Seriam duas horas da tarde.

Durante a manhã tinha caído sobre a cidade uma forte neblina, que molhara as calçadas.

Leopoldo dirigia-se a casa pela Rua dos Ourives. Naturalmente vinha pensando na desconhecida que não vira desde a noite do teatro. Sua paixão era intensa e ardente; mas vivia de si mesma, nutria-se da própria seiva. Esperava com plena confiança de seu amor.

A pequena distância do canto da Rua do Ouvidor viu ele de repente a moça que passava na companhia de outras pessoas. Amélia voltara o rosto. Seu olhar cruzou rapidamente com o olhar do mancebo. Ela estremeceu com o costumado calafrio, e acelerou o passo.

Vendo-a sumir-se, encoberta pela esquina, o mancebo também se apressou para acompanhá-la; mas chegou tarde. A moça e as pessoas, que iam em sua companhia, acabavam de entrar em um carro: na elegante vitória que já conhecemos. Leopoldo apenas vira um pé, que na precipitação de subir, levantara demais a saia.

Sem consciência do que fazia, precipitou-se para a portinhola do carro. O lacaio que a fechava nesse momento, embargou-lhe o passo. Quando o carro partiu na direção de São Francisco de Paula, Amélia inclinou-se e lançou de esguelha um olhar vivo para a esquina.

Leopoldo ficara na calçada imóvel e extático de surpresa.

O pé que seus olhos descobriram, era uma enormidade, um monstro, um aleijão. Ao tamanho descomunal para uma senhora, juntava a disformidade. Pesado, chato, sem arqueação e perfil, parecia mais uma base, uma prancha, um tronco, do que um pé humano e sobretudo o pé de uma moça.

Os traços especiais da beleza de Amélia não tinham deixado na memória de Leopoldo a mínima impressão, da primeira vez que a vira, apesar de contemplá-la demoradamente. Entretanto o defeito não lhe escapou, embora passasse de relance diante de seus olhos.

Parece uma singularidade; mas não é. Ninguém conta as pétalas da flor que admira; ninguém repara na forma especial de cada uma das partes de que se compõe um todo gracioso; porém a menor mácula se destaca imediatamente.

É por isso que certos homens, não podendo distinguir-se entre a gente sisuda e honesta, fazem-se nódoas da sociedade; tornam-se vícios e torpezas. Assim adquirem a celebridade, que não obteriam com sua virtude ambígua e seu mesquinho talento.

O Castro, que não admirara o matiz da rosa, notou a mácula e desgostou-se dela. Ele sentia-se com forças para amar o feio e o desgracioso, mas não o disforme, o horrível. Essa aberração da figura humana, embora em um ponto só, lhe parecia o sintoma, senão o efeito, de uma monstruosidade moral.

Triste, acabrunhado por pensamentos acerbos, o moço continuou seu caminho pela Rua dos Ouvires em direção a casa. Mal havia andado alguns passos, arrependeu-se; não queria levar à sua habitação esse primeiro transbordamento de um dissabor tão profundo; era melhor deixá-lo escoar-se antes de recolher à solidão habitual. Se tivesse alguma coisa a fazer! Qualquer ocupação bem aborrecida e maçante, que lhe servisse de antídoto ao desgosto íntimo!

Excogitou. Havia ali perto, na Rua Sete de Setembro, uma pequena loja de sapateiro, ou antes uma tenda, porque além do balcão via-se apenas uma tosca vidraça, contendo a obra de três oficiais que aí trabalhavam.

A loja pertencia a um mestre fluminense, que trabalhara por algum tempo na casa do Guilherme e do Campàs, e se iniciara portanto em todos os segredos da arte. Ninguém a exercia com mais habilidade, esmero e entusiasmo do que ele; sua obra, quando queria, não tinha que invejar ao produto das melhores fábricas de Paris, se não o excedia na elegância e delicadeza.

A razão cardeal de toda a superioridade humana é sem dúvida a vontade. O poder nasce do querer. Sempre que o homem aplique a veemência e perseverante energia de sua alma a um fim, ele vencerá os obstáculos, e se não atingir o alvo, fará pelo menos coisas admiráveis. Mas para que o homem se entregue assim a uma idéia e se cative a um pensamento, é necessário ser atraído irresistivelmente, ser impelido pelo entusiasmo.

É o entusiasmo que faz o poeta e o artista, o sábio e o guerreiro; é o entusiasmo que faz o homem-idéia diferente do homem-máquina. A fábula de Prometeu' não exprime senão a alegoria desse fogo celeste d'alma, que anima as estátuas de Galatéia, embora depois dilacere o coração como a águia do rochedo. Uma faísca dessa eletricidade moral opera maravilhas iguais à centelha do raio. O que é o telégrafo a par com a eloqüência?

O Matos tinha o entusiasmo de sua arte; descobrira nela segredos e encantos desconhecidos aos mercenários. Para ele o calçado era uma escultura; copiava em seda e couro, assim como o cinzel copia em gesso e mármore. Os outros artistas da forma reproduzem todo o vulto humano ou pelo menos o busto; ele só tinha um assunto, o pé. Mas que importância não tomava a seus olhos esta parte do corpo! Era preciso ouvi-lo, em algum momento de arroubo, para fazer idéia de sua admiração por esse membro da criatura racional.

Depois de trabalhar muitos anos em casas francesas, o mestre fluminense resolveu estabelecer-se por sua conta. Alugou uma pequena loja de duas portas, onde trabalhava com dois oficiais. A necessidade de ganhar o pão o obrigava a tornar-se mercenário, fazendo obra de carregação para vender barato. Mas no meio dessa tarefa ingrata tinha ele suas delícias de artista. Meia dúzia de fregueses, conhecedores da habilidade do sapateiro, preferiam seu calçado ao melhor de Paris, e o pagavam generosamente. Essas raras encomendas, o Matos as executava com enlevo; revia-se em sua obra, verdadeiro primor.

Leopoldo não era um freguês da última classe; ele não conhecia a voluptuosidade de um calçado macio, antes luva do que sapato; seu pé não era um enfant gaté, um benjamim acostumado a essas delícias; desde a infância o habituara a uma vida rude e austera entre a sola rija e o bezerro. Além de que seus haveres não chegavam para tais prodigalidades.

O moço pertencia à classe dos fregueses da obra de carregação, e preferia a loja do Matos pela modicidade do preço, e boa qualidade do cabedal, como do trabalho.

Que misteriosa associação de idéias trouxera à lembrança de Leopoldo, naquele momento, a tenda do sapateiro? E por que motivo se dirigiu ele para ali onde estivera na véspera, e não para qualquer outro lugar, em que poderia melhor espancar seu dissabor?

O motivo, nem ele mesmo o sabia naquele instante.

— Bom dia! As botinas estão prontas? disse entrando.

O Matos, que atendia a alguns fregueses perto da vidraça, olhou-o surpreso:

— Não disse ontem a V. Sa que só para o fim da semana?

— É verdade!

— Tinha entre mãos esta encomenda. Mas já acabei; agora posso ajudar os companheiros.

O Matos indicara alguns pares de calçado que estavam no mostrador sobre folhas de papel e prontos a serem embrulhados.

Leopoldo, chegando-se para o balcão, principiou a examinar a obra acabada, com a distraída curiosidade de quem deseja esperdiçar alguns momentos, para escapar a um aborrecimento ou para apressar um prazer. Era trabalho fino do mestre, e contudo não excitaria grande atenção da parte do moço, se não fosse um par de botinas de senhora já usadas e meio encobertas pelo papel com outra obra. A medida era enorme no comprimento e na altura; por isso, como pelo feitio, devia excitar-lhe reparo.

Na véspera quando viera à loja, casualmente observara a obra que o Matos estava acabando. Vendo há pouco na Rua do Ouvidor o pé monstruoso da moça, tivera uma confusa e tênue reminiscência das botinas da loja. Fora esse o fio misterioso que o conduzira insensivelmente àquela casa. Agora compreendia a encadeação: a botina monstro pertencia sem dúvida ao pé aleijão.

Leopoldo depois que entrevira sob a orla do vestido o pé da moça, ainda alimentava uma dúvida, que pretendia cevar com todas as sutilezas e argúcias de seu espírito. Talvez ele visse mal; talvez a sombra, o estribo do carro, qualquer outro objeto o tivesse iludido. O aleijão só existia em

sua imaginação; fora um desvario dos sentidos. Com efeito, como supor que uma senhora pudesse andar graciosamente com semelhante pata de elefante?

Mas as botinas aí estavam sobre o balcão que não lhe deixavam a menor dúvida. O pé disforme existia; era aquele o seu molde, o seu corpo de delito, e por ele se podia ver quanto devia ser horrível a realidade. Agora Leopoldo podia apreciar os traços parciais que lhe tinham escapado pela manhã; esse pé era cheio de bossas como um tubérculo; não arremedava nem de longe o contorno dessa parte do corpo humano: era uma posta de carne, um cepo!

Junto dessa deformidade morta, inventada para cobrir a deformidade viva, havia outra obra que chamara a atenção do mancebo por sua singularidade. À primeira vista era um volume semelhante ao das botinas monstruosas embora de linhas regulares: parecia uma ligeira almofada preta sobre a qual se elevasse uma botina de senhora, muito elegante apesar de comprida. O tubo cinzento ficava oculto sob frocos de cetim escarlate. Do rosto ao bico descia um galho de rosas, cujas hastes cingiam graciosamente, como uma grinalda, toda a volta do pé até o calcanhar.

Uma das botinas ainda tinha dentro a fôrma; enquanto a outra já estava sem ela. Naturalmente o Matos procedia àquela operação quando foi distraído pelos fregueses e compradores; deixara-a pois em meio, deitando em cima da obra, para encobri-la, uma folha de papel.

A fôrma não podia passar despercebida ao observador. Vendo pouco antes a botina disforme, Leopoldo a tinha considerado o modelo exato do pé monstruoso, que ele avistara. Enganara-se: a botina era já o disfarce, a máscara do aleijão. Sua cópia ali estava em horrível nudez, no grosseiro toco de pau, cheio de buracos e protuberâncias.

Mas se essa observação acabou de esmagar o coração do mancebo, levou insensivelmente seu espírito a apreciar pela primeira vez a superioridade do Matos em sua arte. Ali estava a imagem do aleijão, o calçado que outros sapateiros lhe fariam para cobrir a monstruosidade, sem a dissimular. Entretanto, o mestre fluminense conseguira, por um esforço feliz, desvanecer a deformidade sob a aparência de uma botina elegante.

A almofada sobre que parecia descansar a botina, era um solado alto porém oco, onde as carnes moles do pé monstruoso, comprimidas pela botina superior, podiam abrigar-se.

Os frocos de cetim e as grinaldas de rosas enchiam as covas e desvaneciam as protuberâncias ósseas, com muita delicadeza, sem avolumar o tamanho do coturno. Na sola negra se debuxava, em proporção à botina superior, a alva palmilha com seus contornos harmoniosos; de modo que olhando-se andar a pessoa, não se perceberia facilmente o tamanho do calçado.

Acabara o Matos de aviar os fregueses, e chegando-se para o balcão, incomodou-se com ver o moço a observar a obra; ia talvez interrompê-lo rispidamente, quando percebeu em seu rosto uma expressão viva de ardente admiração. O artista ficou lisonjeado com esse elogio tão eloqüente em sua mudez; e à contrariedade sucedeu a satisfação do amor-próprio.

Foi Leopoldo, que, percebendo junto de si o sapateiro parado, afastou-se do balcão, receando ter sido indiscreto. Ia sair, quando entrou na loja um lacaio de libré azul com vivos de escarlate e branco. O mancebo o reconheceu pelas feições; era o mesmo que o impedira de chegar à portinhola do carro, na Rua do Ouvidor.

— Ah! exclamou o Matos, avistando o criado. Está quase pronto.

— Não posso esperar! replicou o lacaio com a insolência do rafeiro de casa rica.

— É só embrulhar.

Leopoldo disfarçava; fingindo olhar o calçado exposto na vidraça, viu de esguelha o sapateiro tirar a fôrma da outra botina, bater o ponto e dar o último polimento à sua obra; feito o que arranjou o embrulho.

— Está bem amarrado? perguntou o lacaio. Olhe que da outra vez já se perdeu uma botina por sua causa, e eu é que levei a culpa.

— Não tenha susto; desta vez está bem seguro, respondeu o Matos.

Foi-se o lacaio; e Leopoldo com o semblante carregado de tristeza, despediu-se, arrependido de ter ido à loja. Que saudades tinha da sua dúvida!

— A dúvida, pensava ele, é ainda um raio de esperança!