Foi num sábado, à noite, que se realizou cerimoniosamente, com toda a pompa de uma festa de província, o casamento da Lídia com o guarda-livros, na Igreja de N. S. do Patrocínio.

Às sete horas parou à porta da viúva Campelo um carro e saltou o Loureiro todo de preto, gravata branca, o cabelo lustroso, repartido ao meio em trunfas, empunhando o seu famoso claque. Estava glorioso dentro da sua casaca de pano fino mandada fazer especialmente para o ato.

Que festa na rua do Trilho!

No quarteirão compreendido entre a rua das Flores e a do Senador Alencar notava-se um movimento desusado de gente que se debruçava às janelas e parava na calçada e nas esquinas para esperar a saída dos noivos. Uma curiosidade flagrante estampava-se na fisionomia dos moradores que assistiam basbaques à chegada dos carros comunicando a sua ruidosa alegria àquele pedaço de rua habitualmente silenciosa e sossegada.

Havia folhas tapetando o chão defronte da casa da viúva onde reinava agora uma estranha aglomeração de pessoas de ambos os sexos, compactas, abafadas, espremidas entre as quatro paredes da pequena sala de visitas.

A noiva estava acabando de colocar a grinalda quando entrou o Loureiro muito teso com um riso amável e desconfiado que lhe arrebitava o bigode espesso. Dois sujeitos, também encasacados, de luvas, foram recebê-lo à porta — “Chegou o homem” anunciou uma voz, e a estas palavras cresceu o zunzum propagando-se por ali fora entre os curiosos que se acotovelavam à porta, na rua.

E logo toda a gente repetiu transmitindo-se a grande notícia — “chegou o noivo!” — e todos os olhares caíram de chofre sobre o guarda-livros transfigurado em herói de comédia.

D. Amanda, muito azafamada, tomou-o pelo braço e conduziu-o à sala de jantar para lhe oferecer um calicezinho de Porto.

Loureiro queixou-se do calor sacando fora as luvas, rubro, com a testa reluzente de óleo, metido num colarinho em folha, todo ele rescendendo opópanax. Nunca ninguém o vira tão bem-disposto, tão lépido, com um ar ao mesmo tempo condescendente e soberano de capitalista sem débito. — “A noiva estava pronta?” — perguntou. E, sem esperar resposta, começou a contar um incidente que lhe sucedera no hotel no momento em que se vestia. Nada, uma infâmia que não lhe atingia a sola dos sapatos. Uma carta anônima contra a ­reputação da Lídia, coisas do Ceará, coisas dessa terra...

Incomodara-se a princípio, o sangue subira-lhe à cabeça ao ler semelhantes torpezas, mas acalmara-se logo, porque não valia a pena a gente incomodar-se por uma carta anônima escrita em péssima letra e, o que era mais, acrescentou convicto o Loureiro, “sem assinatura!”

A viúva não se inquietou, atarefada, suando, muito apertada na sua toalete de seda escarlate, os grandes seios ameaçando romper o corpete, e uma rosa no cabelo. — Calúnias, nada mais, observou servindo o vinho. O guarda-livros emborcou o cálice à saúde da noiva, gabando a boa qualidade do Porto.

A pequena sala de jantar, caiadinha de novo, tinha agora outro aspecto mais asseado e alegre, sem manchas de gordura nas paredes amareladas como dantes, com vasos de flores no aparador, iluminada a vela de espermacete. Sobre a mesa do centro, coberta com um pano novo de riscadinho encarnado, pousavam duas lanternas antigas em forma de sino, jarros, pratos com bolos e garrafas intactas dispostas em simetria. O chão de tijolo ainda estava meio úmido da baldeação que se fizera na véspera. De resto os mesmos móveis de costume: um lavatório de ferro com espelho defronte do corredor, a mesa de jantar, o aparador de nogueira e o guarda-louça, uma velha peça que fora do tempo do marido de D. Amanda.

A verdadeira casa do Loureiro, o ninho em que ele ia passar a lua-de-mel com a Lídia era no Benfica, uma casinha também de porta e janela, mas muito fresca e alegre, nova, ainda cheirando à tinta. Resolvera não fazer festa. Um “copito” de vinho aos amigos, um taco de bolo e o deixassem em paz com a sua “querida”. Tinha feito muitas despesas com o casamento. Da igreja iria diretamente “para a chácara” onde ficava à disposição dos amigos. Isso de pândega em noite de núpcias não era próprio, achava uma formidável maçada. Demais não era nenhum milionário para não contar o dinheiro que gastava.

Uma miniatura, a casinha de Benfica, um sonho de poeta lírico, assobradada, com a sua fachada azul ainda fresca, recebendo em cheio até o meio-dia toda a luz do nascente. Logo à entrada havia uma escadinha de três degraus, de onde se via, lá dentro, nitidamente, como por um cristal muito límpido, a sala de jantar e as bananeiras do quintalejo, de um verde tenro... Sala de visitas, alcova, comunicando com um quarto, casa de jantar, varanda, despensa, quarto para criado, cozinha e quintal, tudo asseado e confortável, com uns tons aristocráticos matizando a compostura graciosa dos móveis, papel claro nas paredes e lustre na sala de visitas.

Concluídas as obras da casa, o trabalho de renovação, Loureiro dera-se pressa em mobiliá-la a seu jeito, conforme as suas posses e os seus hábitos de empregado zeloso e metódico. Não pedira conselhos a ninguém: escolhera ele mesmo os móveis e os objetos decorativos, tudo novo e lustroso, como se tivesse saído da fábrica naquele instante. Mandara vir dos Estados Unidos, por intermédio da Casa Confúcio, um piano americano e uma máquina de costura. E, uma vez tudo pronto, tudo no seu lugar, passou uma revista geral na casa, desde a sala de visitas até o fundo do quintal, admirando com a alma cheia de satisfação a espécie de paraíso que ele próprio criara para si.

— “Sim, senhor, tinha cumprido rigorosamente o seu dever. Estava tudo que nem um brinco! Agora, sim, podia casar.”

Lídia pasmou diante daquele novo mundo que se lhe oferecia à vista. Nunca pensara que o guarda-livros soubesse preparar uma casa com tanta graça. Pela primeira vez na sua vida o Loureiro revelara-se um homem moderno e civilizado. Estava encantada! Já agora não invejava a sorte de Maria do Carmo: o Loureiro podia competir com o Zuza em bom gosto! Quem diria? Supunha o guarda-livros mais tolo, mais ignorante e sensaborão. Agora estava convencida de que o seu homem era capaz de fazer figura em qualquer sociedade. Percorreu todos os aposentos, revistando os móveis, admirando a qualidade fina dos objetos, com exclamações de íntima alegria. Sentou-se ao piano e ensaiou uma escala, achando-o excelente.

— Esplêndido, hein, mamãe? Melhor que o das Cabrais!

Mirou-se ao espelho, numa peça magnífica, de cristal, que o guarda-livros comprara num leilão particular por um preço exorbitante. Subia de ponto a satisfação da rapariga. Esteve quase se atirando ao pescoço do noivo e beijando-o agradecida; conteve-se, porém. A viúva, essa acompanhava a filha, embasbacada, dando graças a Deus por ter encontrado semelhante genro — “Olha isto, menina, olha, aquilo!” dizia, muito gorda, chamando a atenção da Lídia.

Da sala de visitas passaram à alcova. O guarda-livros guiava-as, na frente, explicando os menores detalhes, a procedência dos objetos, o seu valor. — “Oh! a cama!”, saltou a Lídia, sentando-se no belo leito de ferro azul com esmaltes de ouro, armado à inglesa em forma de dossel.”

Achava muito elegante as camas que se estavam usando. Experimentou o enxergão de arame calcando-o com o corpo. Magnífico! A viúva também se sentou um instantinho, e continuaram a visita.

Era quase noite quando se retiraram.

Agora, uma semana depois, num sábado, toda a gente falava no casamento da Campelinho como de um acontecimento extraordinário. A Cam­pelinho, hein? Quem diria!... Uma felizarda! E todos comentavam o fato com ruído, recapitulando a vida inteira da viúva e da filha, lembrando episódios, cochichando malícias, prognosticando o futuro da rapariga, admirando a boa fé do Loureiro. Coitado, ele talvez ignorasse mesmo certos pormenores da vida da Lídia...

Daí quem sabia? talvez fossem muito felizes. Conheciam-se moças malcomportadas que, depois, casando-se, tinham-se tornado verdadeiras mães de família.

O Guedes, da Matraca, esse logo às seis horas começou a beber no Zé Gato mais o Perneta, vomitando todo o seu despeito contra a Lídia que ele cobria de impropérios aguardentados.

Debalde, o Perneta procurava acalmá-lo, o Guedes estava fora de si, com os olhos ensan­güen­tados, esbravejando como uma fera.

— Deixa-te disto, ó Guedes, aconselhava o Perneta. Olha que te podem ouvir, homem!

— Que ouçam, que ouçam, cambada de infames!

E batendo no peito orgulhoso:

— Esse aqui beijou muito aquela tipa, sabes? Não preciso dela para coisíssima alguma, estás ouvindo? Aquilo é uma sem-vergonha muito grande, aquela fêmea!

— Cala a boca, menino...

— Cala a boca, por quê? Pensa você que tenho medo de caretas? Hei-de dizer o que eu muito bem quiser, fique você sabendo!

— Quem te diz o contrário, homem de Deus? O que não é bonito é estares aí a dizer asneiras.

De vez em quando aproximava-se o Zé Gato e suplicava que não falassem tão alto, que na rua se estava ouvindo. Mas o Guedes não atendia a coisa alguma, com o pensamento na Lídia, transbordando cólera, possesso.

Escureceu e ele ainda lá estava no fundo da bodega esvaziando cálices de aguardente, a falar desesperadamente.

Às sete horas dois foguetes queimados defronte da casa da viúva Campelo, no Trilho, deram sinal de que os noivos iam sair. Com efeito, daí a pouco surgiu na calçada Campelinho, caracterizada em noiva, afogada em seda branca, com uma auréola de imortalidade, cabisbaixa, pisando devagar, de braço com a firma Carvalho & Cia.

E àquela aparição levantou-se um rumor em todo o quarteirão. “Já vem, já vem!” era a voz ­geral.

Logo após vinha o Loureiro com a viúva, em seguida Maria do Carmo e um rapaz empregado no comércio, D. Terezinha, o Castrinho, e outras pessoas de mais ou menos intimidade, duas a duas.

O cortejo desfilou a pé, ante a curiosidade indiscreta da vizinhança que se debruçava nas janelas para ver melhor a noiva — “Como aquilo ia orgulhosa!” disse a Justina Proença, uma paraense equívoca, vizinha de João da Mata. — Tão besta é um quanto o outro — murmurou a mulher do barbeiro com um muxoxo.

Moleques com tabuleiros de doces na cabeça acompanhavam o préstito.

De repente houve um fecha-fecha na esquina onde iam dobrar os noivos.

Que é? Que foi? Recomeçou o zunzum mais forte, como um zumbido de abelhas num cortiço e os boatos circularam vertiginosamente. Toda a gente queria saber o que era, o que tinha sucedido. A verdade é que ao aproximar-se o “casamento”­ da venda do Zé Gato, saltou de dentro o Guedes, bêbedo como uma cabra, espumando, sem chapéu e pôs-se no meio da rua a vociferar obscenidades contra a Campelinho mais o guarda-livros.

Um escândalo. Soaram apitos; compareceram guardas de polícia; o Zé Gato saiu à rua para acalmar o borracho; foi alterada a ordem do préstito; a Lídia ficou muito branca debaixo do véu e ia tendo uma síncope; o Loureiro quis avançar contra o desordeiro, mais foi detido por João da Mata...

Afinal de contas, depois de alguns segundos, fez-se a ordem e o “casamento” seguiu em paz, direito à igreja do Patrocínio.

O Guedes forcejava por evadir-se dos braços do Zé Gato e do outro sujeito, que procuravam conduzi-lo à venda.

— Sou eu quem te pede, ó Guedes, vamos. Deixa de tolices rapaz; estás dando escândalo, homem!

— Não vou, porque não quero, está ouvindo? Não vou, porque não quero. Eu hoje faço o diabo!

E agachava-se, e caía para trás e tombava para os lados, sem gravata, os olhos esbugalhados, os cabelos em desordem, como um doido. Foi uma luta para acalmá-lo.

Por fim o Zé Gato mandou vir uma xícara de café sem açúcar, deu-lhe a cheirar limão, e, em pouco, o redator da Matraca dormia beatifi­ca­mente, debruçado sobre a mesa de ferro onde eram servidas as bebidas.

— Coitado! lamentou o vendeiro. Um talento famoso! É um segundo tomo de Barbosa de Freitas...

Cerca de uma hora depois voltaram os noivos com o seu bizarro cortejo de amigos e amigas, mas agora vinham os dois na frente abrindo caminho, conversando baixinho, com um belo ar de velha familiaridade. Nas fileiras do préstito havia um rumor de franca liberdade. Falava-se um pouco alto, ouviam-se risadinhas gostosas, tinha-se perdido a cerimônia grave de momentos antes. A volta não se parecia com a ida. A alegria dos noivos comunicava-se instintivamente aos circunstantes como se na verdade estes compartilhassem da íntima felicidade daqueles.

Outra vez a casinhola da viúva encheu-se que nem um ovo. No meio dos convidados havia estranhos que invadiam a sala sem cerimônia, imis­cuindo-se no tumulto de gente como se fossem amigos velhos, de paletó-saco e gravatas de cores espaventosas.

Ninguém os conhecia, mas ninguém ousava despedi-los, deixando-os ficar, por uma condescendência razoável. Curiosos de ambos os sexos se debruçavam da parte de fora da janela para dentro, espremidos uns contra os outros.

Os noivos tinham-se sentado no sofá, defronte da janela, aconchegados, prelibando as delícias do matrimônio na casinha de Benfica.

Loureiro limpava devagar com o lenço rescen­dendo opópanax o suor que lhe corria em gotas da testa, encarando com supremo orgulho a curiosidade pulha dos circunstantes.

Pousava os pés sobre o tapete deixando ver as meias de seda cor de carne com pintas de ouro.

Lídia estava divina com a sua suntuosa “toalete” de noiva comprimindo-lhe os quadris rijos e carnudos, muito séria, o rosto afogueado.

O guarda-livros contemplava-a de instante a instante com um profundo olhar apaixonado, de dono que acaricia um objeto querido, sentindo-se mais do que nunca irresistivelmente atraído pela formosura sensual da Campelinho.

D. Amanda, sempre muito solícita, veio con­vidá-los para a ceia: que estava pronto o chá, e logo toda a gente enfiou pelo corredor atrás dos noivos sequiosa de cerveja e vinho do Porto.

Um rubor de ocasião solene tomou as faces do Castrinho disposto já a brindar os noivos num grande rasgo de eloqüência demostênica.

A saleta de jantar resplandecia à luz dos dois castiçais de vidro com mangas em forma de sino, colocados nas extremidades da mesa. A um canto, sobre uma mesinha de pinho, uma bateria de garrafas de cerveja desafiava a ganância dos convidados. Houve um assalto à mesa. Todos acercaram-se dela com a avidez de gastrônomos, e, antes que os noivos tomassem assento à cabeceira, já havia alguém sentado no extremo oposto. O Castrinho não pôde reprimir um — oh! de indignação, que felizmente passou despercebido. “— Sentem-se, sentem-se”, ordenava a viúva, inquieta como uma barata à volta da mesa, indicando as cadeiras. Todos se sentaram com ruído, acotovelando-se. Ao lado dos noivos os padrinhos, Carvalho & Cia e a esposa tinham o ar modesto de quem se vê cercado de honras imerecidas. O Castrinho, que não faltava a festa alguma dessa ordem, sentou-se ao centro com uma comoção visível no olhar agitado.

Os curiosos da rua tinham invadido o corredor e assistiam em pé, ao redor da mesa, àquela cena banal, de doze pessoas que comiam bolo à guisa de pirão de farinha; ao todo eram quatorze, mas o Loureiro e a Lídia, por um escrúpulo mal-entendido, apenas provaram o delicioso manjar e cruzaram o talher.

O Castrinho não se fez demorar muito. Quando menos se esperava, ei-lo de pé empunhando o cálice.

— Silêncio, silêncio! advertiu uma voz.

O poeta das Flores Agrestes pigarreou solenemente abrangendo com um olhar vitorioso toda a saleta, e enfiando a mão direita no bolso da calça, com um grande ar de tribuno acostumado a falar às massas, começou:

— Meus senhores e minhas senhoras.

Fez-se um silêncio grave e recolhido, em que destacava apenas, muito de leve, o ruído dos talheres que continuaram a funcionar ativamente.

— Eu faltaria ao mais sagrado dos deveres...

Uma voz: — Não apoiado.

— ...Se neste momento solene, em que toda a natureza veste-se de galas para receber em seu vastíssimo seio os noivos presentes... eu, o mais humilde amigo desta casa...

— Não apoiado...

— ...Não erguesse a minha fraca voz para... para saudar... para saudar o himeneu destas duas criaturas (apontando para os noivos) nascidas “no mesmo galho, da mesma gota de orvalho”... como diria o nosso Casimiro de Abreu...

— Bravo! murmurou o mesmo apartista dos não apoiado numa voz cava, com a boca cheia.

O orador, visivelmente inquieto, sem tirar a mão de dentro do bolso, endireitou a gravata com pancadinhas suaves, e, mergulhando o olhar na fruteira, continuou:

— Sim, meus senhores... e minhas senhoras, o casamento é a base de toda sociedade civilizada; o casamento, como dizia certo escritor, cujo nome não vem ao caso citar... o casamento é a mais nobre de todas as instituições, e o homem que se casa dá um passo para o infinito, isto é, para Deus!...

Uma salva de palmas cobriu as palavras do Castrinho, que agradeceu comovido. No peito de sua camisa, muito alva e lustrosa, reluzia uma pedra duvidosa.

Crescia a animação da festa. Os talheres ba­tiam nos pratos com mais força e as palavras do liceísta comunicavam ao auditório certo entusiasmo sereno que se traduzia em apetite voraz e insaciável secura nas gargantas. Ouviam-se trabalharem as mandíbulas.

Houve uma pausa depois da qual o Castrinho, tomando o cálice cheio, concluiu com ênfase:

— ...Portanto, eu brindo ao ditoso par, desejando-lhe um futuro de rosas banhado pelos eflúvios do amor conjugal...

E, escorropichando o cálice:

— Aos noivos!

— Hip, hip, hurra!

Todos se levantaram.

— Loureiro...

— D. Lídia...

— Sr. Castro não quer se servir de um pedacinho de bolo de mandioca? ofereceu a viúva por trás do poeta.

— Agradecido, minha senhora, agradecido... Estou satisfeito.

— Então, mais um pouco de vinho...

Aceitava, pois não.

— Não façam cerimônia, minha gente, observou D. Amanda. Já acabou, Sr. João da Mata? Um pinguinho de doce de caju, Sr. Alferes... E você, menina, coma sem cerimônia.

Maria do Carmo não podia disfarçar a tristeza, a ponta de inveja concentrada que lhe tomava de assalto a alma inteira. Sentara-se à mesa por civilidade, para corresponder aos reclamos da viúva, mas o seu único desejo era ir-se embora para casa; a festa da amiga fazia-lhe mal aos nervos, e, demais, o Zuza proibia-lhe de ir a qualquer parte onde ele não estivesse. Fora ao casamento da Lídia, porque o padrinho a obrigara, não por sua espontaneidade. E agora ali estava casmurra, silenciosa, com um arzinho recolhido de filha de Maria, vendo sem ver, ouvindo sem ouvir as pessoas e os ruí­dos, numa abstração infinita, no meio de toda aquela gente que festejava o casamento da amiga. Agora, mais do que nunca, por um excesso de sensibilidade nervosa, doía-lhe no coração de pomba desolada não poder, como a Lídia e como outras tantas raparigas felizes, amar livremente, sem ter que obedecer aos caprichos de um padrinho atrabiliário e despótico como João da Mata. Enquanto os outros divertiam-se sorvendo cálices de vinho, saudando aos noivos, ela, toda entregue a seus pensamentos, permanecia muda e bisonha como quando pela primeira vez apresentara-se à sociedade, logo ao chegar de Campo Alegre, menina ainda, matutinha. Ah! naquele tempo ela tinha o seu papai e a sua mamãe perto de si, não era como agora, anos depois, uma simples, uma pobre, uma desprezada órfã, assistindo com uma grande tristeza egoísta derramada nalma à felicidade alheia triunfante...

— Atenção, meus senhores! Atenção!

Desta vez ia falar o alferes Coutinho, quartel-mestre do batalhão, um moreno, de costeletas, cabelo penteado em pastinhas, certo ar arrogante de pelintra acostumado a todas as festas desde os sambas do Outeiro, aos bailes do Clube Iracema; magricela, olhos cavados. Nas horas de ócio dava-se ao luxo de fabricar sonetos no gênero piegas dos últimos trovadores de salão.

Arrastava ao piano as valsas em moda e dizia-se exímio tocador de flauta.

Convidado a toda parte, não perdia ocasião de exibir-se na poesia ou na música. Tinha fama de primeiro recitador do Ceará, ninguém como ele sabia marcar uma quadrilha, todo enfezado, sempre de lenço na mão, metido invariavelmente na sua farda de alferes com colete branco.

Houve um silêncio profundo. Todas as vistas caíram de chofre sobre o militar como se de sua boca fossem sair preciosas revelações.

Era o alferes Coutinho? Oh! magnífico! Psiu!... psiu!... Silêncio!...

— Meus senhores. Respeitabilíssimas senhoras... Não dispondo de dotes oratórios, tão úteis nas ocasiões solenes como esta, eu, que tenho a honra de pertencer à falange dos discípulos de Castro Alves, Casimiro de Abreu, Varela e tantos outros astros de primeira grandeza, que brilham no firmamento da poesia brasileira, eu vou ler uns versos de minha lavra, que tomei a liberdade de dedicar aos donos desta festa inolvidável...

Nem um aparte. O mesmo silêncio cauteloso e recolhido. A noiva abaixou a cabeça afetando modéstia e Loureiro fixou o olhar atrevidamente no orador. Mas o Coutinho, calmo e desembaraçado, sacou do bolso da farda um papel, e lendo:

Noite de Núpcias é o título dos pobres ­versos...

— Não apoiado...

— ... que tenho a honra de oferecer à Exa. Sra. D. Lídia, uma das estrelas mais fulgurantes que ornam o céu da sociedade cearense...

Lídia estremeceu com um belo sorriso de agradecimento.

— ... e ao Sr. Dias Loureiro, inteligente e zeloso guarda-livros da nossa praça, ambos, portanto, dignos um do outro e da nossa eterna amizade...

— Apoiadíssimo, confirmou Carvalho & Cia., palitando os dentes.

Sem mais preâmbulos o alferes entrou a declamar com uma convicção admirável os tais versos de sua lavra, uma enfiada de palavrões antigos e bolorentos, que ele procurava animar com a sua voz de trovão, seca e cavernosa, brandindo o papel com a mão esquerda e a direita gesticulando como se estivesse a marcar compasso de música.

Ao terminar o último verso.

Chovam bênçãos de amor sobre os que casam!”

Uma salva de palmas forte e prolongada ecoou na pequenina sala.

— Bravo! muito bem! muito bem!

E o poeta sentou-se agradecendo com repetidos movimentos de cabeça às manifestações de que era alvo. Diversas pessoas levantaram-se e foram cumprimentá-lo de perto. Um velho calvo, que se sentava a seu lado, lembrou-se de perguntar-lhe ao ouvido “se o Sr. Alferes era cearense”.

— Não senhor, respondeu o Coutinho, voltando-se gravemente; sou guasca, nasci na cidade de Porto Alegre.

E contou quando viera para o Ceará, disse a sua grande simpatia por essa província e que pretendia se casar com uma cearense.

O “brinde de honra” feito em duas palavras por Carvalho & Cia., à D. Amanda, “encarnação de todas as virtudes domésticas, senhoras de incomparável brandura e sisudez”.

— Hip! hip! hip! hurra!

Foi um delírio esse final de banquete nupcial, em que tomavam parte o exército representado pelo alferes Coutinho, a poesia na pessoa do autor das Flores Agrestes e o comércio em grosso simbolizado no ventre obeso de Carvalho & Cia. Esgotaram-se as botelhas de vinho do Porto e de cerveja com um açodamento de quem não bebia água há três dias e depara uma piscina abundante do precioso líquido. E, ao levantarem-se da mesa, os convidados olhavam com soberano desdém a toalha manchada de nódoas de vinho sobre a qual havia uma confusão grotesca de copos e pratos em desordem, abandonados ali como restos de um festim sardanapalesco. Uma coisa tinha sido respeitada e conservava-se no mesmo lugar em que fora colocada pela mão zelosa de D. Amanda, era o paliteiro de prata representando um alcaide com chapéu de três bicos e aspecto napoleônico, de braços cruzados, numa imobilidade de objeto de luxo que se receia tocar por escrúpulo.

Os espectadores intrusos evacuaram o corredor com a mesma facilidade e ligeireza com que se tinham introduzido, e depressa a sala de jantar ficou entregue à viúva e ao criado, que se ocuparam de cobrir os restos dos bolos recolhendo-os ao guarda-comidas. O troço dos comensais, homens e senho­ras, enchia a sala de visitas, cujas cadeiras esta­vam­ todas ocupadas, e palrava agora de­sem­­­baraçadamente numa atmosfera pesada de fumaça e heliotrópio — umas abanando-se com os grandes leques de cetim, outros com os lenços, porque o calor crescia. Transpirava-se por todos os poros, o que fazia o alferes Coutinho trazer constantemente o lenço no pescoço, resguardando o colarinho onde já havia sinal de suor. A janela estava tomada por algumas pessoas que formavam roda ao redor do Loureiro, em pé. Senhoras entravam e saíam da alcova com o ar desconfiado, compondo discretamente os vestidos.

Deram dez horas no relógio da Sé, cujas badaladas faziam-se ouvir, graves e sonolentas, em todo o âmbito da cidade.

Dez horas! Carvalho & Cia. consultou o relógio. Havia uma pequena diferença de dez minutos. Safa! o tempo voava!

E, alto, levantando-se:

— Vamos, Quininha?

— É muito cedo ainda! acudiu a Lídia que conversava com Maria do Carmo, no sofá.

— É verdade, minha gente! saltou D. Tere­zi­nha saindo da alcova. Os noivos precisam descansar. Dez horas!

— Estávamos tão distraídos! disse o alferes Coutinho puxando os punhos.

— Vamos, vamos, repetiram muitas vozes.

— É cedo, minha gente! implorava a Lídia muito amável, com um sorriso de irresistível faceirice.

Imediatamente todos se levantaram impulsionados pela mesma idéia à procura dos chapéus, num rebuliço crescente, aos encontrões, enfiando pela alcova e pelo corredor.

Estrondou um bocejo senil e demorado, que se propagou por ali afora — era o velho calvo, de óculos, que se tinha encafuado a um canto da sala cochilando, e que despertara agora num espre­guiçamento, como se estivesse em sua própria casa.

As senhoras agasalhavam-se nos fichus, defronte do espelho.

Amanda, de um lado para outro, de dentro para fora da alcova, não descansava as pernas.

Começaram as despedidas.

Que de beijos estalados à queima-roupa! Em pé no meio da sala, os noivos competentemente formalizados, agradeciam reconhecidos a chuva de felicitações que caíam sobre eles à guisa de flores desfolhadas sobre suas cabeças, ao mesmo tempo que Lídia ia distribuindo a uns e outros botões de laranjeira.

Que fossem muito felizes; que tivessem uma eterna lua-de-mel; que fossem muito unidos sempre como dois irmãos; que não esquecessem as velhas amizades...

— Olhe, minha filha, aconselhou D. Terezinha com a mão no ombro da Lídia, depois de a ter beijado. Olhe, seja sempre boa para seu maridinho, faça o que ele quiser, o que ele mandar. O homem é que faz a mulher e a mulher é que faz o homem. Adeus, ouviu?

Todos tiveram mais ou menos o que dizer aos noivos.

— Não esqueça o que lhe pedi, ouviu Lídia? recomendou de fora uma voz de mulher.

— Boa-noite!

— Sejam felizes!

— Durmam bem!...

Em pouco todos tinham-se retirado. Havia ainda alguns curiosos fora, na calçada. Loureiro mandou aproximar o carro que o esperava. A rua estava silenciosa e escura como se fosse alta noite. Defronte, em casa de João da Mata, fecharam-se as portas apagando-se completamente a última luz que clareava aquele trecho da rua do Trilho.

Amanda chamou a filha à alcova onde estiveram conversando alguns minutos, e depois, abraçando-a ternamente com os olhos úmidos:

— Deus os conduza em paz...

Lídia beijou comovida a mão da viúva e, dando o braço ao Loureiro, entrou no carro que rodou em direção de Benfica, com a sua luzinha amarela tremeluzindo no escuro.

Minutos depois D. Amanda recebia, como de costume, o Batista da Feira Nova.