À proporção que se aproximava o dia do casamento da Lídia com o guarda-livros, as visitas deste à casa da viúva Campelo iam-se tornando de mais a mais freqüentes. A Campelinho não cabia em si de contentamento; pudera! ia enfim ver-se livre do perigo de ficar para tia. De resto o Loureiro era um ótimo rapaz, excelente empregado, natural de bom gênio, tolerante em extremo e senhor de seu nariz. Era como se fosse de casa, como se já fizesse parte da família, surdo como uma pedra aos boatos mais ou menos mentirosos que corriam sobre a vida privada de D. Amanda. Nunca se dera ao trabalho de averiguar se efetivamente o procedimento de sua futura sogra merecia censuras da gente honesta, mesmo porque o seu emprego não lhe deixava tempo para isso.

Não senhor, dizia ele, se porventura alguém procurava abrir-lhe os olhos; a viúva era um modelo de mãe de família, coitada, vivendo modestamente do minguado montepio de seu finado marido, afora um negociozinho de rendas, que tinha no Pará, e que lhe deixava para mais de cinqüenta por cento. O mais eram palavrórios, e ele no caráter de futuro genro da viúva, não podia consentir que ninguém a difamasse impunemente.

João da Mata lhe dissera uma vez, ao ouvido, batendo-lhe amigavelmente no ombro, que não se iludisse, que a Campelo recebia fora de hora o Batista da Feira; que ele, João da Mata, vira muitas vezes, com os próprios olhos, o negocian­te entrar cosido à parede alta noite, como um gato.

Histórias. O amanuense fazia mal andar propalando suspeitas que podiam prejudicar, muito, os créditos da pobre senhora. Absolutamente não acreditava em tais boatos. Conhecia bem o gênio e a vida de D. Amanda para desprezar semelhantes falsidades. Em suma, era da escola de S. Tomé: ver para crer.

Até então só tinha motivos para louvar o procedimento da sua futura sogra. E concluía: “— Por amor de Deus não falassem mais em tais coisas... Tinha olhos para ver.”

Todas as noites, invariavelmente, lá ia ele dar o seu dedo de palestra com a noiva, e, depois do víspora em casa do amanuense, ficavam os dois horas e horas na calçada, num aconchego muito íntimo, ela apoiada nos seus ombros, fazendo-se meiga e apaixonada, ele babando-se de satisfação ao contato palpitante das carnes rijas e abundantes de sua futura mulher. D. Amanda entrava propositalmente para os deixar à vontade naquele arrebatamento de noivos sadios e vigorosos.

Uma noite o guarda-livros quis ir mais longe nas vivas demonstrações de seu amor pela Campelinho. Com os lábios pregados à boca da Lídia, quase abraçados, procurou com uma das mãos apalpar alguma coisa que a rapariga ocultava religiosamente no templo inviolável de sua castidade.

— Não, isso não! fez ela esquivando-se, toda cautelosa, com um ar de surpresa.

Deixasse daquilo, que era muito feio entre noivos. Não havia necessidade; tinham muito tempo, depois. Tivesse paciência, sim?

E muito terna, derreando-se de novo sobre os ombros do guarda-livros, beijou-o na face áspera de espinhas, sem repugnância, e começou a cofiar-lhe carinhosamente os bigodes, devagarinho, arregaçando-os, assanhando-os para tornar a alisá-los, prolongando assim a delícia de Loureiro que nesses momentos era como um escravo das mãozinhas brancas e delicadas da Lídia.

— Mas, que tem? perguntou ele com a voz trêmula, um fluido estranho no olhar terno.

— Não, meu bem, isso não, que é feio, tornou a Campelinho. Tem paciência.

Não fazia mal, continuou Loureiro. Não eram noivos? não eram quase casados? Que diabo! consentisse ao menos uma vez. Era um instantinho. Ora! uma coisa tão simples, tão natural... Ninguém via, deixasse, que tolice!

E enquanto falava muito baixo, com hesitações trêmulas na voz embargada pela sensualidade, estendia a mão por baixo, olhar fito nos olhos vivos e penetrantes da rapariga.

Nem um ruído na rua do Trilho, nem uma voz, nem o vôo pesado de um morcego: tudo silêncio, e uns restos de luar a extinguir-se esbatendo defronte nos telhados. Apenas, ao longe, vago e indistinto quase, o ruído monótono do mar no silêncio da noite calma.

— Oh! não... suplicou a Campelinho sentindo o contato da mão grossa do guarda-livros. Deixa...

Houve um frufru de vestidos machucados e o baque de uma cadeira.

Momentos depois o Loureiro despedia-se triunfante, pisando devagar, caminho do HOTEL DRAGOT.

Desde então começou a retirar-se muito tarde. Havia noites em que só saía depois de uma hora da madrugada. ultimamente almoçava e jantava em casa da viúva. Era mais econômico do que pagar no hotel, dizia D. Amanda: bastava que ele contribuísse com trinta mil-réis mensais e tudo se arranjaria ali mesmo em família; de modo que o Loureiro pouco a pouco foi-se fazendo, por assim dizer, dono da casa, chefe da família. Por fim todas as despesas corriam por sua conta e risco. Aluguel de casa, comedoria, roupa lavada e engomada, vestidos para a Lídia, tudo era ele quem pagava de boa vontade, sem tugir nem mugir porque queria e tinha prazer nisso. Muito econômico, amigo de seu dinheirinho, mas em se tratando das Campelo, não tinha mãos a medir, era de uma prodigalidade sem limites. Coitadas! lamentava-se consigo, eram umas pobres; cada um sabe de si e Deus de todos; tinha quase o dever de ampará-las, tanto mais quando estava para ser marido da pequena. E abria o seu grande coração e a sua bolsa àquelas duas criaturas, que se lhe afiguravam duas santas através do prisma azul de seu amor pela rapariga. Subscritor da Sociedade de São Vicente de Paulo, um pouco devoto, às vezes tinha rasgos de verdadeiro filantropo. D. Amanda e a filha eram aos seus olhos “duas vítimas da maledicência de uma sociedade hipócrita e torpe até à raiz dos cabelos”. Agora jantava e almoçava em casa da viúva, que já lhe sabia os gostos, as manias. Ela mesma ia preparar a comida, os ovos quentes e a lingüiça assada ao almoço, o feijão e o lombo assado para o jantar. D. Amanda estava radiante com o genro. Tratava-o a velas de libra, fazia-lhe todas as vontades, escovava-lhe a roupa, e eram cuidados de mãe carinhosa ou de criança que tem um pássaro na mão e receia que lhe fuja.

Aos domingos o guarda-livros ia logo cedo para o Trilho, às vezes com a cara por lavar, metido em calças pardas, abotoado até o pescoço. Era quando tinha algum descanso das lidas quotidianas do armazém, da escrituração do Caixa. Às seis horas da manhã já ele estava de caminho para o Trilho, muito à fresca, cigarro ao canto da boca, prelibando as delícias de um dia em companhia da noiva, sem ter que dar satisfação à Carvalho & Cia., com a consciência tranqüila de quem cumpriu religiosamente o seu dever.

Nem sequer tomava café no hotel. Pulava da rede às pressas, sem perder tempo, enfiava as botinas, as calças, o paletó surrado, e abalava por ali afora, escadas abaixo. Às vezes ainda encontrava a porta da viúva fechada. Batia devagar com a ponta dos dedos: “— Sou eu, Loureiro!” Imediatamente D. Amanda vinha abrir, embrulhada nos lençóis, cabelos soltos, em mangas de camisa. E a faina começava. Escancaravam-se as portas para dar entrada livre ao arzinho fresco da manhã que se derramava por toda a casa como um fluido que se evaporasse de repente de um depósito aberto. O Loureiro tirava o paletó, abria a toalha no ombro, e enquanto se punha a ferver água para o café, refestelava-se num confortável banho frio puxado de véspera na grande tina que havia no “banheiro”. Era tempo de cajus. O guarda-livros tinha a mania dos depurativos. Antes do banho emborcava um copo de mocororó “para retemperar o sangue”, dizia ele. Depois o cafezinho quente, coado pelas mãos de D. Amanda, e, finalmente, o belo dia passado, currente calamo, tranqüilamente num longo idílio naquele canto obscuro de Fortaleza, com a “sua santa”. O hotel servia-lhe apenas para dormir, porque o Loureiro era filho do Rio Grande do Norte onde perdera pai e mãe, não tinha no Ceará sequer um parente em cuja casa pudesse passar as noites. Amigos capazes de merecerem toda a sua confiança também não os tinha. Pacato, concentrado e pouco expansivo, dificilmente comunicava-se a quem não o procurasse em primeiro lugar. Sua natureza egoísta aprazia-se com a vida sedentária. — Um esquisitão de força, uma espécie de urso! diziam os seus camaradas de comércio.

E os dias passavam, longos e modorrentos, cheios de sol, sem nuvens no azul, iguais sempre, eternamente monótonos.

Novembro estava a chegar. Novembro, o mês dos cajus e das ventanias desabridas, com as suas manhãs friorentas e claras, em que, às vezes, nuvens sombrias acumulavam-se no horizonte e vão subindo até desmancharem-se completamente num chuvisco ligeiro que apenas borrifa de leve a superfície seca do solo, pondo cintilações dia­man­tinas nas folhas do arvoredo; novembro, o mês dos estudantes, o mês dos exames, que passa levando consigo as ilusões cor-de-rosa dos que deixam os bancos preparatórios e dos que começam a vida pública.

O Zuza não tinha pressa em se formar. De resto era uma questão de tempo o seu bacharelato. Resolvera passar mais alguns meses no Ceará com a família, e então ir-se-ia completar o curso. Já agora o Ceará não lhe era inteiramente uma terra má. Habituava-se pouco a pouco a essa vida de província pacata em que se trabalha um quase nada e fala-se muito da vida alheia. Maria do Carmo tinha-lhe escrito uma cartinha lacônica e expressiva confessando o seu amor. Entregou-a ela mesma, no Passeio Público, numa quinta-feira, à noite, uma belíssima noite de luar. A avenida Caio Prado tinha o aspecto fantástico de um terraço oriental onde passeavam princesas e odaliscas sob um céu de prata polida, com suas filas de combustores azuis, encarnados e verdes, com as suas esfinges... Senhoras de braço dado, em toaletes garridas, iam e vinham ao macadame, arrastando os pés, ao compasso da música, conversando alto, entrechocando-se, numa promiscuidade interessante de cores, que tinham reflexos vivos ao luar: de um lado e de outro da avenida duas alas de cadeiras ocupadas por gente de ambos os sexos, na maior parte curiosos que assistiam tranqüilamente o vaivém contínuo dos passeantes.

O plenilúnio muito alto dir-se-ia uma grande medalha de prata reluzente com o anverso para a terra, suspensa por um fio invisível lá em cima na cúpula azul do céu. Defronte da avenida o mar, na sua aparente imobilidade, tinha reflexos opalinos que deslumbravam, crivado de cin­tila­ções, minúsculas, largo, imenso, desdobrando-se por ali afora a perder de vista, e para o sul, muito ao longe, a luz branca do farol tinha lampejos intermitentes, de minuto a minuto. No porto a mastreação dos navios destacava nitidamente, inclinando-se num movimento incessante para um e outro lado, como oscilações de um pêndulo invertido.

— Uma noite admirável, hein, Maria? dizia Lídia de braço com a amiga, levada pela onda dos diletantes.

A normalista, porém, não deu atenção à Cam­pelinho, muito distraída, caminhando maquinalmente, a pensar no estudante. Decididamente entregava-lhe a carta, fosse como fosse. Eram oito horas já e o Zuza ainda não havia chegado. Estava aflita, inquieta, impaciente. E se ele não fosse ao Passeio nessa noite? Ela rasgaria a carta e nunca mais havia de o procurar. O seu coração batia com força. Ia e vinha, cansada de esperar, com ímpetos de voltar para casa.

— Tem paciência, menina, disse a outra. O rapaz não tarda. Está no clube, talvez.

Qual clube. Era necessário acabar com aquilo. Começava a desconfiar do Zuza. Certo que ele queria passar o tempo folgadamente, por isto fingira aquela comédia de amor. Não era possível, não acreditava na sinceridade do Zuza. Se ele fosse outro procurá-la-ia sempre, em toda parte, nos passeios, no teatro, nos bailes. E ela é que estava fazendo uma figura ridícula a procurá-lo, como se ele fosse o único homem do Ceará com quem ela pudesse ser feliz!

E lá veio o maldito nervoso, uma vontade de fechar os olhos a tudo e viver para si, egois­tica­mente, como o bicho-da-seda, no seu casulo. Incomodava-lhe o zunzum de vozes e as pisadas da multidão, a própria música começou a fazer-lhe mal à cabeça. Que horror! Nem sequer podia ­passear!

Nisto ouviu uma voz que lhe pareceu a do estudante.

— Boa-noite, minhas senhoras!

Era realmente ele, que vinha chegando ao lado de José Pereira, muito correto, de chapéu alto, calça de casimira clara, croisé aberto, grandes colarinhos lustrosos de ponta virada e infalível flor na botoeira.

Maria voltou-se aturdida e um suspiro largo e bom escapou-lhe do peito.

Até que enfim! Ele ali estava, inteiro, completo, absoluto!

Agora, pensava em como entregar a carta sem que ninguém visse, sem escândalo.

A Lídia sugeriu-lhe uma idéia — iriam à outra avenida, mais sombria e menos freqüentada; ele naturalmente havia de ir também e então passava-lhe a carta num aperto de mão franco e ami­gável.

— Sim, vamos...

E dirigiram-se para a avenida Carapini, ensombrada pelos castanheiros, que formavam uma como abóbada compacta de ramagens através das quais o luar coava-se aqui e ali, pelas clareiras.

Puseram-se por ali a esperar, em pé defronte dos gnomos de louça, à beira dos reservatórios de água onde cruzavam gansos e marrequinhas vadias que grasnavam alegremente, inundadas de luar, ou caminhando devagar, iam contando os minutos, enquanto a música, no coreto, executava trechos alegres de operetas em voga. No botequim, rodeado de toscas mesinhas de madeira, abriam-se garrafas de cerveja com estrondo, e havia um movimento desusado de gente. As normalistas afastaram-se para mais longe.

— Eles não vêm, disse Maria desanimada, enquanto a outra procurava com o olhar o estudante, que se confundira na multidão.

— Tem paciência, tolinha. Por que não hão de vir?

Com efeito, daí a pouco assomou no extremo oposto da avenida a figura corpulenta de José Pereira, alta, larga, colossal, ao lado do Zuza, que lhe ficava pelo ombro, apesar de alto também, com o seu corpo fino em contraste frisante com o todo asselvajado do amigo. Vinham passo a passo, discretamente. Pararam no botequim, numa roda de rapazes que discutiam calorosamente sobre política.

De braço dado, ombro a ombro, as duas raparigas tinham procurado o lugar mais sombrio da avenida onde não podiam ser reconhecidas facilmente pelos passeantes da Caio Prado.

Esperemo-los aqui, disse Lídia, sentando-se com um vago suspiro.

E continuava a chegar gente e a encher o Passeio por todas as avenidas do primeiro plano, cruzando-se em todos os sentidos, acotovelando-se, confundindo-se. Na Mororó, mais larga que as outras, havia uma promiscuidade franca de raparigas de todas as classes: criadinhas morenas e rechonchudas, com os seus vestidos brancos de ver a Deus, de avental, conduzindo crianças; filhas de famílias pobres em trajes domingueiros, muito alegres na sua encantadora obscuridade; mulheres de vida livre sacudindo os quadris descarnados, com ademanes característicos, perseguidas por uma troça de sujeitos pulhas que se punham a lhes dizer gracinhas insulsas. Toda uma geração nascente, ávida de emoções, cansada de uma vida sedentária e monótona, ia espairecer no Passeio Público aos domingos e quintas-feiras, gratuitamente, sem ter que pagar dez tostões por uma entrada, como no teatro e no circo.

Ali não havia distinção de classes, nem camarotes, nem cadeiras de primeira ordem: todos tinham ingresso para saracotear nas avenidas ao ar puro das noites de luar.

Apenas quem não tivesse três vinténs estava proibido de sentar-se, porque, nesses dias, as cadeiras eram alugadas, havia assinaturas baratas. Lia-se mesmo na Província o seguinte anúncio: “No estabelecimento Confúcio e no Clube vendem-se cartões de assinatura de cadeiras no Passeio Público, com abatimento nos preços.” Mas, ora, toda a gente possuía dois vinténs para alugar uma cadeira, e, ademais, ia-se ao Passeio Público para andar, para se mostrar aos outros como numa vitrine, não valia a pena ir para ficar sentado, casmurro, a ver desfilar o quê? o mesmo carnaval de todos os domingos e quintas-feiras, as mesmas caras, as mesmas toaletes. Não valia a pena de­certo.

Quando a música parava, um realejo fanhoso, ao som do qual rodavam cavalinhos de pau, em um dos ângulos do jardim, gemia, num tom dolente e irritante, o Trovador, atordoando os ouvidos delicados do Zuza que achava aquilo simplesmente insuportável e medonho como um assassinato em plena rua.

Como é que se consentia semelhante impor­tunação em uma capital que tinha foros de civilizada?

Oh! em Pernambuco o italiano que se lembrasse de tocar realejo à porta de uma república era imediatamente punido a batatas e a cascas de laranja. Estava muito atrasadinho o Ceará!

Gostava pouco de ir ao Passeio, o que fazia raríssimas vezes a convite de José Pereira, que comparava aquilo a um paraíso.

— O Passeio Público? dizia ele; o Passeio Público é um dos mais belos do Brasil, é a coisa mais bem-feita que o Ceará possui. Que vista, que magnífico panorama se aprecia da Avenida Caio Prado, à tarde! Nem o Passeio Público do Rio de Janeiro!

E justificava o antibairrismo do estudante.

— É que tu tens passado a melhor parte da tua vida na Corte e em Pernambuco, menino, dizia ele. Se vivesses algum tempo nesta terra, ha­vias de gostar extraordinariamente. Mas o que te posso afirmar é que no Brasil não há uma cidade tão bem alinhada como esta, uma iluminação mais rica do que a nossa e um Passeio Público assim como este.

“— Não duvidava, não duvidava, mas o Ceará ainda estava muito atrasadinho, lá isso es­tava.”

Afinal, chegou o momento que Maria do Carmo aguardava com a impaciência febril de um desesperado. O redator da Província e o Zuza tinham deixado o grupo de políticos e aproximavam-se a passos lentos. Ao passarem pelas normalistas a Campelinho levantou-se e, muito desembaraçada, com esse tic indizível das raparigas habituadas à convivência dos homens e à vida elegante, dirigiu-se aos dois amigos, saudando-os rasgadamente com um belo sorriso aristocrata:

— Como passou, Sr. José Pereira?... Sr. Zuza...

— Oh! minha senhora... fizeram os dois ao mesmo tempo.

E a Lídia, depois de perguntar a José Pereira, com quem tinha alguma familiaridade, se vira, por ali, D. Amélia, e com uma ponta de cinismo, dirigiu-se ao Zuza.

— Que tal o passeio, Sr. Zuza?

— Esplêndido, minha senhora! Está de en­cantar!

— Isto é um inimigo do Ceará, D. Lídia, atalhou José Pereira rindo, com a sua voz muito grossa, os dentes muito brancos e pequeninos. Isto é um vândalo!

— Vândalo, não. Sou apenas um admirador, um amante do progresso. A meu ver, repito, o Cea­rá tem muito ainda, mas mesmo muito (e deu umas castanholas com o dedo) que andar para ser uma capital de primeira ordem.

— Eu já sabia que o Sr. Zuza não gostava da terra de Iracema, disse a normalista.

Maria tinha se deixado ficar à distância, sentada num banco de madeira encostado a uma árvore, na meia sombra que havia de um lado da avenida, quieta, imóvel, acaçapada, como uma coisa à toa... Sentia-se cada vez mais tola, mais matuta e insociável.

A presença do acadêmico punha-lhe cala­frios na espinha, e vinha-lhe logo um desejo vago de isolar-se e não dizer palavra. Não sabia o que aquilo era; o certo é que a presença do Zuza hipnotizava-a, fazia-lhe perder a cabeça, como se estivesse diante de um monstro, de uma criatura misteriosa, cujo poder sobre ela fosse enorme.

Zangava-se consigo mesma nesses momentos. Já estava em idade de perder todo o acanhamento, e, que diabo! atirar-se à vida, à sociedade, sem medo, sem receios infundados, sem pieguismos. Bolas! De si para si tornava a jurar nunca mais ter medo de homem algum, mas no outro dia era a mesma da véspera, fraca, impotente para dominar-se.

— Pois estamos distraindo o espírito, tornou a Lídia. A avenida Caio Prado está muito cheia; vimos apreciar o movimento daqui, da Avenida dos Charutos.

O Zé Povinho denominava Avenida dos Charutos a avenida Carapinin por ser mais freqüentada por gente de cor, e Lídia achava muita graça naquilo, não podia acertar com o verdadeiro nome da sombria aléia, ponto dileto de cozinheiras e raparigas baratas da rua da Misericórdia.

— Ah! fez o Zuza. Então V. Exª não veio só...?

— Não, não. Vim com a minha amiga inse­pa­rável.

E voltou-se para Maria, que fingia olhar para o coreto da música.

— Quem, D. Maria do Carmo? perguntou José Pereira voltando-se também.

— Sim, a Maria...

— Oh! exclamou o redator dirigindo-se para a normalista. Está triste hoje, D. Maria? Uma moça bonita não se deixa ficar assim, na sombra. Como vai, como tem passado, boazinha? Sempre acanhada!... Venha, faz favor? quero lhe apresentar a um moço muito chique e que lhe aprecia muito.

Quem, o Sr. Zuza? Ela já conhecia. Estava descansando.

— Ó Zuza!

O acadêmico e a Lídia aproximaram-se.

E José Pereira num tom de cortesia:

— Apresento-te aqui a Sra. D. Maria do Carmo, normalista, e uma das moças mais distintas da nossa sociedade, uma flor!

Riram-se todos àquele disparate premeditado, pondo uma nota alegre nesse obscuro recanto do Passeio.

— Oh! Já se conheciam? Não sabia, por Deus! Então já conheces a moça mais bonita do Trilho de Ferro, hein? Uma coisa que não sabes: faz versos também...

Maria cumprimentou o estudante com um modo muito discreto, conservando-se sentada, ­aflita.

A música deu começo a um tango repinicado, saltitante e carnavalesco, espécie de Chorado Baiano, com rufos de tambor, em que sobressaía o clarinete cujas notas, muito prolongadas e queixosas, morriam languidamente.

De quando em quando os instrumentos fa­ziam uma pausa e rompia um coro de vozes grossas. — Quem comeu do boi?... que a molecagem, lá fora, repetia numa desafinação irritante de vozes ­finas.

— Vamos tomar alguma coisa, insistiu José Pereira oferecendo o braço a Lídia cortesmente. Ó Zuza, você dá o braço a D. Maria do Carmo.

E, dois a dois, dirigiram-se para o botequim, José Pereira à frente com a Campelinho.

A ocasião era oportuna.

Maria a princípio desanimou completamente, mas, num ímpeto decisivo e franco, fazendo um esforço supremo sobre si mesma, nervosa, mais tímida que nunca, sacou a carta, passou-a ao estudante, com a mão trêmula, sem proferir palavra, e imediatamente veio-lhe um arrependimento profundo de se ter comprometido daquele modo, como se houvesse cometido um grande crime, como se naquela carta fosse toda a sua honra, todo o seu pudor de rapariga honesta. Estava perdida! Pensou, e já lhe parecia que toda a gente, — o Passeio Público em peso — seguia-lhe as pegadas observando-lhe todos os movimentos.

— Ah! fez o Zuza satisfeito. Pensei que não respondesse...

E sentindo-se dono daquela prenda, com um frêmito de pálpebras através dos óculos de ouro, aconchegou a si o braço roliço da normalista meio descoberto.

Maria conservou-se calada, sentindo cada vez mais forte o poder misterioso do estudante sobre seu coração extremamente sensível e bom. Deixou-se ir automaticamente, como uma sonâm­bula.

Sentaram-se. José Pereira quis saber o que desejavam tomar. Havia sorvete, cidra, cerveja, vinho do Porto, chocolate...

— Cerveja, acudiu a Lídia.

Todos assentaram, depois de alguns minutos de indecisão, em tomar cerveja, e o redator da Província, sempre alegre e cortês, enfiando a cabeça para dentro do botequim, pediu três garrafas de Carls Berg, gelo e quatro copos.

O serviço do botequim era feito por um menino que entrava e saía sem descanso, numa azáfama dos diabos, suado, com os cabelos empastados na testa, sem paletó, uma toalha nauseabunda e úmida no ombro, acudindo, ele só, a todos os chamados.

Rapazes impacientes, de chapéu caído para a nuca, tresandando ixora, muito arrebitados, ba­tiam com as bengalas sobre as mesinhas.

— Uma garrafa de cerveja, menino!

— Ó pequeno, aqui! Olha dois cafés!

O pobre caixeirinho não tinha trégua com a cara enfarruscada, resmungando.

De vez em quando, esfregava a toalha nas mesas com força, salpicando restos de bebidas nos janotas.

— Ó burro, estás cego?

O menino zangava-se e corria a outra mesa.

Vinha de dentro do quiosque um cheiro ativo de café requentado. Saíam bandejinhas com chocolate e pão-de-ló.

— Muito mal servido isto, objetou Zuza com o seu ar afetado de fidalgo, limpando os bigodes. Tenho notado mesmo que aqui, no Ceará, não se usa guardanapo...

— É objeto de luxo, disse José Pereira, atirando também o seu dichote.

E pouco a pouco a conversação foi-se animando, pouco a pouco foi-se estabelecendo uma como intimidade entre todos, ao passo que os copos se esvaziavam.

Pediram mais uma garrafa de cerveja.

A própria Maria do Carmo tinha o rosto em fogo. Foi perdendo o acanhamento e ria também com os outros quando o redator dizia uma pi­lhéria.

A Lídia, essa lambia os beiços a cada copo que virava de dois tragos. Era a sua bebida predileta — a cerveja. Bebera pela primeira vez ali mesmo, no passeio, por sinal o alferes Coutinho, do batalhão, é que tinha pago. Estava em meio do terceiro copo. — “Aquilo é que era bebida agradável e higiênica”, dizia ela. Não gostava de licores e ­bebidas adocicadas. A champanha mesmo enjoava-lhe.

— E que tal acha o peru? perguntou maliciosamente José Pereira.

Isso era outra coisa: O peru era uma excelente bebida; bastava ter sido inventada pelo presidente da Província, um moço de educação muito fina, viajado. Diziam até que tinha ido à Rússia...

Então falou-se do presidente, que José Pereira não perdia ocasião de elogiar exageradamente.

Um homem superior, gabava ele, um gen­tle­man, um fidalgo de raça, uma dessas criaturas que a gente ficava querendo bem por toda a vida. Pois não! Excelente amigo, dedicado até, jogador de florete, sabendo montar a cavalo “divinamente” e atirando ao alvo com uma perfeição ultra! E que educação, que finíssima educação social! O homem falava francês como um parisiense, entendia inglês e tinha um modo excepcional de se portar em qualquer ocasião, solene. Com tudo is­to, acrescentava pigarreando, era muito bom democrata, sim senhores. Passeava sem ordenança, a pé; ia ao mercado pela manhã “ver aquilo” como qualquer plebeu, e jogava bilhar na Maison Moderne... Que queriam mais? De um homem assim é que o Ceará precisava. Ele ali estava na pessoa do Castro.

Tratava o presidente familiarmente, como a um amigo de muita intimidade.

Por sua vez o Zuza elevava o presidente aos cornos da lua. A sua opinião resumida era a seguinte: “Todos os cearenses juntos, trepados uns sobre os outros, não chegavam aos pés do fidalgo paulista.”

A Lídia achava os olhos do presidente “simplesmente adoráveis”.

— Eu o que mais admiro nele é o pescoço, a brancura escultural do pescoço, disse Maria.

O presidente foi analisado escrupulosamente da cabeça aos pés, como uma estátua grega, ao sabor da cerveja Carls Berg.

Já não havia quase ninguém no Passeio, quieto agora, sem o ruído tumultuoso dos passeantes, sem música, todo iluminado pela claridade branda e melancólica do luar. Apenas se ouvia o grasnar áspero dos gansos nos reservatórios, a grita estridente das marrequinhas e a toada dos soldados no quartel, rezando.

José Pereira tinha pedido mais uma garrafa de cerveja e instava para que Maria do Carmo tomasse “um bocadinho só”. A normalista, porém, cobria o copo com a mão, recusando. Que não: estava muito cheia, sentia uma pontinha de dor de cabeça. Botasse para a Lídia...

Ora, fizesse favor, aceitasse, por vida de seus magníficos olhinhos de princesa encantada, suplicou o redator da Província fixando os olhos em Maria que esperava o assentimento do Zuza.

— Por que não toma, D. Maria? perguntou este num tom quase imperativo. O José Pereira pede-lhe com tão bons modos...

Maria aceitou com um gesto de repugnância.

— À sua saúde, fez José Pereira tocando o copo no da normalista.

Houve um tilintar de cristais chocando-se de leve, e todos beberam ruidosamente.

— Agora vamo-nos chegando que se faz tarde, propôs Lídia levantando-se.

Mal sustinha-se em pé. José Pereira ofereceu-lhe o braço.

Uma languidez extrema tinha-se apoderado de Maria, cujas pálpebras pesavam como chumbo. Foi preciso amparar-se ao estudante para não cair redondamente.

— Uma tonteira! queixou-se ela fechando os olhos.

Não era nada, disse o outro passando-lhe o braço pela cintura; e enquanto o redator seguia pela avenida com Lídia, deixavam-se ficar naquela posição, em pé ambos e quase abraçados.

— Olhe, D. Maria...

A rapariga tentou abrir os olhos, e nesse momento, naquele silencioso recanto do Passeio estalou um beijo. Depois seguiram também, e, juntos, todos quatro foram tomar café no Restaurante Tristão.