada). Vá lá! Antes tarde do que nunca!. . . Já fizeste a tua oração, bruto?. . . Não te quero despachar para a eternidade com a alma suja! Vamos! Dei-te tempo de sobra!

— A rua é escura e deserta!... considerou o marquês. Não precisamos ir mais longe. Aqui defronte da porta de Alzira, temos a claridade suficiente. . .

Aproximaram-se da porta, procurando colocar-se no foco da luz que vinha do corredor.

— Vê lá onde queres que te fira, fanfarrão! exclamou Bonflers pondo-se em guarda.

Artur Bouvier, o conde de Saint-Malô e o Dr. Cobalt tinham descido a escada do palácio.

As damas o seguiram.

— Marquês, disse o conde, tem em mim uma testemunha.

— E eu por ti, Bouflers! exclamou Artur.

— E o médico, pronto! acrescentou Cobalt.

— Não é preciso!... faceciou Bouflers. De qualquer modo se mata o cão! . . .

— Defende-te, poeta libertino! bramiu o marquês; porque a minha intenção é matar-te!

O outro retrucou, aparando-lhe destramente os golpes:

— Antes guardasses tanto empenho para defender tua mulher, alma de Menelau!

E gritou, caindo-lhe em cheio:— Toma!

Florans desviou o tiro e fez-lhe pontaria de fundo. — Toma tu lá este. em paga da tua insolência, bandido!

Mas Bouflers soltou uma risada, e, depois de um salto para trás, desferiu-lhe um bote certeiro, que lhe atravessou o peito.

— Ai! gemeu o marquês

E caiu estatelado no chão.

— Já?... perguntou o poeta, inclinando-se. É

pena! Principiava a tomar interesse pela brincadeira!

E tirou do bolso o seu lenço de rendas, para limpar a lamina da espada que escorria sangue.

Alzira acudira com um grito e lançara-se de joelhos ao lado do amante, beijando-lhe a fronte.

— Meu bom amigo, dizia entre soluços; perdoe-me! perdoe-me! Oh! Quanto sou desgraçada!

Bouvier, o conde e o médico aproximaram-se também e cercaram o ferido.

— Ai! Eu morro! gorgolejou o marquês, aflito virando a cabeça de uma banda para outra.

— Agradece-o a esse demônio que aí tens a teu lado! . . . exclamou Bouflers, lançando fora o lenço com que limpara a espada.

E voltando-se para as damas: — Boas noites, gentis mulheres!

Depois falou aos outros: — Cavalheiros, boas noites!

E bateu no ombro de Artur:— Obrigado, Bouvier!

Em seguida traçou a capa e perdeu-se na sombra da rua, cantarolando de novo:

Corramos ao jogo,

Que o provérbio

diz:

Amor sem ventura,

— É jogo feliz!..."

E desapareceu.

— Marquês! marques! chamava o conde de Saint Malô, enquanto Alzira, desesperada, levantava soluçando os braços para o céu.

— Ó meu Deus! ó meu Deus! lamentava-se ela. É mais um que me vai pesar na consciência! É mais um que morre por minha causa!

Nesse instante, do lado contrário ao que Bouflers tomara, surgiam na treva da noite dois vultos negros, que lentamente se aproximavam, silenciosos e tristes como duas sombras.

Vinham envoltos, da cabeça aos pés, em grandes capas talares, que lhes davam ao aspecto um tom sinistro.

— Anda, meu filho. . . dizia um deles ao companh eiro. Tem resignação, e apresse os passos, que precisamos alcançar a diligência de Raismes, para chegarmos a Monteli antes de raiar o dia. . .

— Sim, meu pai. . .

— Ai! gemeu de novo o marquês, debatendo-se no seu estertor. Morro sem confissão! Morro sem confissão! . . .

Ouvindo isto, um dos dois embuçados precipitou-se sobre o moribundo, exclamando aflito:

— Que vejo?.. . Um corpo coberto de sangue!

E, arriando o capuz, para mostrar a sua veneranda cabeça de cabelos brancos, interrogou ao grupo que o cercava:

— Quem feriu este homem?

— Um adversário em duelo. . . murmurou o próprio marquês. Ai! morro! morro!

O misterioso velho arrancou do seio um crucifixo, e levou-o com a mão trêmula à boca do agonizante.

— Pede a Deus perdão das tuas culpas. . . segredou ele com a voz comovida. Entrega-lhe a tua alma em plena confiança, porque eu rogarei por ela ao Senhor misericordioso!

E ouviu-se o débil sussurro de um gemido de amor esvoaçar entre os lábios do moribundo.

Era o nome de Alzira, que ele chamava pela última vez.

O médico abaixou-se para auscultar-lhe o coração.

— Está morto. . . disse.

Houve uma triste concentração em que se ouviram prantos abafados.

E o negro vulto de barbas brancas pôs-se a rezar, ao lado do cadáver, com as mãos postas, o pálido rosto pendido sobre o seio.

Entretanto, Alzira, num transporte de aflição, correra a ter com a outra sombra, que se quedava à distancia, de cabeça baixa e rosto escondido sob o capuz, e exclamou entre soluços, estendendo-lhe os braços suplicantes:

— Meu padre! Meu padre! Sou eu a culpada de tudo isto! Sou muito, muito desgraçada! Peça perdão a Deus por mim!

O vulto se agitou e tremeu todo, através do mistério da sua negra túnica.

Ouvia-se-lhe o ansioso arquejar do peito.

Depois, como se precisasse de ar, arremessou para traz o capelo do hábito e recuou aterrado.

Alzira soltou um grito.

— Ele!

E teria caído no chão, desfalecida, se Ângelo a não amparasse nos braços.

Acudiram todos e se apoderaram dela.

O presbítero puxou de novo o seu capuz sobre o rosto, deu o braço à outra sombra, e começaram os dois de novo a seguir o seu caminho.

Ângelo tinha afinal compreendido bem a verdadeira causa da sua perturbação.

A sua perturbação era o amor.