A Mulher na agricultura, nas industrias regionaes e na Administração Municipal/Missão agricola da mulher
«As mulheres lusitanas tratam da casa e da cultura dos campos; os homens tratam da guerra e da rapinage.»
JUSTINO.
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Convencionalmente se acordou em considerar Portugal um país agrícola, sabendo todos como a agricultura quasi por toda a parte se conserva sujeita á rotina, num estado, por assim dizer, embrionário.
Possuindo um clima e um sólo que se prestam ás mais variadas culturas, tanto as que fazem parte dos países tropicais, como as que só com o frio se dão bem; tendo regiões produtoras dos melhores vinhedos, dos mais afamados pomares, dos mais dôces e variados frutos, como dos mais úteis cereais; podendo ter uma silvicultura modelar, porque não nos faltam para campos de experiência as montanhas ásperas onde se recorte a aristocrática linha do abeto, nem vales carinhosos ao sol morno do sul onde a palmeira agite brandamente os ramos exóticos; e terra privilegiada para todas as culturas florais — forçoso é confessar que na agricultura pouco ou nada temos feito que bem possa demonstrar as qualidades de inteligência, de trabalho persistente e previdente que noutros ramos caracterizam a nossa raça.
Portugal deveria ser de ha muito o delicioso ponto intermédio entre a natureza áspera da velha Europa central e o sonho brando da cariciosa e perturbante paisagem dos trópicos.
É a última estação de repouso para quem deixa a linda e intelectual Europa, que ha milhares de anos defende com energia o predomínio da civilização orientadora dos homens, e é o primeiro passo para se entrar nessa terra pujante que, ha quatro séculos, os homens veem procurando e fecundando com o seu doloroso trabalho incendido pelo fogo sagrado da ambição.
Tudo nos indica dentro da lógica e da natureza para sermos um recanto paradisíaco do mundo, onde a vida decorra faca e atraente para os que estão e para os que nos procuram na ânsia de encontrar o momento fugidio de felicidade e de paz.
Unicamente tem faltado uma educação disciplinada e forte, que trace aos homens o caminho e lhes modere a acção, sem desfalecimentos nem ambições perturbadoras.
Povo de imaginativos e de agitados, é tempo de encontrar a forma externa da acção, orientando toda a prodigiosa actividade da raça e toda a ambição sonhadora da sua alma aventurosa, no anseio comum de ter a mais linda, a mais rica, a mais feliz e respeitada das pátrias.
Para realizar o que á maior parte da gente parece uma utopia, na crise de impotência moral, que traz o negativismo, temos o direito de esperar que a mulher portuguêsa, a quem a História confiou o papel primacial de guarda e fixadora das qualidades excepcionais do nosso povo, que uma persistente emigração ameaçava descaracterizar, entre com todo o seu entusiasmo e toda a sua fé ardente na campanha que énecessário manter para a valorização da terra mais digna de ser amada.
Embora inconscientemente — é com mágua que o confessamos — a mulher em Portugal tem, por instinto, cumprido a parte moral da sua grande missão, ligando, duma forma ás vezes branda, mas segura, a tradição do passado á ânsia da esperança dum futuro que não deslustre aquele.
É tempo, porém, de reconhecer ela própria o seu esfôrço e compreender quanto a pátria necessita do seu trabalho inteligente, da sua grande acção benéfica, da sua iniciativa e do seu amor.
A hora é de sacrifício, mas é, sobretudo, de fé. E quando é necessário tê-la para revolver os próprios montes, quem duvida das qualidades de energia e de persistência, sem desfalecimentos, da mulher ?
Não ha defeitos que se não atenuem, nem qualidades que se não desenvolvam com a acção persistente da educação, orientada e disciplinada para o mesmo fim; a Alemanha nos está dando hoje a monstruosa prova da fôrça que a idéa e a palavra em si contêm.
A acção disciplinadora da educação modifica em duas gerações toda a estrutura moral dum povo e assim como conduz à loucura colectiva motivada no militarismo germânico, tambem conduz ao lindo gesto heroico da Itália de hoje, como levou á carinhosa e correcta sociabilidade do povo suisso.
Nós, a geração que demoliu o passado asfixiante e escancarou as portas dum futuro mais digno e mais honesto, temos o dever de não deixar passar a onda tumultuosa sem lhe fixar o ponto luminoso onde todos devem pôr os olhos, indicando o caminho que seguramente a êle nos hade conduzir.
Não ha país civilizado que despreze hoje o trabalho e a acção inteligente de metade, ou mais, da sua população, só porque a natureza a categorizou no sexo feminino; não é pois de estranhar que nós apelêmos para a mulher portuguêsa, esperando que, observando-se e compreendendo-se a si própria, tome o lugar que lhe é devido na marcha para o futuro mais próspero de Portugal.
Em toda a parte, em todas as épocas, a mulher tem despendido no cultivo da terra uma grande parte do seu trabalho, mas a sua acção, obedecendo ás leis pesadas que fazem o predomínio da fôrça, tem sido mais trabalho de servidão do que consciência de deveres e direitos.
Todos os que conhecem no nosso país o trabalho agrícola, sabem quanto a mulher é utilizada para o serviço da cultura e principalmente das colheitas, sabendo tambem quanto o seu labor é desprezivelmente pago, mesmo que se iguale ao do homem.
Nas regiões de forte emigração masculina, como o Minho, todo o trabalho agrícola está a cargo da mulher, sendo apenas para lamentar que ela persista sem educação nem orientação scientífica na rotina duma cultura que não se harmoniza já com as necessidades da vida moderna.
E o que dizemos do Minho pode da mesma forma aplicar-se ao Algarve, ás Beiras e a Traz-os-Montes, como a todas as regiões em que a pequena propriedade rural, sem o laço benéfico do cooperativismo civilizador e inteligente, não deixa ao trabalho do homem campo onde desenvolva as suas aspirações de fortuna.
Ao tomarmos para nós o encargo de trazer a êste congresso uma tese de tamanha responsabilidade, não pretendemos impelir a mulher para um campo de acção que esteja fora da tradição e dos hábitos femininos, porque sempre o trabalho agrícola tem sido desempenhado pelo nosso sexo em condições dolorosas e pesadas; mas simplesmente pretendemos dar a êsse labor uma forma mais moderna, mais útil e mais prática, dignificando por assim dizer a missão da mulher que o venha a exercer com a consciência dos seus deveres e dos seus direitos.
Pretendemos com as nossas palavras — que só terão valor apoiadas pelos votos dêste congresso, afirmação brilhante das tradições regionalistas do país — chamar a atenção do Govêrno para a necessidade urgente de encarar a sério a instrução prática da mulher e a utilização das suas enormes faculdades de trabalho, como fazer-lhe compreender, a ela, que o futuro da pátria está virtualmente ligado ao seu próprio progresso intelectual e moral, como ligada está pela tradição e pela necessidade á terra, sem a qual a família, de que é a guarda, tem frágeis raízes nacionais.
A terra já não é, como nos tempos idos, o símbolo do conservantismo ignorante; hoje necessita do impulso inteligente e scientífico para se valorizar.
E á mulher, mais do que ao homem, corre o dever de solucionar o problema tremendo do exodo dos campos, afastar, sorrindo, o perigo do urbanismo, de que há tanto tempo se fala.
A mulher hade voltar a ser, quando se escude, como deve, na sciencia, a mãe de familia, na grande, na superior acepção da palavra. Não a escrava do lar, a serva obscura do clan, mas o cerebro raciocinador, o coração previdente, o espirito orientador e progressivo.
Ela será, quando bem se compenetre do seu alto destino, a educadora, que hoje lhe mandam ser, sem lhe darem conhecimentos para isso. Será de novo a verdadeira senhora da terra, que primeiro regou com o seu suor e fez florir com o seu trabalho.
Porque, emquanto o homem primitivo procurava na caça, na pesca e na guerra a satisfacção dos seus instintos grosseiros, iniciando o direito de conquista, a mulher, guarda do tugurio em que se abrigava a familia, iniciando a cultura, a industria rural, a tecelagem, a domesticidade dos uteis animais, preparava a hora solene da civilização.
E como os extremos se tocam quasi sempre, é no extremo primitivismo e na extrema civilização que à mulher é confiado o desempenho do mesmo papel progressivo.
De facto, nos países mais avançados em civilização é a mulher agora chamada ao interesse inteligente pela agricultura. Ao seu amor é entregue a questão maxima da fixação das futuras gerações á terra fecunda e bôa, «onde havemos de encontrar a ressurreição e a vida», na frase de Tolstoi.
Após uma campanha que não tem mais de vinte anos, já a Alemanha contava, antes da guerra, alem de numerosas escolas domesticas agrícolas esparsas por todos Estados da Confederação, centenas delas anexas aos pensionatos femininos.
Alem disto, existiam quatro escolas superiores de economia rural femininas na Saxonia, em Hesse- Nassau e na Baviera.
Não se contentando com a instrução divulgada por meio de escolas, tambem no imperio germanico se difundia a bôa palavra agricola, recorrendo-se a um grande número de associações femininas, organizadas com o fim de melhorar e aperfeiçoar o lar, e fazer da mulher uma preciosa auxiliar do lavrador.
A Bélgica, que antes desta monstruosa guerra tinha o ensino domestico modelar, começou a organização desse trabalho em 1889, dirigido pelo director geral da agricultura M. A. Proost. A primeira escola foi fundada em 1889 e eram inumeras as que se encontravam no laborioso país, que tão alto subiu na consideração mundial com o seu immerecido martirio.
Foi o inspector principal da agricultura Mr. Paul Du Vuyst — que bem se pode chamar a alma do movimento em favôr da instrucção da mulher do campo — quem organizou a admiravel campanha no seu duplo aspecto: pela escola e pela associação:
Sobre o primeiro ponto de vista a Bélgica tem três tipos de escolas, a saber:
1.° Secções domesticas agricolas, destinadas a dar ás raparigas a instrucção geral e ao mesmo tempo o amor á profissão agricola;
2.° Escolas domesticas agricolas, que administram ás alunas uma instrucção agricola sólida;
3.° Escolas superiores de agricultura, cuja missão é dar ás raparigas uma instrução agricola superior, habilitando-as a tomar parte na gerencia de propriedades ou grandes explorações rurais e preparando-as para serem professoras das escolas domésticas agrícolas.
Ha tambem na Bélgica escolas moveis de ensino agricola sob oponto de vista doméstico.
Nem todas estas instituições são do Estado, como é facil de compreender. O Departamento da Agricultura subvenciona 11 escolas e 4 secções domésticas agricolas. Os povos verdadeiramente civilizados fiam mais de si proprios do que da acção dos Governos, que por sua propria natureza tem de ser conservadora, lenta, mais dispendiosa e de maior responsabilidade. A iniciativa particular, mais desembaraçada de peias e de responsabilidades, tem por missão, dentro das colectividades cultas, desbravar o caminho por onde depois os governos seguem com segurança e com a largueza que as forças de que dispôe lhe autorizam.
Assim, na Bélgica havia muitas escolas devidas á iniciativa particular, ás associações agrícolas e aos pensionatos femininos.
As desta categoria são, em grande parte, subsidiadas pelo Estado e pelos municipios.
Vêja-se agora a obra das associações dos lavradores na Bélgica, que mademoiselle Donhat, uma autoridade no assunto, diz formarem «uma extensão do ensino doméstico agrícola».
A Bélgica, cuja superficie é quasi igual á do Alentejo, contava antes da guerra 212 associações de lavradoras.
Observando o crescimento destas associações em quatro anos de vida, avalia-se melhor o seu alcance moral.
Para não ser fastidiosa com uma longa enumeração estatistica, basta só dizer que no ano de 1906 havia apenas duas associações com 115 membros, que promoveram quatro conferencias ouvidas por 90 pessoas. Pois em 1906 as associações passam a ser 65, com 6162 membros, que promoveram 212 conferencias ouvidas por 12:447 pessoas.
Em quatro anos não pode tirar-se melhor resultado duma propaganda! Isto mostra apenas que ela correspondia a uma necessidade imediata.
A esta enorme actividade de propaganda ha ainda a juntar os concursos agrícolas e a publicação de jornais de agricultura.
Os concursos agrícolas — escreve ainda Luise Donhat, ilustre professora duma importante escola doméstica agrícola — constituem para a região um excelente método de provocar rápidos progressos nos diversos ramos das atribuições da lavradora. Como são esses concursos? Como educam e ensinam? «O tipo de concursos que nestes últimos tempos melhores resultados deu é o dos concursos de estábulos. O juri vae fazer uma primeira visita aos estábulos dos concorrentes inscritos, para indicar os melhoramentos a introduzir. Em segunda visita distribue os premios, conforme as indicações e os conselhos foram ou não seguidos. O que se tem feito para os estábulos, poderia fazer-se para as hortas, leitarias caseiras, capoeiras, arranjo e higiene da casa do lavrador, etc.»
«As conferencias realizadas naquelas 212 associações de mulheres versaram assuntos dos mais variados, mas todos convergindo ao mesmo fim: o levantamento do bem estar material e moral da sociedade, das familias agrícolas e por tanto do operario do campo e de toda a população rural.»
A Italia tem hoje bôas escolas agrícolas e de jardinagem para mulheres. O mesmo se observa na Russia, na Inglaterra, na França, nos países escandinavos, no Japão, etc. Nos Estados Unidos da América do Norte todos sabem quanto representa uma bôa e inteligente lavradora na economía da país.
As avicultoras, com a criação scientifica das suas capoeiras, umas explorando de preferencia a produção dos ovos, outras mandando ao mercado aves de raças escolhidas, outras só cuidando de vender frangos ou galinhas para o consumo imediato, são uma fonte de riqueza enorme para alguns Estados da confederação.
E não sómente avicultoras e floricultoras instruidas são as laboriosas lavradoras americanas. Elas já sabem mandar para o mercado os mais formosos frutos dos seus pomares, elas têm desenvolvido prodigiosamente a industria dos lacticinios, da apicultura e muitas outras.
As lavradoras norte-americanas são uma força inteligente e consciente, com a qual é necessario que os politicos contem.
E são terriveis, quando caem com todo o peso da sua opinião nas urnas de que saem os seus representantes . Porque elas não querem, nos sitios onde podem influir, os mandriões... os zangãos que embaracem o labutar da sua farta colmeia. Repelem os alcoolicos, verberam o crime, a prostituição e a ignorancia.
Os americanos sabem compreender tão bem quanto vale a cooperação inteligente da mulher, que não é raro o agricultor e o criador de gado procurarem para sua companheira mulher que pelo seu curso de agronomia ou de medicina veterinaria pode ser um precioso auxiliar á sua vida de trabalho inteligente.
Isto, que á educação sentimental do latino pode parecer menos poetico, é justamente o que dá a esses casamentos de gente séria, laboriosa e sã, uma unidade de interesses e uma força que não tem a maior parte das frageis ligações sentimentais entre o homem só a produzir riqueza e a mulher só a despendê-la.