Passado o abalo da primeira impressão, um constrangido silêncio fez-se entre Ângelo e Ozéas.
O presbítero tinha os olhos baixos, como um criminoso, e o outro acompanhava-lhe os menores movimentos, tremulando a cabeça.
— Sim, meu filho. . . disse o velho afinal, venho em teu socorro!... Dize-me como estás e dize-me o que sentes. . .
Ângelo não ergueu os olhos.
— Eu?... Nada!... tartamudeou. Creio que estou bom. . .
— E eu tenho a certeza do contrário, meu pobre Ângelo . . .
E Ozéas acrescentou a um gesto negativo do discípulo:
— Ah! Não tentes enganar-me!... Tens, seja qual for, uma preocupação bem grave, que inutilmente procuras esconder aos meus olhos! . . . Há alguns instantes que te observo, que acompanho todos os teus movimentos, cheguei mesmo a ouvir muitas palavras do teu monólogo de louco! Ah, sim! tens uma dor secreta, e eu hei de arrancar-te e destruí-la, custe o que custar!... Vamos! É melhor que fales com franqueza!
— Nada! Não tenho nada!. . . insistiu o pároco, visivelmente perturbado.
— Negas?!... Desconheço-te, Ângelo!... Já não és o mesmo casto discípulo, que eu cerquei durante vinte anos com a dedicação dos meus desvelos e da minha fé!. . .
— Creia que se ilude, meu pai!. . .
— Tu é que me queres iludir, Ângelo. . . Ah! mas não o conseguirás! Não suponhas que vim aqui às apalpadelas. . . Tenho-te acompanhado de longe, desde que a enfermidade me obrigou a separar-me de ti. . .
E recuperando de súbito o seu antigo ar enérgico, exclamou:
— Exijo que me confesses abertamente a causa deste teu estado atual!
— Mas...
— Exijo!
— Mas que lhe hei de dizer?. . .
— Fala-me, por exemplo, das conseqüências daquele estranho sobressalto, que te aconteceu quando celebravas a tua primeira missa. . . Ainda até hoje não me deste conta disso!. . .
Ângelo estremeceu, balbuciando alguns sons ininteligíveis .
E Ozéas acrescentou:
— Sim, nunca me confessaste que ele foi provocado por uma mulher que se achava na igreja. . .
O pároco estremeceu ainda.
— E por que tremes agora?.. . bradou o velho. Por que abaixas os olhos?... Por que desse modo empalideces?. . . Por que as lágrimas estão a correr-te pelas faces?. . . Ah! eram bem fundados os meus receios de então!... são bem certas as minhas desconfianças de agora!.. .
— Desconfianças?... De que?...
— De que Alzira te preocupa ainda!.
— Alzira já não existe. ..
— Sim, já não existe para o mundo... Quem sabe, porém, se ela não continuará a existir para a tua imaginação enferma e desvairada?...
O pobre maço tomou-lhe as mãos.
— Por que diz isso, meu pai?. .
— Porque vejo e compreendo que uma idéia fixa te rói o cérebro e devora-te a razão! Quero saber o que é! Fala!
Houve uma pausa.
Ozéas prosseguiu, mudando de tom:
— É a primeira vez que bato ao teu coração, e ele se não abre logo de par em par!. . . Compreendo: já te não possuo. . . já não és o mesmo que foste para mim... já não és o meu filho submisso e casto!... Perdi tudo! Paciência! Nada mais me resta a fazer aqui... Adeus.
Ângelo prendeu-o nos braços.
— Perdoe! perdoe, meu pai!
— Então fala!
— Ah! se soubesses quanto eu sofro!.
— E não obstante ainda há pouco sustentavas o contrário. . . Bem vês que tenho razão!. . .
— Sim, mas, por amor de Deus, não exija que eu fale!...
— Ao contrário, quero que me abras o teu coração com toda a confiança, quero que mo despejes em confissão, como o fazias dantes!
— Mas é tão estranho o que se passa comigo!. . .
— Conta-me tudo!
— Sou um imperdoável pecador!
— Maior serias se não me falasses com sinceridade! . . .
— Sou um desgraçado!. . .
— Não tanto, como se eu não estivesse agora a teu lado, disposto a salvar-te!. . .
— Mas o meu crime é traiçoeiro. . . só se apodera de mim durante a inconsciência do sonho. ..
Ozéas, fixou-o, e, concentrando a atenção, disse depois surdamente:
— Continua...
— Vou dizer-lhe tudo com franqueza!...
E Ângelo olhou para os lados, e acrescentou, abafando a voz:
— Vou contar-lhe tudo. . .
— Fala, meu filho. ..
— A perturbação que eu senti no dia em que me ordenei, era com efeito causada por uma mulher. . .
— Alzira...
— Sim. . . confirmou o pároco, meneando lentamente a cabeça. Sim. . . Alzira. . . Soube logo que esse era o seu nome, em volta de mim na igreja todos o repetiam quando ela me fitava da tribuna. . .
— Eu notei. E depois!...
— Só a tornei a ver naquela noite em que deixei Paris. . . E no dia em que ela veio procurar-me aqui.
— Sei. Adiante.
— Sua imagem, porém, nunca mais me saiu da memória, até que, uma noite, sonhei que vinham buscar-me para socorrer um moribundo. ..
— Não foi sonho, foi a realidade. . .
— A realidade?!... exclamou Ângelo, com os olhos pasmados. Então é real que a estreitei nos meus braços?. . . Então é real que a ressuscitei com os meus beijos?! . . .
— Isso é que já foi sonho, ou melhor, delírio!
— Meu Deus! onde começa o sonho?... onde termina a realidade?. . . Alzira teria com efeito vindo buscar-me no dia seguinte ao seu enterro?.. . (Ozéas redobrou de atenção). Eu ter-me-ia transformado em um cavalheiro e ela em formosa dama? Teríamos saído por aí afora, montados em fogosos cavalos, que nos levaram a mundos desconhecidos para mim?. . . Teria eu percorrido com ela todas essas paragens maravilhosas?. . . Teria eu provado de todos os venenos do prazer e bebido de todos os vinhos do amor?. . .
Ozéas apoderou-se do braço de Ângelo.
— E ela continua a voltar?. . . exclamou, sobressaltado.
— Sim, sim, volta sempre! Ainda não faltou uma só noite até hoje! Mal adormeço, ela vem logo e carrega comigo! É ela a pessoa com quem eu mais convivo neste mundo.
— Neste, não! no mundo da tua loucura!
— E por que acreditar que este é o verdadeiro e o outro não?!... Ambos me ocupam longas horas o espírito, ambos palpitam de sentimento e de verdade, ambos tem as suas consolações e os seus desgostos!
— Mas, meu filho, não te lembras que cresceste a meu lado, que viveste sempre comigo?. . .
— Também no outro mundo tenho reminiscências de uma vida inteira. Lembro-me do colégio, das férias passadas com parentes, dos afagos de meus pais... sim! porque lá não sou um miserável enjeitado.. . tenho família e tenho amigos... E' uma vida completa e perfeita! Esta outra existência obscura, de pároco de aldeia, apresenta-se-me então ao espírito como um sonho extravagante e ridículo!. . .
— É preciso que Alzira nunca mais te apareça! bradou o velho.
— Ah! disse Ângelo. Creio que só com a morte deixarei de vê-la!. . . E, ainda assim, quem sabe?... Quem sabe se Alzira não virá ter comigo, quando esse outro sono me adormecer para sempre?... E quem poderá afirmar que eu vivo?. . . quem me dirá que não sou, como ela, um pobre espírito errante, um espectro, uma sombra, condenado a nunca repousar?. . .
— Cala-te, louco! Não a verás hoje!
— Ela virá logo que eu adormeça!. . .
— Hoje não dormirás!
— Ela me espera!. ..
— Desgraçado! Já não és senhor de tua vontade?.. . Acaso negociaste tua alma?...
— Não, meu pai, minha vontade é a sua... minha alma pertence a quem ma confiou, pertence a Deus!
— Pois então, obedece-me! Põe o teu capote e o teu chapéu, toma um alvião e uma enxada, e acompanha-me!
— Aonde vamos?
— Depois o saberás. Ajoelha-te e pede ao Criador que te proteja!
O discípulo obedeceu.
E o velho acrescentou, erguendo os braços e os olhos para o céu:
— Ó meu Deus! Ó senhor misericordioso! não nos desampareis nesta terrível excursão que vamos empreender! . . .