Ó doce abismo estrelado, nirvana sonâmbulo, taça negra de aromas quentes, onde eu bebo o elixir do esquecimento e do sonho! Como eu amo todas as tuas majestades, todas as tuas estrelas, todos os teus ventos, todas as tuas tempestades, todas as tuas formas e forças! Como eu sinto os perfumes que vêm das grandes rosas místicas dos teus maios; os eflúvios vibrantes, cândidos e finos dos teus junhos; o grasnar dos teus abutres e o claro bater das asas dos teus anjos! Como eu aspiro sedento todos esses cheiros salgados do mar dominador, essa vida aromai das folhagens, das selvas reverdecidas com os teus orvalhos revigoradores, com a tua esquiva castidade misteriosa!
Ah! como eu te amo, Noite! Como a tua eloqüência muda me fala, me impressiona e me chama, Aparição seráfica, fabulosa irmã do Caos e das Legendas!
O peito cheio de vibrações ansiosas, a alma em cânticos de amor, os olhos iluminados por esplendores secretos, como é maravilhoso vagar no solene tabernáculo dos teus silêncios, no in pace do teu Sonho!
Como faz bem e tonifica mergulhar profundamente a cabeça nos teus mistérios que deslumbram, adormecer com eles, deixar que a alma se embale neles, vaguear pelo Infinito, tendo todos esses mistérios imaculados como o vasto manto consolador da Piedade e do Descanso!
A tua docilidade e frescura, o teu carinho, os teus afagos, a tua música selvagem, as tuas solenidades augustas, o teu antediluviano encanto bíblico, as monstruosas risadas mefistofélicas dos teus fantasmas tenebrosos são como seres singulares, verdadeiros irmãos da minh'alma.
Mordido de nervosidade aguda, perdido no teu solitário regaço maternal, ó estranha Noite, eu sinto que o cavalo de asas da minha consciência galopa, voa longe, livre, sumindo-se na infinita poeira de ouro dos astros; que os movimentos dos meus braços ficam também livres, para abraçar as Quimeras; que os meus olhos, alegremente felizes, se libertam do carnívoro animal humano, para só fitarem sombras; que a minha boca aspira o Vácuo estrelado, para saciar-se dele, para beber todo o seu luminoso vinho noturno; que os meus pés erram melhor, oscilantes e vagos embora na embriaguez e na cegueira da treva, para melhor se desiludirem de que se arrastam na terra; que as minhas mãos se estendem e se movem largamente, como asas de espontâneo vôo bizarro, para dizerem triunfante adeus por algumas horas às terríveis contingências da Vida!
Perdido nas solidões da tua treva vibram-me as tuas harpas, seduzem-me os teus êxtases, arrebatam-me os teus misticismos.
Com os olhos radiantemente abertos, como se fossem duas curiosas flores de raios celestes, eu noctambulo em silêncio, na concentração de um missionário contemplativo vagando num imenso templo deserto e cheio de sagradas sombras...
Em cima, sobre a cabeça, sinto cantar-me, doce e terna, a fina luz das meigas estrelas, e essa luz arde, chameja melancolicamente como uma alma que aspira...
Dentro de mim uma sensibilidade incomparável vibra e vive como essas estrelas delicadas e meigas.
Todos os quebrantos da noite fascinam-me, enlevam-me e eu me surpreendo arrebatado por uma transfiguração que não sei de onde parte, que não sei de onde vem, mas que me enche a alma como de uma crença maior, como de um revigoramento de marés picantes, como de um largo e belo sopro natal de revivescências juvenis!
E quando levanto acaso religiosamente os meus olhos, no meio da candidez da solidão noturna, para o azulado e magoado estrelejamento do céu e vejo o céu suntuoso e mudo com os seus astros, os meus olhos, felizes e gloriosos por te olharem, Noite, exilam-se cada vez mais na tua mudez, vivem cada vez mais do teu deslumbramento e do teu gozo, inteiramente órfãos de todas as outras perspectivas, como dois príncipes hamléticos exilados para sempre numa sombria, mas inefavelmente amorável região de luto.
Quando um pesadelo sinistro cavalga o meu dorso, me oprime o peito e os rins, tira-me a respiração — pesadelo gerado do Nada que nos envolve a todos — a tua fascinação astral é para mim um alívio supremo, a tua liberdade ampla é para mim larga emanação vital.
As tuas sutilezas me acordam, os teus stradivarius me espiritualizam, os teus preciosos ritmos me afinam...
Ó Noite! inimiga irreconciliável dos que não te sabem engrinaldar com os lírios das suas saudades, encher com os seus soluços, estrelar com as suas lágrimas! Hóstia negra dos Sonhos brancos que eu eternamente comungo! Tu que és misericordiosa e que és boa, que és o Perdão estrelado suspenso sobre as nossas desgraçadas cabeças, tu que és o seio espiritual dos miseráveis seres, embalsama-me com os teus ósculos perfumados, com o eflúvio da infância primitiva dos teus idílios, abençoa-me com o teu Isolamento, cobre-me com os longos mantos de veludo e pedrarias das tuas volúpias, purifica-me com a graça dos teus Sacramentos.
Fantasista do soturno, do galvânico, do lívido; Colorista do shakespeareano e do dantesco; Mater dos meios tons e das meias sombras, das silhouettes e das nuances; trombeta de Josafá, que fazes caminhar todos os espectros, ressuscitar todos os mortos, máscara irônica de todas as chagas; confessionário de todos os pecados; liberdade de todos os cativos: como eu recordo a galeria subterrânea dos teus mórbidos bêbados, dos teus ladrões cavilosos, das tuas lassas meretrizes, dos teus cegos sublimes e formidáveis, dos teus morféticos obumbrados e monstruosos, dos teus mendigos teratológicos, de aspecto feroz e perigoso de tigres e ursos enjaulados, acorrentados na sua miséria, dos teus errantes e desolados Cains sem esperança e sem perdão, toda a negra boêmia cruel e tormentosa, ultra-romântica e ultratrágica, dos vadios, dos doentes, dos degenerados, dos viciosos e dos vencidos!
E a peregrina boêmia dos teus cães uivantes e contemplativos no amoroso espasmo do luar, dos teus gatos sonhadores, exilados e raros estetas felinos deslizando sutis pelos muros, histéricos da lua, os olhos fosforescentes como a luz de estranhos santelmos!
Noite que abres teus circos funambulescos, cheios de palhaços rubicundos, tatuados de mil cores, de acrobatas de formas e movimentos alígeros e elásticos como serpentes; que expões todo o arco-íris inflamado dos teus bazares, a vertigem de zumbir de abelhas dos teus fagulhantes cafés-cantantes, o olho ignívomo e solitário dos faróis no mar alto e toda essa ondulação de aspectos e sonhos fugitivos, essa nebulosa do rumor e da emoção, que é o teu véu de noiva, que é o teu manto real!
Tu apagas a mancha sangrenta da minha vida, fazes adormecer as minhas ânsias, és a boca que sopras a chama do meu desespero, és a escada de astros que me conduzes à minha torre de sonho, és a lâmpada que desces aos carcavões da minh'alma e fazes desencantar, caminhar e falar os meus Segredos...
Tens uma expressão milenária de Epopéias, um curioso e extravagante sentimento druídico, e como que toda melancolia arcaica da Decadência latina.
No fundo velho e pitoresco do teu Oriente, ó Noite, meu caprichoso e exótico Crisântemo; nos longes dos teus grandes e famosos Frescos ondulam em curvas lascivas e donairosas as românticas e visionárias virgens, os pálidos poetas meditativos, os ascetas lívidos que velam à claridade magoada dos círios, os fascinantes e capciosos Fra Diavolos, os galhardos, zumbentes e coruscantes carnavais de Veneza da tua prodigiosa Fantasia e as quermesses louras e cor-de-rosa dos querubins da Infância, que dormem sonhando, lírios de comovida ternura, meigamente seduzidos e embriagados no delicado e casto regaço do mistério dos sexos.
Ó bendita Noite! dá-me a morte na irradiação dos teus raios, para que eu rompa o selo cabalístico dos teus segredos; dá-me a morte na cristalização dos teus astros, nas auréolas das tuas nuvens, no pesado luxo das tuas constelações, no vaporoso de tuas visões de lagos, na solenidade bíblica das tuas montanhas enevoadas, nas cerradas cegueiras apocalípticas das tuas maravilhosas florestas virgens, quando lentas luas langues florescerem nos céus como grandes beijos congelados de brancas noivas gigantes encantadas e mortas...