Maria do Carmo passou uma semana inteira, oito dias consecutivos, sem ir à Escola Normal, sem pôr os pés na rua, sucumbida, mortificada, com receios de encarar os conhecidos, sem ânimo para se apresentar em público.

Se até então a vida fora-lhe um nunca acabar de desgostos e contrariedades, o que seria agora, depois de se ter comprometido levianamente para todo o resto da sua existência, entregando-se, num momento de desvario dos sentidos, aos desejos concupiscentes do padrinho?

Estava doida, não havia que ver, estava doida naquele momento, não tinha um bocadinho de juízo! Devia ter visto logo que uma mulher de certa ordem não se entrega por força alguma deste mundo a outro homem, que não seja o seu marido, o dono de seu coração, o legítimo esposo de seu corpo e de sua alma. Que desgraçada imprudência a sua! Que vergonha, santo Deus, que vergonha! Era para isso que se tinha coração, para se deixar cair numa armadilha daquela... Se fosse uma mulher forte e resoluta, capaz de todos os escândalos, contanto que soubesse guardar sua honra... bem, não teria sucedido nada. Mas, não: fora uma grandíssima tola, uma menina de escola, deixando-se levar pelo coração até o ponto de compadecer-se do padrinho! Que infelicidade!...

E chorava que nem uma criança, com a cabeça no travesseiro, metida no seu quarto, dizendo-se a mais infeliz de todas as mulheres, supersticiosa ao peso de sua culpa irremediável, com grandes manchas lívidas ao redor dos olhos, inconsolável na sua dor.

Às vezes supunha estar sonhando, como que procurava iludir-se a si própria, enxugava os olhos na ponta do lençol, via-se ao espelho e experimentava um bem-estar passageiro, um conforto muito íntimo; mas punha-se logo a pensar, a fazer consigo mesma mil conjecturas, e desandava outra vez num choro silencioso, que lhe sacudia o corpo todo em estremecimentos nervosos. Não sabia bem por que chorava; uma coisa, porém, dizia-lhe que nunca mais seria feliz em sua vida, desde o momento que, por uma condescendência imperdoável, entregara seu corpo àquele homem...

À proporção que os dias passavam, sucedendo-se numa monotonia aborrecida, uniformes como os elos de uma grande cadeia de ferro, crescia o desânimo em Maria do Carmo, cujas feições transformavam-se a olhos vistos. Tomava-lhe o rosto uma palidez de reclusa macerada pelos jejuns, cavavam-se-lhe os olhos, onde se refletia visivelmente o estado de sua alma, e os cabelos iam perdendo aquele brilho resplandecente que era o desespero do Zuza. Em uma semana sua fisio­no­mia adquirira uma expressão iniludível de dor concentrada.

No sábado recebeu um bilhete da Lídia convidando-a para jantar com ela no dia seguinte. “Espero-te sem falta. Todas as minhas amigas têm vindo me visitar, menos tu. Creio que não te dei motivo para procederes desse modo. Por andar incomodada é que ainda não fui te ver.”

Quedou-se numa imobilidade profundamente triste, com a face na mão, a olhar para a letra da amiga, escrita em papel-amizade, e ficou assim muito tempo, como num êxtase. Veio-lhe à mente o Zuza. Já não se lembrava dele, toda entregue à sua dor. Há uma semana que o não via, nem sequer tinha notícia dele, e agora o estudante aparecia-lhe vagamente na imaginação como a lembrança remota de uma coisa que se viu em sonho. As lágrimas começaram a cair-lhe dos olhos duas a duas, silenciosamente, sobre o bilhete da Lídia.

Uma... duas...

Duas horas da tarde. O amanuense ainda não tinha voltado da repartição. D. Terezinha costurava na sala de jantar, cantarolando uma modinha cearense, em desafio com o sabiá, que desferia o seu eterno e monótono dobrado, esquecido ao sol. Havia no tépido interior daquela casa a calma preguiçosa dessa hora do dia, em que se ouve o voar do moscardo impertinente e cantos de galo ao longe, nos quintais. Mariana suspirava na cozinha às voltas com as panelas, cachimbando. Sultão, esse dormia tranqüilamente o seu sono do meio-dia, aos pés de D. Terezinha, orelhas murchas, deitado de banda.

Todos os dias, invariavelmente, era a mesma quietação, a mesma sonolência, o mesmo ra­mer­rão, até que viesse o amanuense com as suas he­morróidas ou com a sua cachaça dar à casa o ar de sua graça. Freqüentemente João chegava às quatro horas, demorando-se às vezes até às cinco, o que não era muito raro.

Nesse dia, porém, antes que o velho pêndulo da sala de jantar marcasse quatro horas, entrou de chapéu na cabeça, como de costume, para não constipar, e foi direito ao quarto da afilhada.

“— Como tinha passado o dia? Muito fastio ainda?” — E puxando uma cadeira sentou-se ao lado de Maria, que se conservava deitada.

Ao pé da rede, sobre a esteira gasta, eternizava-se uma tigela com resto de caldo, onde flutuavam moscas. João fez um gesto de aborrecimento, e apanhando a tigela:

— Mariana!

Demônio de gente! Naquela casa ele é que fazia tudo, e, se havia uma pessoa doente, era o mesmo que nada.

— Mariana!

— Inhô!

— Não está ouvindo chamar, seu diabo!

D. Terezinha continuava a cantarolar, sem se dar por achada, por pirraça.

Mariana apareceu à porta do quarto, sem casaco, os seios moles dentro do cabeção da camisa tisnada, pés descalços, cabelos assanhados.

João mediu-a com o olhar, de alto a baixo, e entregando-lhe a louça:

— Por que ainda não tirou isto?

— Estava cuidando do jantar...

— Cuidando do jantar, hein? Cuidando do jantar?... Burra!...

A criada, porém, deu-lhe as costas e saiu rindo, com o seu ar idiota.

Uma pessoa somente interessava-se pela saúde de Maria do Carmo — era ele, João da Mata, cujos cuidados para com ela redobravam dia a dia.

D. Terezinha, essa nem sequer chegava à porta do quarto, resmungando sempre, rogando pragas, dizendo indiretas, que Maria do Carmo ouvia com lágrimas nos olhos.

Nunca João fora tão bom para a afilhada como agora. Trazia-lhe mimos da rua, bons-bocados, confeitos, rendas, com uma solicitude paternal, animando-a, prometendo-lhe muitas felicidades, contando-lhe tudo quanto ouvia dizer na rua, dando-lhe notícias dos conhecidos.

— Teve febre hoje? continuou ele tornando a sentar-se.

— Não sei...

— Deixe ver o pulso... Não, nem um bocadinho... Bom, não se amofine, hein, não se amofine. Amanhã, se Deus quiser, pode levantar-se. E ­baixo:

— Tolice!... Morrendo sem quê nem pra quê! Se continuas, é pior... podem até saber... Isto a gente faz cara alegre e vai para diante como as outras, minha tola... Olha a tua amiga, a Lídia... Casou e casou bem... E assim a maior parte... Deixa de tolices.

Logo no dia seguinte à noite do seu deflo­ra­mento Maria do Carmo queixou-se de fortes dores na cabeça e nos quadris, indisposição geral, e uma ausência quase absoluta de apetite. Não podia ver comida de espécie alguma nem sentir ao menos o cheiro de guisados. Tudo a enjoava provocando-lhe náuseas. Cada vez que se lembrava de João vinham-lhe arrepios na pele e “agasturas na boca do estômago”.

Pungia-lhe uma espécie de remorso, que a fazia passar horas inteiras num abatimento medonho, encafuada no quarto, sem coragem para continuar a vida como dantes. Lamentava-se como uma desgraçada: — Que vida! que vida!

Não quis almoçar e passou o dia com uma xícara de café, que a Mariana lhe levara.

D. Terezinha não se abalava: era como se Maria do Carmo não existisse. Que fosse para lá com os seus faniquitos, não tinha obrigação de criar filhos de ninguém. Antes de ir para a repartição João lhe recomendara: — Olhe: Maria amanheceu doente. Está com uma pontinha de febre, não a deixe morrer à fome, hein...

Foi como se não recomendasse, porque D. Terezinha nem sequer pôs os pés no quarto da rapariga. Limitou-se a dizer à criada: — Ouviste? Não deixes morrer de fome a mimosa...

Ah! esse desprezo, essa indiferença da madrinha doía nalma de Maria como um insulto. Lembrava-se às vezes de a mandar chamar e pedir-lhe por amor de Deus que não a tratasse assim, que não a desprezasse... Mas ao mesmo tempo achava que isso era confessar a sua culpa, porque na verdade nunca houvera entre elas causa para o mais leve rompimento, a não ser as impertinências de João da Mata. Que culpa tinha ela que o padrinho dissesse desaforos à mulher?

E assim ia passando agora, abandonada, sem uma pessoa que se interessasse verdadeiramente por sua sorte, a não ser João da Mata.

— Trataram-te bem? perguntava o amanuense ao voltar do trabalho.

— Trataram... murmurava ela.

Mas a verdade é que Maria passava uma vida miserável. De manhã, enquanto João ainda estava em casa, ele mesmo ia levar-lhe café com torradinhas de pão, mas depois, ela ficava entregue à preguiça da criada e à indiferença da madrinha, em termos de morrer de fraqueza. Davam-lhe um caldo ao meio-dia, único alimento com que ela esperava o jantar às quatro horas, quando o padrinho viesse. Por fim quase que não podia suportar aquilo, e nove dias depois, num domingo, levantou-se resolvida a ir jantar com a Lídia, ao menos por desfastio, que aquela casa era um horror! Mostrou a João a carta da amiga, acrescentando que até era bom para ela passar o resto do dia fora, no Benfica, ouvir tocar piano, distrair, enfim, porque andava muito triste.

O amanuense aprovou prontamente: que sim! mas era preciso saber se já estava completamente boa, se não sentia mais nada.

— Mais nada, passei bem a noite.

João tomou-lhe o pulso com carinho.

— Pois bem, vista-se e vamos. Amanhã pode ir até à escola, não é assim?

E, noutro tom:

— Não vale a pena a gente se amofinar por qualquer coisa, filha. A vida é isto mesmo — andar para adiante sempre com cara alegre. Vamos, vá se vestir.

Ainda não tinha dado meio-dia no pêndulo. Maria foi ao quarto, abriu baús, mais consolada, escolheu o melhor dos seus vestidos de cretone, um azul de riscados brancos, em pouco saiu ao lado do padrinho, traçando o fichu, sem dar palavra a D. Terezinha.

Ninguém na rua do Trilho, deserta àquela hora como uma rua de aldeia.

Seguiram para a Praça do Ferreira a tomar o bonde de Pelotas. Pouca gente na praça en­sombrada por suas enormes mungubeiras. Dois sujeitos, sentados um defronte do outro, jogavam silenciosamente o dominó no Café Java. Às portas da Maison Moderne famílias esperavam os bondes em pé, silenciosas, com ar de infinito aborrecimento. Dentro jogava-se bilhar. Muitas pessoas rodeavam uma das mesas para ver jogar o presidente, que, em colete, escanchado num ângulo da mesa, calculava o efeito das bolas. Maria teve um estremecimento ao vê-lo. Certo o Zuza também andava por ali... Instintivamente procurou-o com o olhar, mas ninguém que se parecesse com o estudante. O José Pereira tomava cerveja a um canto mais o Castrinho.

Os bondes iam chegando uns atrás dos outros, enfileirados.

Antes de subir para o de Pelotas, Maria lançou um último olhar à sala dos bilhares. O José Pereira sem o Zuza! Era realmente assombroso!

Mas daí a pouco o bonde rodava outra vez caminho do Benfica, e invadiu-lhe o coração uma melancolia sem causa, uma tristeza vaga que lhe deu vontade de estar só, de voltar à casa.

Lídia veio receber a amiga de braços abertos, muito alegre, de branco, com papelotes no cabelo e sandálias de cetim. — Ora, até que enfim! Já não a esperava mais, Sra. D. Maria. Noiva de fidalgo... pudera!

— Não diga isso, minha negra, não vim há mais tempo porque tenho andado adoentada. Tu não imaginas...

Cobriram-se de beijos.

Lídia mandou-os entrar para a sala de visitas.

— Como vai D. Terezinha, Sr. João? perguntou maliciosamente escancarando as janelas.

— Bem, respondeu o amanuense num tom seco, pondo o chapéu sobre uma cadeira. E logo: — Homem, isto está que nem um paraíso!

— Qual paraíso! Está nos debicando?...

— Não senhora, longe de mim tal pensamento. O que digo é a verdade: O Loureiro preparou isto à fidalga!

E ia examinando, através dos detestáveis óculos escuros, os quadros, o papel da sala, o piano, os bibelôs, com uma curiosidade infantil, estendendo o olhar de vez em quando até o interior da casa disfarçadamente.

Maria tinha-se sentado no sofá e por sua vez confirmava a admiração do amanuense. — Sim senhora, tudo muito bem arranjadinho, muito chique...

— Vejam só, vejam só a graça! repetia a outra, sentando-se ao lado da amiga.

“E o Sr. Loureiro, como ia?” inquiriu Maria.

— Bem, menina, muito atarefado com o emprego. É uma vidinha cansada, esta de guarda-livros. O Loureiro, coitado, não tem sossego de espírito. Vive na loja e ainda por cima trabalha em casa. Um horror! Tu é que estás magrinha; estou te achando tão abatida, tão pálida...

— Saudades tuas...

— Saudades, eu sei de quem...

Riram.

— Agora é que reparo, continuou Lídia muito amável, tira o fichu e vamos ver a casa.

E levantando-se:

— Preciso conversar muito contigo. Já não te lembravas de mim, hein?... Sr. João tenha a bondade de esperar um pouquinho — o Loureiro não tarda: está às voltas com a papelada.

— Oh! minha senhora...

João da Mata deliciava-se a observar os quadros e as estatuetas de terracota, de mãos para trás, como se estivesse numa exposição. Depois chegou à janela por onde entrava um arzinho puro impregnado de essência de resedás. Defronte enchia a vista o verde sombrio duma esplêndida floresta de cajueiros onde oscilavam pequenos pontos amarelos e vermelhos quebrando a monotonia da paisagem larga e igual, batida de sol. O palacete azul do Loureiro perdia-se num fundo de verdura. À direita, lá longe, na esquina de um grande sítio, passava a linha de bonde. E que frescura! Dava vontade à gente pecar muitas vezes por dia, como Adão no Paraíso, ali, assim, naquele pedacinho do Ceará, sem seca e sem política, entretendo relações sentimentais com a natureza agreste e sincera.

— Bom para se copiar um balanço, isto aqui, costumava dizer o ingênuo guarda-livros.

João pôs-se a contemplar, com um enlevo nal­ma, toda essa poesia selvagem iluminada por um sol implacável.

De súbito:

— Olá, seu Mata, como vai você? Que milagre foi este?

Era o guarda-livros, em chinelos, calça branca e paletó de seda amarelo.

João voltou-se.

— Oh!... Estava admirando a grandeza do Cria­dor... Você assim mesmo tem gosto, seu Loureiro, você é um danado, homem! Sim senhor, isto aqui é um maná! Faz vir água à boca...

— Escolhi este local por ser muito isolado da civilização. Detesto o ruído da cidade...

— Tens também a tua veia poética, hein?

— Qual veia poética! Isso de versos não é comigo. Tenho até horror à poesia. O que eu quero é o sossego, o bem-estar, o conforto...

— Fazes muito bem, filho, não há nada como se viver no seu cantinho, com a sua mulher e os seus filhos, comendo com o suor de seu rosto. Eu, se pudesse, fazia o mesmo — desertaria da capital, do centro da civilização, para viver comodamente, bem longe de toda essa porcaria que se chama sociedade. Fazes muito bem. Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele.

— E você, como vai?

— Homem, assim mesmo: nem para diante nem para trás, remando contra a maré... Têm me aparecido umas dorzinhas do lado esquerdo...

— Por que não usa você o vinho de caju?

O guarda-livros fez a apologia do vinho de caju, citando casos de curas assombrosas produzidas pelo uso quotidiano desse depurativo. Ele mesmo, Loureiro, tinha-se curado radicalmente de um dartro na perna esquerda. Na sua opinião o vinho de caju era muitíssimo superior à salsa, ao iodureto e a quanta panacéia receita-se por aí sem resul­tado.

O amanuense, porém, afirmou que o seu mal era no pulmão, que já tinha consultado ao Dr. Melo.

— Não te fies em médicos do Ceará, que dão cabo de ti. Olhe o Calado, conferente da Alfândega: diagnosticaram-lhe lesão cardíaca, e o pobre homem, coitado, estirou a canela no Rio de Janeiro, com uma enfermidade nos rins. Uns ignorantes, seu João, uns magarefes da humanidade é o que eles são. Meta-se no vinho de caju, que é o grande remédio para as moléstias do sangue.

Enquanto os dois, sentados no sofá, de pernas trançadas, iam discutindo banalidades, Lídia e Maria do Carmo comunicavam-se como boas amigas, numa intimidade franca e expansiva, abrindo-se mutuamente em confidências de colegiais felizes. Primeiro tinham percorrido toda a casa. Lídia mostrara à outra todos os seus confortos e todas as suas jóias desde a cama de casados, ampla e fresca, até o presente de noivado, um magnífico jogo de pulseiras cravejadas de pérolas, em forma de serpente, o guarda-vestidos, os vidros de essências, os chapéus, as toalhas de labirinto, feitas no Aracati e tudo mais que o Loureiro comprara com aquela bondade ingênua que o caracterizava.

Maria via tudo aquilo embasbacada, com surpresas no olhar, falando por monossílabos, examinando com inveja cada objeto que seus olhos deparavam, achando tudo muito bom, muito fino, de muito bom gosto. E a outra: olha isto, vê lá, aqui está o meu relógio de algibeira, comprado no Jaques, tu ainda não viste a minha cinta de tartaruga; é verdade, e o meu tinteiro de prata, presente do Carvalho, e o meu leque de plumas...

Foram sair na sala de jantar, e aí, uma defronte à outra, em cadeiras de balanço, Lídia entrou indiscretamente a falar no Zuza.

— Ainda o amas muito? Então fica para a ­volta?...

Maria não compreendeu a pergunta.

— Como fica para a volta?

— Sim, de certo, creio que vocês não se ca­saram...

— Não te compreendo...

— Olha a engraçada!... Quer um peitinho?!

— Por Deus como te não entendo...

— Pergunto se o casamento é quando o Zuza voltar, não te faças de tola...

— Quando o Zuza voltar?

— E então?...

— Mas voltar de onde?...

— Estás hoje muito misteriosa, minha espertalhona.

Maria teve um pressentimento: — “E o Zuza tinha ido embora?”

— Pois não embarcou anteontem?

Olhavam-se as duas sem se compreenderem, como se estivessem jogando o disparate.

— Para onde?

— Para o Recife, ora adeus! para onde havia de ser?... A estas horas anda ele bem longe do Mucuripe.

Maria do Carmo empalideceu, como se acabasse de saber uma notícia funesta.

— Estás gracejando, murmurou com voz trêmula.

— Não sabias?

— Não, não sabia...

— Pois a Província deu a notícia.

— Infame!

E Maria não pôde resistir à comoção que lhe sufocava, os olhos umedeceram-se-lhe de lágrimas, e desatou a chorar com o rosto mergulhado no lencinho de rendas.

— Que é isso, criatura? Tolice!

Lídia não contava com esse pieguismo da amiga. Ora adeus, o rapaz havia de voltar, que as­neira!

Era preciso paciência para tudo, e então? Ela mesma, Lídia, não esperara pelo Loureiro quase um ano? Tolice...

— Deixa-te disso, filha, vamos tocar piano. Estás nervosa.

Inclinada sobre a pobre rapariga, que soluçava como se lhe tivesse morrido alguém, Lídia procurava carinhosamente arrancar-lhe o lenço dos olhos alisando-lhe os cabelos, comovida.

— Então?... Levanta, vamos para a sala, que está mais fresco. Não sê criança, vamos...

— Sou uma desgraçada, disse Maria enxugando os olhos com força.

— Que desgraçada o quê, estás feito criança...

Isso acontece a todo o mundo, criatura. Vamos, vamos para a sala. Já viste o meu álbum?

Maria levantou-se devagar, preguiçosamente, com as faces escarlates, as pestanas úmidas, assoando-se; e arrependida:

— Não, fiquemos aqui mesmo; depois se toca. Não foi nada — um nervoso...

— Bem, mas não te ponhas a choramingar por aí, como uma tola. Tu sabes, a família do Zuza não quer o casamento, quem sabe se o rapaz foi obrigado a embarcar à última hora? Espera cartas, se ele não te escrever, então sim, podes ficar certa de que não te ama.

Tornaram a sentar-se.

A criada, alta como um pau-de-sebo, veio saber da Sra. D. Lídia “se a sopa era de macarrão ou de arroz”.

— De macarrão mesmo, Tomázia, faça de macarrão, mas faça uma sopa gostosa, ouviu?

E para a amiga.

— Não imaginas quanto aborreço a cozinha. Há dias em que não ponho lá os pés. Felizmente o Loureiro arranjou uma boa criada, que até já foi cozinheira do Dr. Paula Souza, da Estrada de Ferro. É assim como viste, seca e ríspida, mas uma excelente criada. Faz tudo a meu gosto.

— Mas, então o Zuza embarcou, hein? tornou Maria voltando à conversa.

— Não falemos mais nisto. Estás hoje muito sentimental e eu não quero que passes mal o resto do dia em minha casa, sabes? Não falemos mais nisto.

— Mas diz-me... aquilo foi uma tolice... diz-me, não o viste mais?

— Não. O José Pereira é que está muito nosso amigo, sabes? Tem vindo aqui duas vezes nesta semana. E que amabilidades, menina, que delicadeza! Ofereceu-se para apresentar o Loureiro ao presidente da Província, mandou-nos outro dia um camarote para o teatro...

— E tu, como passas a nova vida?

— Perfeitamente. Desejava antes morar na cidade, mas o Loureiro é muito impertinente, diz que prefere isto — paciência. Agora quando vierem os filhos, isso então... Por enquanto estou muito satisfeita. Um bocado triste isto aqui no Benfica, mas... vai-se passando. É verdade, precisas vir passar uns dias comigo, estás muito magra; o ar aqui é melhor que na cidade. Tens ido à Escola?

— À Escola? qual! Passei oito dias em casa, como uma freira, sem ir a parte alguma. Creio que não irei mais àquilo.

— Eu no teu caso faria o mesmo. Agora então, que estou casada, olha...

Fez um gesto com as mãos.

— ... bananas, não estou para suportar desaforos daquela canalha. Porque tudo aquilo é uma canalha, menina. Fazes muito bem não pondo os pés naquela feira de reputações. As raparigas ali aprendem a ser falsas e imorais. Conheço muito o tal Sr. Berredo, o tal Sr. Padre Lima e mais os outros todos. O próprio diretor... eu cá sei...

Maria estava mais consolada ante a solicitude da amiga. Achava-a mais amável e mais expan­siva.

Foram para a sala de visitas de braço trançado, nas cinturas, e Lídia cantou ao piano Non m’amava, a velha romanza sentimental, que encheu de lágrimas os olhos de Maria.

E os dias passavam uns após outros, longos, intermináveis, como uma repetição monótona que faz mal aos nervos.

Vieram as festas, o Natal e o Ano-Bom.

Maria do Carmo cada vez mais magra, sentindo-se definhar dia a dia, descrente de tudo, tinha agora uma certeza cruel que a torturava barbaramente, a certeza de que estava para ser mãe, de que muito breve o seu nome estaria completamente desmoralizado. Sentia bulir dentro de si uma coisa estranha, que lhe incomodava como uma perseguição, e mais de uma vez nos seus momentos de grande desânimo, atravessara-lhe a mente a idéia sinistra do suicídio. Sim, preferia matar-se a assistir às exéquias de sua honra na praça pública, em todas as ruas da cidade, em todas as bocas. Estava irremediavelmente perdida, não tinha pai nem mãe, nem alguém que lhe fosse sincero no mundo, pois bem, acabar-se-ia de uma vez, sem ter que dar satisfação a ninguém por isso. Era um pecado, mas não era uma vergonha, porque não teria que corar nunca diante da sociedade, como uma criminosa, como uma culpada. Não, mil vezes não! Outra, que não ela, preferisse arrastar uma existência vergonhosa, a morrer fosse como fosse.

Uma ocasião esteve prestes a ingerir uma dose de láudano, mas faltou-lhe coragem. Começou a imaginar mil coisas. Via-se morta, dentro de um caixão azul, de mãos cruzadas sobre o peito, numa sala onde havia gente chorando e um crucifixo à cabeceira entre velas de cera que ardiam lugubremente. Que horror! Recuou espantada fazendo em pedaços o vidro de veneno.

Às vezes vinham-lhe resignações, um desejo místico de ser irmã de caridade, depois que desse à luz a criança, arredar-se para sempre do mundo e ir viver na Santa Casa de Misericórdia, curando os enfermos, metida nas suas vestes azuis, debaixo de um grande chapéu de asas, dedicar-se toda a Deus, como uma santa.

Dera para devota; não faltava à missa aos domingos, na Sé, vestida com muita simplicidade e rezava sempre com uma contrição admirável, ao deitar-se e ao acordar, defronte da oleografia do Coração de Jesus.

Foi em casa da Lídia que ela teve a certeza de achar-se grávida. Até então ignorava certos segredos da maternidade, certos fenômenos da fisiologia amorosa, que nunca lhe tinham dito, nem mesmo as companheiras de Escola, “aliás versadas em assuntos dessa natureza”.

Tinha ido passar uma semana com a amiga, nas festas, e um dia a Lídia disse-lhe que “estava pronta” e que ela, Maria, havia de ser a madrinha do primeiro filho.

Então, aproveitando a oportunidade, Maria do Carmo quis saber como as mulheres tinham a certeza de estar grávidas.

Lídia explicou tudo minuciosamente: a suspensão das regras, os antojos, as dores na madre e, finalmente, os primeiros movimentos do feto no útero. Depois leram junto a Fisiologia do matrimônio de Debay, que o Loureiro tivera o cuidado de comprar, especialmente o capítulo — Da Calipedia ou Arte de Procriar Filhos, o mais importante, na opinião da esposa do guarda-livros.

— Todo o meu desejo, dizia a Lídia com o livro sobre a perna, todo meu desejo é que o pequeno menino ou menina se pareça com o presidente da Província. Ainda no último baile em palácio não tirei os olhos dele.

E Maria nesse dia, ao jantar, teve um grande enjôo da comida, cruzando o talher logo no primeiro prato, inapetente. Não havia dúvida, “estava pronta” também, como a Lídia, e esta idéia tornou-se uma idéia fixa, de todos os dias, de todas as horas, de todos os minutos. Ela com um filho, Jesus! Decididamente estava perdida para sempre no conceito honesto da gente séria. Não passaria mais de uma simples rapariga que “já teve filho”! As revelações da Lídia tinham-lhe aberto os olhos; sentia agora perfeitamente bulir a criança, e até, na sua alucinação, parecia-lhe ouvir os vagidos do bebê. Se fosse possível evitar o seu desenvolvimento, matá-lo mesmo no ventre... Mas, não: seria uma barbaridade, uma malvadez. Afinal de contas era seu filho, filho de suas entranhas, embora fruto de um crime...

E Maria agoniava-se, fazendo essas considerações e mil outras conjecturas absurdas, sem coragem para esperar o desenlace daquele drama secreto de que ela era a protagonista. Vivia assom- brada e não raro caía num desfalecimento que lhe tirava a ação do corpo e do espírito.

Por uma espécie de instinto, previa todas as conseqüências do seu estado e pressentia o desprezo acerbo que havia de lhe cair sobre a cabeça implacavelmente, como uma grande mão de ferro, esse desprezo convencional e hipócrita de uma sociedade ávida de escândalos, cevando-se da desgraça alheia, banqueteando-se em torno da vítima, como para torturá-la ainda mais.

E enquanto a Lídia ganhava, com sorrisos de triunfo as simpatias dessa mesma sociedade que a poucos meses a maldizia, ela, Maria do Carmo, sobre cuja reputação nunca pairara a sombra de uma nódoa, via-se pouco a pouco ludibriada, tratada como uma mulher à-toa, num abandono completo, sem amigas, sem honra, pobre, sem pai nem mãe, mísera cadela que a gente enxota a pontapés de dentro de casa por safada e indecente.