A casa nobre de Azevedo resplandecia. A melhor sociedade da corte concorrera ao suntuoso baile.
Toda a aristocracia, a beleza, o talento, a riqueza, a posição e até a decrépita fidalguia, estavam dignamente representadas nas ricas e vastas salas, adereçadas com luxo e elegância: duas coisas que nem sempre se encontram reunidas.
Eram nove horas. Ainda o baile não começara, e notava-se na reunião a gravidade solene, o grande ar de cerimônia, que serve de prólogo
às festas esplêndidas. Os cavalheiros percorriam lentamente as salas, observando o íris deslumbrante que formavam os lindos vestidos das senhoras; mas admirando especialmente as estrelas que brilhavam nessa via-láctea.
Amélia acabava de sentar-se.
Horácio foi logo saudá-la, e cumprimentou-a pelo bom gosto e delicadeza de seu traje.
Realmente não se podia imaginar um adorno mais gracioso. O vestido era de escumilha rubescente, formando regaços onde brilhavam aljôfares de cristal; nos cabelos castanhos trazia uma grinalda de pequenos botões de rosa, borrifados de gotas de orvalho.
Um poeta diria que a moça tinha cortado seu traje das finas gazas da manhã; ou que a aurora vestindo as névoas rosadas, descera do céu para disputar as admirações da noite.
— Dançaremos a primeira, disse Horácio.
A moça corou:
— Sim.
Laura passava. Amélia chamou-a, mostrando-lhe um lugar a seu lado. Horácio afastou-se para deixar as duas amigas em liberdade; mas principalmente para poupar a Laura a contrariedade de sua presença. Desde a noite do teatro o leão compreendera que a moça lhe votava antipatia.
Conversando com a amiga, Amélia descobriu defronte, no vão de uma janela, o vulto de Leopoldo, absorvido em contemplá-la com um olhar profundo e intenso, que servia de válvula às exuberâncias de sua alma. Sentindo-se sob a influência desse olhar, a moça inclinou a fronte, como um sinal de submissão, e abandonou-se à contemplação do mancebo.
De vez em quando procurava ler de relance no rosto de Leopoldo as impressões de seu espírito, os movimentos de sua alma. Pressentiu que o moço desejava aproximar-se dela para lhe falar, mas não se animava; a solenidade da festa, a grande concorrência, a proximidade de Laura, tolhiam o mancebo, cujo caráter fora da intimidade se confrangia, por uma espécie de pudor, próprio das almas virgens.
Amélia sentiu um desvanecimento, descobrindo aquela fraqueza no homem cujo olhar a dominava, e lembrando-se que ela podia nesse instante protegê-lo Não há para a fragilidade da mulher maior orgulho e prazer, do que observar a fragilidade no homem. Vinga-se da tirania do sexo forte.
— Vamos sentar-nos de outro lado, Laura?
— Para quê? Estamos tão bem aqui.
— Dali vê-se melhor a sala; e deve estar mais fresco.
— Como quiseres.
As duas moças atravessaram a sala e foram tomar lugar justamente no vão da janela onde Leopoldo se achava. Amélia conservou-se algum tempo de pé, com o pretexto de arranjar a cadeira, mas para dar ocasião a Leopoldo de falar-lhe. O mancebo adiantou-se com efeito e cumprimentou.
Amélia estendeu-lhe a mão com interesse, para animá-lo.
— Terei a felicidade de dançar uma quadrilha...
— Qual?
— A última!
— A última? repetiu Amélia rindo-se.
— Sim; depois que tiver dançado com todos, replicou o moço completando seu pensamento com o olhar.
— Então a sexta.
A orquestra abriu o baile com uma brilhante sinfonia, depois da qual deram o sinal da primeira quadrilha. Rompeu-se então a simetria, e formou-se o turbilhão.
Durante a contradança, Horácio não se esqueceu do pezinho adorado; e procurou todos os meios de o descobrir nalgum momento de confusão ou descuido. Chegou até a fingir estouvamento em algumas das marcas com o fim de embaraçar o vestido da moça.
— Eu me sento! disse-lhe Amélia irritada.
— Bárbara, non hai cor! replicou-lhe Horácio com as palavras do romance.
— O seu coração está no botim? perguntou-lhe a moça com despeito. — O meu, a senhora bem o sabe, já não me pertence, pois lho dei há muito tempo; e ando-o agora procurando no chão, onde creio que o deixou esmagado um tirano que eu adoro e me repele. Mas conto com a senhora para movê-lo em meu favor. Sim?
— Não, respondeu a moça agastada.
— Realmente eu não compreendo. Será possível que a senhora tenha ciúmes dele? perguntou Horácio gracejando.
A moça olhou-o com expressão.
— Tenho sim, tenho ciúmes!
Terminada a quadrilha, Horácio, depois de algumas voltas de passeio pela sala, deixou a moça no seu lugar e desceu a escada de mármore que levava ao jardim, iluminado com lampiões de diversas cores. Havia ao lado da casa, e ao longo de uma latada, mesas de ferro para tomar sorvetes e refrescos. Horácio, dirigindo-se para esse lugar, avistou Leopoldo sentado a uma das mesas.
— Oh! por cá também, Leopoldo?
— É verdade; contra meus hábitos.
— Está esplêndido! Não achas?
— Sem dúvida. Mas parece que não tem grande interesse para ti.
— Por que pensas assim?
— Vens te esconder aqui, quando se dança. Devias deixar isso para mim, que sou uma espécie de misantropo, uma alma errante neste mundo das fadas.
— Para ser franco, devo-te confessar, que neste baile, onde se acham reunidas as mais bonitas mulheres do Rio de Janeiro, onde nada falta do que pode tornar brilhante uma festa, nem o luxo, nem a riqueza, nem a concorrência, nem as notabilidades de toda espécie, neste baile só há uma coisa que me interessa; uma coisa bem pequenina, e por isso mesmo de um encanto inexprimível
— Que condão será esse tão poderoso?
— Disseste a palavra. E um condão, um verdadeiro condão de fada, que me transformou de repente, e fez do senhor um escravo humilde e submisso.
— Mas no fim de contas o que é?
— Um pezinho!
Tendo proferido esta palavra, Horácio julgou ter dito tudo quanto era possível exprimir na linguagem humana. Um pezinho, era aquele ente adorado que ele entrevia nos sonhos dourados de sua imaginação; era o primor, que deixara impressa a sua forma delicada na mimosa botina. O moço desenhava na fantasia aquele ídolo de suas adorações; e acreditava que Leopoldo devia, como ele, extasiar-se ante a maravilha da natureza.
Longe disso, Leopoldo depreendera das palavras do amigo, que ele estava sob a influência de uma paixão materialista; que ele amava a forma, e levava sua idolatria a ponto de adorar não a forma completa, a imagem viva e palpitante da mulher, mas um fragmento, um trecho apenas dessa forma.
— Pois para mim também, disse Leopoldo, só há neste baile como neste mundo uma coisa que me ilumina a existência.
— A glória?... aposto.
— Um sorriso, apenas.
Horácio não pôde reprimir um gesto desdenhoso. O sorriso era para ele uma das coisas mais triviais; tinha-os colhido tantas vezes, e em lábios tão puros e mimosos, que já não lhe excitavam a atenção. Eram como as flores de um vaso que todos os dias se substituem.
— Vais dançar? perguntou o leão.
— Agora não.
— Pois façamos uma coisa. Conta-me a história de teu sorriso, que eu te contarei a história de meu pezinho.
— Começa então. Cabe-te a preferência, disse Leopoldo.
— Eu a aceito; porque o objeto de meu culto não tem igual no mundo.
Horácio acendeu o charuto. Ele não tinha o menor interesse em saber a história de Leopoldo; o que desejava era um pretexto para falar do objeto de sua adoração, e vazar o que tinha n'alma.
— Há cerca de dois meses, passando pela Rua da Quitanda, achei por acaso sobre a calçada um objeto que tinha caído de um carro. Era uma botina, mas que botina!... um mimo, um primor, uma coisa divina!
"Não podes fazer idéia, não, Leopoldo. Sabes que tenho amado mulheres lindas de todos os tipos, alvas ou morenas; formosuras de todas as raças, desde a loura escocesa até a brasileira de tranças negras; adorei-as, uma depois de outras, e às vezes ao mesmo tempo, essas diferentes irradiações de beleza. Pois confesso-te que nunca o sorriso ou o beijo da mais sedutora dentre elas me fez palpitar o coração como aquela botina.
"Pensem os fisiologistas como quiserem, o pé é a parte mais distinta do corpo humano; sem ele a estatura não teria a nobreza que Deus só concedeu à criatura racional.
"O pé revela o caráter, a raça e a educação. Cada uma das feições e dos gestos desse órgão de nossa vontade tem uma expressão eloqüente. Há quem não adivinhe em um pé delicado e nervoso a alma de fina têmpera? Ao contrário um pé chato e pesado é a prova infalível de um gênio tardo e pachorrento.
"Virgílio, o poeta mais elegante que tem existido compreendeu que Vênus ocultasse nos olhos do filho, na selva líbica, a beleza imortal de seus olhos, de seu sorriso, de suas formas sedutoras; mas não aquilo que era sua essência divina, sua graça olímpica. Foi pelo andar que ela revelou-se deusa; et vera incessu patuit dea.
"Nunca sentiste o doce contato do pé da mulher amada? É uma sensação deliciosa que penetra nos seios d'alma. Podes apertar-lhe a mão, cingi-la ao seio, beijá-la. Nada vale aquele toque sutil que abala até a última fibra.
"Faze pois idéia do que eu sentia. E a botina não era senão a estátua ou a efígie do pé encantador que a havia calçado. Ali estavam impressos seus graciosos contornos, sua forma suave.
"Apaixonei-me por esse pezinho, que eu nunca vira, que não conhecia. Sagrei-lhe minha alma como ao ignoto deo de minhas adorações."
Horácio exagerou então os esforços por ele empregados para descobrir o misterioso ídolo de suas adorações, e referiu os fatos que já conhecemos. Teve porém a discrição, rara em um leão, de não revelar os nomes; receava ainda que lhe arrebatassem a conquista.
— Finalmente, concluiu ele, o acaso me fez descobrir a dona do pezinho que em vão buscava. Hás de crer, Leopoldo? Conhecia essa moça, que é realmente encantadora; diversas vezes achei-me com ela em sociedade e nunca sentira à sua vista a menor comoção. Mas quando soube que a ela pertencia o tesouro, adorei-a. Para ver o pezinho que sonhei, estou disposto a fazer a maior das loucuras, casar-me!...
— É esta a tua história?
— Dize antes meu poema. Sinto não ser poeta para escrevê-lo.
— Pois, se me permites franqueza, dir-te-ei que realmente o desenlace que lhe pretendes dar será uma loucura. O casamento, quando não une duas almas irmãs criadas uma para a outra, é uma espécie de grilheta que prende dois galés; o suplício de duas existências condenadas a se arrastarem mutuamente Tu não amas essa moça, Horácio.
— Não a amo?
— Não!
— Quando lhe vou fazer o sacrifício que nenhuma outra mulher obteve de mim?
— Não passa de um capricho. Essa moça é para ti um pé e nada mais.
— A mulher que amamos tem sempre um encanto, uma graça especial. Às vezes são os cabelos; outras os olhos; tu amas o sorriso; eu o pé.
Leopoldo levantou os ombros.
— Sem dúvida. A alma da mulher, como a do homem, se revela em cada pessoa por uma feição mais distinta, por uma expressão mais eloqüente. Mas não é isto que sucede contigo. Tu sentes a idolatria da beleza material; procuraste sempre na mulher a forma, o amor plástico; à força de admirar os mais lindos rostos e os talhes mais sedutores, ficaste com o sentido embotado, precisavas de algum sainete que estimulasse teu gosto. Viste ou imaginaste um pezinho mimoso e gentil: tornouse logo para ti o tipo, o ideal da beleza material, que te habituaste a adorar.
Horácio soltou uma risada:
— Olha, Leopoldo, cá para mim o platonismo em amor seria um absurdo incompreensível se não fosse uma refinada hipocrisia. Esses mesmos que adoram a mulher como um anjo, de que se nutrem senão da contemplação de beleza material que tratas com tamanho desprezo? É possível que uma mulher feia seja amada por aberração do gosto; mas fazer disso uma regra geral!...
— Ninguém pretende semelhante coisa. A beleza é um encanto, uma graça, um invólucro da mulher; mas não deve ser exclusivamente a mulher, como a pétala é a flor, e a centelha é a luz.
— Sofisma! Tira a beleza à mulher amada e verás o que fica; o mesmo que fica da flor que murcha e da chama que se apaga: pó ou cinza.
— Queres que te prove o contrário? Ouve a minha história.
— Ah! é verdade. A história de teu sorriso?
— Sim.