Em poucos meses o estado interessante de Maria do Carmo foi carecendo de cuidados mais sérios, e João da Mata assim o julgou, tratando logo de arranjar uma casa, um sítio nos subúrbios onde ela pudesse, tranqüilamente e sem escândalo, alijar a carga, desembuchar a criança. Mas onde e como poderia ele dispor as coisas do melhor modo, sem despertar a curiosidade pública? Esta era a grande questão que afligia o amanuense, cada vez que o seu olhar vesgo descia sobre o ventre da afilhada, vendo-o crescer dia a dia, tomar uma forma esférica iniludível, arredondar-se, arquear-se para fora numa conve­xidade característica e esmagadora. — “E agora?” interrogava-se ele, passando a mão na calva. O caso ia se tornando grave, urgia fazer qualquer arranjo logo e logo, antes que a Teté rebentasse por aí com quatro pedras a acusá-lo violentamente, atirando-lhe em rosto a sua infidelidade, o seu crime, a sua pouca-vergonha. A rapariga engordava a olhos vistos; só um cego não veria dentro daquela redondeza uma criatura humana em formação.

Toda ela — o ventre, os seios, os braços, o rosto — inchava, adquiria um cunho extraordinário de maturidade precoce. Notava-lhe agora asperezas na pele, uma cor seca de folha sazonada e certo ar amolentado que se traduzia numa sonolência infinita e na prematura tendência para o abandono de si mesma.

Com efeito, Maria, apenas com quatro meses de grávida, tinha perdido muito da antiga expressão insinuante e viva de sua fisionomia. Na idade em que a mulher, como a flor, em plena exuberância dos tecidos, desabotoa numa singular ala­cridade de cores, toda frescura e beleza, ela que não transpusera ainda os dezoito anos, olhava a vida com uma indiferença única, estiolando ali assim entre as paredes daquela casa sem ar e sem luz, esperando resignadamente o seu fim. Queria ver até quando duraria aquele estado de coisas, até onde a queriam levar!

Já não chegava à janela com vergonha de ser vista pela vizinhança e pelos conhecidos — refugia­ra-se, como uma culpada, no ádito misterioso do seu quarto, egoisticamente, sem ao menos lembrar-se da Lídia que não a esquecia e que lhe mandava de onde em onde presentinhos, recados e abraços.

E João inquietava-se, procurando meios de evadir-se da alhada em que se metera com risco de um escândalo medonho!

Havia um mês que Maria do Carmo caíra com o ataque no meio da sala. D. Terezinha ruminava sutilidades para descobrir uma sombra sequer, um vestígio que confirmasse de uma vez as suas suspeitas. Batera todos os aposentos, todos os cantos da casa, indagara da lavadeira se não vira alguma nódoa, alguma mancha na roupa da afilhada; acordava vezes sem conta, alta noite, prestando ouvidos a qualquer ruído, por mais leve, e nada! absolutamente nada! Faziam-lhe espécie os modos reservados de Maria, esse impenetrável desgosto que a punha triste, com um ar esquisito de “galinha choca”. Alguma coisa havia, por força, era capaz de jurar.



D. Terezinha nunca mais dormira com João da Mata e era só quem passava bem naquela casa; até estava criando banha no pescoço. Pudera! uma vida relativamente calma, senhora absoluta de seu nariz, ganhando um dinheirão com o negócio de rendas que mandava para o norte pelo despenseiro do vapor, tudo corria-lhe às mil maravilhas. Queria ter um pezinho para rusga, isso queria. E se ainda “fazia vida” com o Janjão, era por condescendência, para não dar escândalo; achava feio uma mulher deitar-se com um homem e depois — passe muito bem — abalar por esse mundo afora, como uma doida, atrás de aventuras. Não era mulher para essas coisas; o que queria era o seu descanso — comer bem, dormir bem, passar bem; não admitia que a fizessem de tola.

Tinha uma amiga sincera — a Amélia, senhora do Dr. Mendes. Essa, sim, sabia-lhe apreciar as virtudes, dar-lhe importância, tratá-la com consideração, mesmo porque ela, Terezinha, trabalhava para ganhar a vida honradamente.

— Você é tola, Teté, a gente não deve se matar, dizia-lhe a mulher do Dr. Mendes.

— Lá isso é verdade, mas você o que quer? É fado, é mania...

As conhecidas admiravam-lhe a boa disposição para o trabalho. Sentava-se à máquina às dez horas do dia, cabelos úmidos sobre a toalha de banho estendida nos ombros, e labutava três, quatro horas consecutivas a cantarolar modinhas, costurando para o fornecedor da polícia.

E sempre gorda, sadia e forte!

— Mulher mouro! dizia João da Mata aos ­amigos.

Uma tarde, ao voltar da rua, o amanuense entrou alegre, como se tivesse tirado a sorte grande na loteria, saboreando um charuto mau que lhe dera o Guedes. Vinha um pouco toldado.

— Olha esse jantar! bradou para dentro, atirando fora a ponta do charuto. E começou a cantar desafinadamente os Sinos de Corneville, então muito repisados:

 
Vai marinhei... ro,
voa ligei... ro,
velas à brisa
no espelho do mar!

E logo:

Nunca percas a esperan... ça,
quando houver temporal,
que há de vir a bonan... ça,
e depois o... final!

— À cena a Naghel, à cena a Naghel! bradava o amanuense batendo as palmas com fúria.

— Ainda mais esta! resmungou D. Terezinha na sala de jantar.

— Olha essa lambugem! tornou João enfiando pelo corredor.

Estava num de seus dias felizes. Foi até à cozinha acompanhado pelo Sultão que lhe pulava às pernas, ganindo alegre. Mariana mexia o pirão escaldado de farinha num velho alguidar de barro, com a saia arrepanhada na cintura, o casaco desabotoado, exibindo, como de costume, o seu detestável colo nu.

— Como vai isto, ó estafermo! rosnou o amanuense, espalmando a mão em cheio nas ancas da rapariga.

— Sô Janjão!... fez esta pudicamente.

E João, trauteou, fazendo festa ao cão:

Mariana diz que tem
sete saias de veludo...

— Tenha modos, homem de Deus, repreendeu D. Terezinha. Tenha juízo, dê-se a respeito!

— É boa! Então já não se pode ser alegre?! Ora muito obrigado!

Durante o jantar declarou que a Maria, no dia seguinte, domingo, iria passar uma semana ao Cocó, em casa da tia Joaquina, conhecida pela velha dos cajus.

— Faz ela muito bem, aprovou D. Terezinha com enfado, cortando o cozido.

E João, muito meigo, olhando por cima dos óculos:

— Você compreende, ela anda adoentada, teve outro dia aquele ameaço... não tem apetite, e o médico, o Dr. Azevedo, disse-me a mim que aquela gordura não vale nada, é toda postiça, é uma gordura falsa... Sim, a rapariga, coitada, precisa tomar o seu leitinho, descansar um pouco...

Maria, que se sentara defronte da madrinha, não pôde ocultar seu embaraço. Fez-se escarlate, e muito submissa:

— É, se a madrinha consentir...

— Ainda mais esta! Podes ir até para a China quanto mais para Cocó!...

— E tu, não queres ir também? perguntou João com certa frieza.

Mas D. Terezinha torceu o beiço com desdém: — “Só se estivesse doida, credo!”

— Vá você com a sua afilhada...

Ah! se eu pudesse passar uma temporadinha fora... suspirou João. Mas qual, minha filha, não posso faltar um só dia à repartição, que o chefe não venha logo com os seus arrebatamentos: que o governo não sustenta vadios, que o empregado público deve ser infalível como o papa, e tanta asneira!... Coitado, já está velho e suspira, como eu, por uma aposentadoria.

Houve um ligeiro silêncio.

— Pois é isto, tornou o amanuense limpando o bigode com a toalha. Está ouvindo, Maria? Prepara o seu bauzinho, a sua roupinha. Amanhã, depois da missa da madrugada. É para lá do Outeiro, na Aldeota, um sitiozinho, um lugar muito bom, muito saudável. A casa é que é pobre, mas ora! pobres somos nós também...

Os talheres batiam nos pratos com força, João falava mastigando, com a boca cheia, cortando o invariável e sediço lombo assado, com uma voracidade espantosa.

Galinhas debicavam debaixo da mesa, cacarejando. Sultão, muito rechonchudo, sentado nas patas traseiras, orelhas em pé, alongava o olhar súplice para cima, à espera que lhe caísse um osso ou uma pelanca. Ouvia-se o miar desesperado de um gato na cozinha. De onde em onde a voz de Mariana punha em debandada os parasitas de crista: — “Xô, galinha! Xô...”

Havia um rumor de asas pesadas, e um velho galo de cauda furta-cor estendia o pescoço num cocorocó estridente e prolongado que fazia João fechar os ouvidos, berrando para a Mariana que enxotasse “aquele demônio”.

A sala de jantar era uma espécie de alpendre assentado sobre grossos pilares de tijolo, abrindo toda para o quintal, onde, àquela hora, via-se roupa lavada a enxugar, de uma brancura de hóstia, ao redor da cacimba. Fazia ângulo à esquerda com a cozinha, e, à direita, um velho muro escalavrado separava o quintal de outros quintais, com uma medonha dentadura de cacos de garrafas.

Desde as três horas começava a fazer sombra no alpendre e às quatro já se podia respirar ali a frescura das ateiras.

Sobre a mesa nada mais que uma toalha com manchas de gordura, pratos e copos em desordem, uma moringa muito estragada, bananas e la­ranjas.

D. Terezinha fazia bocados de pirão com os dedos em pinha e atirava ao Sultão.

— Boa alma aquela tia Joaquina, continuou o amanuense acendendo o cigarro. O mestre Cosme, esse é um homem pobre, coitado, mas honesto como poucos. Vive de vender lenha na feira... Bom velho!

— Leva estes pratos, Mariana, disse D. Tere­zinha erguendo-se.

Tinha jantado num momento.

A tia Joaquina, conhecida no mercado pela velha dos cajus, e mais o mestre Cosme, eram um pobre casal que morava na Aldeota, cerca de um quilômetro da cidade, numa casinhola de taipa, dentro de um largo cercado de pau-a-pique plantado de cajueiros, todo verde no inverno, com um grande poço no centro, cavado toscamente, e ao fundo do qual sangrava um veio de água crista­lina.

Era aí que viviam, há anos, desde a seca de 77 —, entre brenhas de camapus e matapasto, à sombra dos cajueiros, felizes, sem filhos. Corria-lhes a vida como um abundante manancial de águas límpidas em leito de areia.

Pela manhã, muito cedo, mestre Cosme saltava da rede armada no alpendre, enfiava a grossa camisa de algodão e lá ia com uma xícara de café no estômago, atrás da jumenta, da sua inseparável jumenta, que lhe dava o pão de cada dia e que carinhosamente chamava-a Coruja. O dócil animal costumava pastar à beira da cerca, tão feliz quanto o dono cuja presença punha-lhe uma expressão reconhecida no olhar manso. Mestre Cosme metia-lhe o focinho no freio, armava-lhe a cangalha, e abalava para o morro do Cocó a explorar a mata, a fazer lenha para vender no mercado a dez tostões a carga. Um dinheirão!

Mestre Cosme não queria vida melhor. Ao pôr-do-sol voltava com os seus ricos dobrões na ponta do lenço, escanchado na Coruja, sem cuidados, debaixo de seu grande chapéu de palha de carnaúba.

Tia Joaquina ficava trocando os bilros na almofada. Mas, em chegando o fim do ano, ia também à cidade fazer o seu negócio, com uma grande cuia na cabeça: — “Olha o cajuzinho bom do Cocó! Olha o cajuzinho bom!” E voltava com a cuia vazia e com a isquinha de fígado para a ceia ou com o cangulinho fresco de alto-mar.

Chamavam-na a velhinha dos cajus, porque os cajus que tia Joaquina vendia tinham um sabor especial, eram doces como açúcar.

Queriam-se os dois como um casal novo em lua-de-mel. “Meu velho” e “minha velha” — é como se tratavam.

João da Mata conhecia-o de longa data, desde a seca, por sinal naquele tempo tinham uma filha moça — também Maria (Maria das Dores) que morrera das febres em 77. João era comissário de socorros e fazia-lhes muitos benefícios. Mestre Cosme morava, então, no Pajeú, numa palhoça miserável.

— Tempo de calamidades! murmurava o velho ao lembrar-se da seca.

O amanuense viu o mestre Cosme no mercado e teve a idéia de lhe falar na ida de Maria do Carmo para a Aldeota. — “Tinha um grande favor a pedir ao mestre Cosme” começou, pousando a mão no ombro do velho.

— Pois diga lá... Seu Joãozinho sabe que a gente vive no mundo para servir uns aos outros...

— É isto, mestre Cosme. A Maria, minha afilhada, tem andado doente, coitada, está fraquinha, precisa tomar um pouco de leite fora da cidade... Eu queria que ela fosse passar uns tempos no Cocó, a rapariga tem um fastio que até mete pena...

O bom velho ficou admirado: “— Só isso?... Ora, seu Joãozinho, isso não é favor! Eu até estimo. A menina pode ir quando quiser. É casa de pobre, vossemecê bem sabe, mas a gente sempre veve...”

— Pois está bem, mestre Cosme, a pequena vai domingo cedo. Diga à tia Joaquina. Deixe estar que não lhe esquecerei. Lembra-se da seca?...

— Se me alembro? Ora, ora, ora, como se fosse hoje. Comi muita farinha do seu Joãozinho, pois não hei de me alembrar? Aquilo é que foi morrer ­gente!...

— Bem. Você ainda mora na mesma casa, não é assim?

— Sim senhor, pra lá do Osil; na Aldeota, à direita de quem sobe...

— Muito bem, adeus. Domingo, sem falta. Tome, é para você comprar de fumo.

E João deu um níquel ao velho.

Estava tudo arranjado.

O amanuense começou a ver claro na espessa caligem de seu espírito. Decididamente era um homem de recurso!

No domingo, com efeito, depois da missa da madrugada na Sé, Maria do Carmo e o padrinho seguiram para a Aldeota, a pé.

Ainda tremeluziam estrelas no alto. Para as bandas do Coração de Jesus, por entre coqueiros que se avistavam da praça do Colégio, nuvens esfarripavam-se numa soberba apoteose de púrpura e violeta.

Tinham-se apagado as luzes da cidade e pouco a pouco, imperceptivelmente, como numa mágica, sucediam-se as nuances, cada vez mais claras, esbatendo o contorno das coisas há pouco difundidas numa meia-tinta escura. Ia-se fazendo gradativamente a majestosa mise-en-scène do dia, clarões rasgavam-se de um e de outro lado do horizonte, incendiando a fachada dos edifí­cios e o cabeço dos montes longínquos, iluminando tudo...

Ao passarem pela Imaculada Conceição, a normalista olhou por entre as grades do colégio. Lá estavam, como antes, sombrios e silenciosos, os quatro pés de tamarindo, numa imobilidade tímida e respeitosa. Ouvia-se lá dentro o coro abafado das educandas — ora pro nobis... ora pro nobis. Maria teve um estremecimento, um vago desejo de viver como as irmãs de caridade; mas passou logo...

Ia vestida de preto, com o pescoço e a cabeça envolvidos num fichu cor de creme, segurando o Manual da Missa.

João ao lado fumava distraidamente, muito preocupado.

Chegaram à praça do Asilo. O grande edifício, à esquerda, abria as janelas sonolentas para o descampado. Havia luz dentro. À direita, no meio da praça, a “cacimba do povo”, cor de tijolo, em forma de quiosque, desolada àquela hora, tinha um aspecto misterioso quase lúgubre. E adiante, lá longe, por trás da floresta baixa e espessa, bran­quejavam os morros do alto Cocó.

Já era dia. Mulheres em tamancos passavam para a cidade falando alto, de cachimbo no queixo, cuia de hortaliças na cabeça, ar desenvolto, xale trançado.

João da Mata perguntou a uma delas “se ainda estava longe o mestre Cosme?”

— Um, um, respondeu a mulher, meneando a cabeça, sem tirar o cachimbo da boca.

E voltando-se:

— Está vendo aquele cercado lá adiante, aquela casinha branca na encruzilhada? Pois é ali.

— Obrigado.

Corria um ar fresco e matinal. Revoadas de periquitos, num vôo de flecha, cortavam a limpidez da atmosfera e desciam de um e de outro lado da estrada sobre o matagal espesso e verde. As primeiras chuvas do ano tinham fecundado a terra cuja exuberância ostentava-se agora prodigiosamente na esplêndida paisagem que os olhos de Maria do Carmo viam com admiração. Sentia-se um fartum de terra úmida que fazia gosto. As matas da Aldeota, de um verde-gaio pitoresco, estendiam-se por ali afora, a perder de vista, eriçadas pelo terral, sob a larga irradiação do sol nascente.

Aquela estrada branca de areia, larga e interminável, desenrolava-se aos olhos da normalista como uma via-láctea de ilusões, como um caminho de ouro que a conduzisse a uma outra vida, completamente outra daquela que até ali vivera, a uma vida sossegada, sem hipocrisias e sem traições, sem dores e sem lágrimas...

Fazia-lhe bem, como um tônico, o ar fresco da manhã que lhe bafejava o rosto. Sentia-se melhor respirando aquele ar, bebendo toda a selvagem frescura do campo, todo o delicioso, o inefável perfume que se levantava dos crótons e das salsas-­bravas.

— Que dizes a isto, hein? perguntou João bruscamente, apontando o campo. Vais engordar minha filha, vais passar bem. Para longe a tristeza, para longe as mágoas, e deixa correr o marfim.

E descrevendo um círculo com a mão es­pal­mada:

— Como está isto bonito!

Não há notícia de inverno igual. Mete inveja a quem mora naquele inferno da cidade. Uma delícia, Maria, isto é que é vida! O que vais en­gordar!

Aproximaram-se da casinha de mestre Cosme. Vacas babujavam silenciosamente e voltavam a cabeça com uma vagarosa melancolia no olhar.

Os velhos já estavam de pé na porteira do cercado.

— Ora muito bom-dia! saudou o amanuense.

— Louvado seja N. S. Jesus Cristo, corres­pon­deu tia Joaquina recuando. — Então é esta a sua afilhada?

— Esta mesma, tia Joaquina. Moça feita e... bonitona, como está vendo.

— Entrem, entrem, convidou mestre Cosme solícito.

— Sim senhor! fez a velha admirada. Bonita mesmo, pode dizer! Coitadinha, parece que vem tão cansada...

Maria teve um sorriso consolado. Estava, com efeito, cansada e pálida.

Houve logo um princípio de intimidade entre ela e os velhos que não cessavam de contemplar o seu belo perfil de noviça envolto numa penumbra de melancolia.



Provisoriamente instalada no seu bucólico e nemoroso retiro da Aldeota, longe de tudo que lhe arreliava o juízo, a um bom quilômetro das rabugices de D. Terezinha e do mau hálito de João da Mata, outra foi com efeito a vida de Maria do Carmo. O viver simples e sossegado de mestre Cosme e da tia Joaquina, o aspecto úmido da mata resplandecendo num fundo verde-claro e onde variados matizes da flora agreste punham efeitos surpreendentes, o bom leite puro e fresco bebido pela madrugada à porta do curral, e, à tardinha, quase ao anoitecer, o violão de mestre Cosme gemendo saudades de um país remoto e abençoado, a liberdade que se bebia ali na larga convivência da natureza, tudo isso robustecia-lhe o corpo e a alma, inoculando-lhe no sangue um conforto viril, ressuscitando-lhe o quase extinto amor à vida, à alegria, à mocidade, e às apagadas reminiscên­cias do bom tempo em que ela, ainda inocente, em Campo Alegre, ia esperar o papai que voltava da vazante!

Que mudança na sua vida, que transformações desde 77! Antes nunca tivesse saído da Imaculada Conceição para se meter numa escola sem disciplina e sem moralidade, sem programa e sem mestres, e onde uma rapariga, filha de família, é expulsa da aula porque outra de maus costumes escreveu obscenidades na pedra!

Mil vezes a Imaculada Conceição com os seus claustros, com as suas capelas, com o seu silêncio respeitoso, com a sua disciplina austera; ao menos não teria voltado à casa dos padrinhos, àquela maldita casa de hipócritas, e não teria dado espetáculos com o Sr. Zuza.

Ah! o Zuza... Vinha-lhe um forte desejo de vingar-se do estudante, de caluniá-lo, de culpá-lo pela sua desgraça. Àquela hora o que não estariam dizendo dela na cidade?...

Pensava essas coisas no seu pobre quartinho de taipa abrindo para a natureza, enquanto a tia Joaquina fazia rendas.

Dentro de um mês era notável a influência do campo na sua saúde. Criara novas cores, novo sangue, muito solícita agora nas preocupações domésticas.

— A menina Maria está criando banha! admirava a tia Joaquina. Sim senhora!

— O leite, tia Joaquina, o leitinho é que tem me feito bem.

João da Mata aos domingos, invariavelmente, ia ver a afilhada, afetando grande interesse por seu estado. Dizia-lhe as novidades, os escândalos, dava-lhe lembranças da Lídia Campelo, e, ao retirar-se prevenia: — “Se houver necessidade mandem-me dizer.”

— Vá descansado, seu Joãozinho, vá descansado, que há de chegar o dia...

Mas o estado de Maria do Carmo não inspirava cuidados. O útero revigorava, funcionando com a regularidade precisa duma excelente máquina moderna, por sinal Maria, desde que se mudara para a Aldeota, nunca mais sentira pontadas.

O amanuense exultava, alegre e feliz. A princípio receara um aborto, mas agora tinha a certeza de que triunfavam as qualidades procriadoras da rapariga.

— É, pensava ele, roendo o canto das unhas. Um bom útero é tudo na mulher: equivale a um bom cérebro!

E esquecia-se a filosofar na vida intra-uterina, admirando-se muito de que uma simples gota de esperma pudesse gerar um homem!