Ninguem imagina que bellos talentos sorve essa voragem do mundo, que chamam a vida elegante.

São como as arvores luxuriantes que se vestem de linda folhagem, e consomem toda a seiva nessa gala esteril e ephemera. Nunca ellas dão fructo, nem siquer flôr.

Horacio de Almeida era uma de tantas intelligencias, desperdiçadas no incessante bulicio da moda.

Muitos poetas, dos que têm seu nome estampado em rosto de livro, não empregaram na fabrica de seus versos o atticismo, a ispiração e a graça com que o nosso leão torneava no baile um galanteio, ou aguçava um epigramma.

Pintores são festejados, que não sabem o segredo dos toques delicados, e do supremo gôsto, que Horacio imprimia no laço de sua gravata, em suas maneiras distinctas, nos minimos accidentes de seu trajo apurado.

E a phisiologia?

Poucos homens conheciam como Horacio o coração da mulher; porque bem raros o teriam estudado com tanta assiduidade. O mais sabio professor ficaria estupefacto da lucidez admiravel, com que o leão costumava lêr nesse cahos da paixão, que a anatomia chamou coração de mulher.

A razão é simples. O professor estudou no gabinete; consultou as obras dos mestres, colligiu observações alheias, e arranjou um systhema sobre o que não soffre regras; sobre a paixão cuja essencia é o imprevisto, o anomalo, o indefinivel.

Ao contrario, Horacio tinha estudado na realidade da vida; devassára os refolhos do polypo; lhe sentira as pulsações; e fizera experiencias in anima vilis. Não fatigou sua memoria com a inutil bagagem dos termos technicos e das noções scientificas: lia os hierogliphos do amor com a linguagem garrida do homem a moda.

A perspicacia do olhar, a profundeza da investigação e a certeza de observação, com que o nosso leão sondava o abysmo do coração, e rastreava no semblante da mulher os vagos symptomas de uma inclinação nascente, ou de uma affeição expirante; só os grandes medicos possuem tão altos dotes.

Assim gastava Almeida a mocidade, desfolhando seu bello talento pelas sallas e pontos de reunião. As riquezas de sua elevada intelligencia, as ia elle esparzindo nas elegantes futilidades de um ocio tão laborioso, como é o far niente de um leão.

Consumir o tempo não se apercebendo de sua passagem; livrar-se do fardo pesado das horas sem occupação; ha nada mais difficil para o homem que ignora o trabalho?

Si o Almeida poupasse desse tempo tão esperdiçado alguns momentos no dia para dedical-os a um fim sério e util, á sciencia, á litteratura, á arte, que bellos triumphos não obteria sua rica imaginação servida por um espirito scintillante?

Mas o nosso leão tinha á este respeito idéas excentricas.

— A politica, dizia elle, quando não dá em especulação, passa a mistificação. A sciencia, si escapa de mania, torna-se uma gleba em que o sabio trabalha para o nescio. Litteratura e arte são plagios; quem póde fazer poesia e romance ao vivo, não se dá ao trabalho de reproduzil-os; nem contempla estatuas, quem lhes admira os modelos animados e palpitantes.

Com taes paradoxos, Horacio não achava emprego mais digno para a intelligencia, do que a difficil sciencia de consumir gradualmente a vida, e atravessar sem fadiga e sem reflexão por este valle de lagrimas, em que todos peregrinamos.

A mulher era para elle a obra suprema, o verbo da creação. Toda religião, como toda felicidade; toda sciencia, como toda poesia, Deus a tinha encarnado nesse mixto incomprehensivel do sublime e do torpe, do celeste e do satanico; amalgama de luz e cinzas; de lodo e nectar.

— Amar, é adorar a Deus na sua ara mais santa, a mulher. Amar é estudar a lei da creação em seu mais profundo mysterio, a mulher. Amar é admirar o bello em sua mais esplendida revelação; é fazer poemas e estatuas como nunca as realisou o genio humano.

Mas o que sentia Horacio era apenas o culto da fórma, o fanatismo do prazer: O amor, o verdadeiro amor consiste na possessão mutua de duas almas; e essa, póde o homem illudir-se alguma vez, mas quando se realisa é indissoluvel.

Nada separa duas almas gemeas que prende o vinculo de sua origem divina.

O mancebo admirava na mulher a formosura unicamente: apenas artista, elle procurava um typo. Durante dez annos atravessára os sallões, como uma galeria de estatuas animadas e vivos paineis, parando um instante em face dessas obras primas da natureza.

Vieram uns após outros todos os typos; belleza ardente das regiões tepidas, ou suavae gentileza da rosa dos Alpes: o moreno voluptuoso ou a alvura do jaspe; a fronte soberana e altiva ou o gesto gracioso e meigo; o talhe opulento e garboso ou as fórmas esbeltas e flexiveis.

Seu gôsto foi-se apurando; e ao cabo de algum tempo tornou-se difficil. A belleza commum já não o satisfazia; era preciso a obra prima para excitar-lhe a attenção e commovel-o.

Mas os sentidos se gastam; os mesmos primores da formosura cahiram na monotonia. Já o leão não sentia pela mais bella mulher aquelles enthusiasmos ardentes da primeira mocidade. Seu olhar era frio e severo como o deum critico.

Então, começou o moço a amar, ou antes a admirar a mulher em detalhe. Sua alma embotada carecia de um sainete. Foi a principio uma boca . bonita, cofre de perolas, de sorrisos, de beijos e harmonias. Veiu depois uma trança densa e negra, como a asa da procella que se inflamma. Uma cintura de sylphide, um collo de cisne, um requebro seductor, um signal da face, uma graça especial, um não sei que; tudo recebeu culto do nosso leão.

Como um conviva, a quem as iguarias do banquete já não excitam, sua alma babujava na salla essas golosinas. Mas afinal embotou-se; e o prazer não foi para ella mais do que a vulgar satisfação de um habito.

O moço cortejava as senhoras como uma occupação indispensavel á sua vida, como o desempenho da tarefa diaria; mas sem a menor commoção.

Amar era um entretenimento do espirito, como passeiar á cavallo, frequentar o theatro, jogar uma partida de bilhar.

O amor já não tinha novidades nem segredos para elle, que o gozára em todas as fórmas; na comedia e no drama; no idilio e na ode. Como Richelieu, diziam até que elle já o havia calcado com o tacão da bota.

Nestas circumstancias bem se comprehende a impressão profunda que nelle produzia a mimosa botina, achada naquella manhã.

Almeida tinha admirado a mulher em todos os typos e em todos os seus encantos; mas nunca a tinha amado sob a fórma seductora de um pésinho faceiro. Era realmente para sorprender. Como lhe passára desapercebido esse condão magico da mulher, á elle que julgava ter esgotado todas as emoções do amor?

Succedeu, como era natural, que uma vez percutidas as energias dessa alma ennervada por longa apathia, a reacção foi violenta. Inflammou-se a imaginação e especialmente com o toque do mysterio que trazia a aventura. Si o dono da botina, o sonhado pésinho, se mostrasse desde logo, não produziria o mesmo effeito; não teria o sabor do desconhecido, que é irmão do prohibido.

Imagine, quem conhecer o coração humano, a vehemencia dessa paixão, excitada pelo tédio do passado, e alimentada por uma imaginação ociosa. De que loucuras não é capaz o homem que se torna ludibrio de sua fantezia?

As extravagancias de Horacio, contemplando a botina, verdadeiras infantilidades de homem feito, bem revelavam a agitação dessa.existencia, embotada para o verdadeiro amor, e gasta pelo prazer.

Não se riam, homens serios e graves, não zombem de semelhantes extravagancias; são ellas o delirio da febre do materialismo que ataca o seculo.

Essa paixão de Horacio, o que é sinão uma aberração da alma, consagrada ao culto da materia? A voracidade insaciavel do desejo vai criando dessas monstruosidades incomprehensiveis.

Succede á esta embriaguez do amor o mesmo que á embriaguez do alcool. A principio basta-lhe o vinho fino e aristocratico; depois carece da aguardente; e por fim já não a satisfaz a infusão de gengibre em rhum; isto é, a lava de um volcão preparada á guisa de grogue.