Arcanjo dos Santos não contara com a hipótese de ser enganado quando casara. É uma hipótese que raramente azeda o gesto heróico dos que se decidem a manter as bases da sociedade. Ele trabalhara, esforçara-se, obtivera como prêmio duma vida brilhantemente nula uma linda e rica esposa. Para o seu espírito era a derradeira etapa, a da apoteose da mágica. De então para diante poderia viver bem, apenas com a preocupação do esperanto, do vegetarismo e de não desagradar ao Grande Chefe, que o fizera deputado. Nada mais simples. Com o esperanto era sócio propagandista, com o vegetarismo fartava-se de macédoines de legumes. Com o Grande Chefe mandava-lhe um presente semanal e votava à sua vontade. Era feliz, integralmente feliz. Mas a felicidade não dura. A carta anônima insultara-o, chamando-lhe de nomes feios, considerando-o um desbriado. Não há homem que se não exacerbe, quando o chamam de desbriado, mesmo tendo a certeza de que o é. Arcanjo não tinha essa certeza. Ficou agitadíssimo. Ia sair. Voltou, foi ao gabinete de trabalho, virgem de trabalho, deixou-se cair numa cadeira, tentou pensar, coordenar idéias sem resultado, ergueu-se, passeou agitado, quis escrever uma carta, apesar de no gabinete não poder deixar de ver quem entrava, chamou o criado algumas vezes.

— A senhora, já veio?

— Ainda não, excelência.

Pediu os jornais, onde encontrou (em todos) o nome da esposa e o nome dele, do outro na primeira página, amarrotou as gazetas, tornou a passear, mandou vir a criada de quarto.

— A senhora disse que voltava para almoçar?

— Sim, excelência. Ela foi ao jardim ver o local para a festa.

Fez um gesto de despedida, lembrou-se de que nunca tinha comprado um revólver. Passou assim duas longas horas. A espera exasperava-o. A carta tomara proporções enormes. Seria de fato? Ela de quem gostava tanto, ela, tão bonita! E tendo tudo, nada lhe faltando! No fundo a revelação irritava-o. Iria brigar, sair dos seus hábitos, arrostar com um enorme ridículo, perder a sua mulherzinha. Como? Tragédia? Sangue? Divórcio o divórcio num casal sem filhos, sendo ela rica?

Era preciso que Alice chegasse imediatamente para a explicação. A explicação! Que horror...

Alice chegou. Vinha abstrata no seu automóvel. Viu-a sentar, por trás da vidraça. Preparou-se como para uma cena tremenda, mas digna. Ao ouvir-lhe os passos na sala próxima, o coração batia-lhe.

— Estás à minha espera? - fez Alice entrando.

— Há duas horas.

— Por quê?

Aquela pergunta natural, feita naturalmente, desconcertou-o. Respondeu esquivo:

— Ora, por quê? Por nada...

— É curioso. Mas não falas a verdade.

— Julgas?

— Juro.

— Então queres saber?

— Pois claro, meu querido.

— Teu querido. Faze favor, deixa de ironias.

— Ironias?...

— Há frases que ofendem, quando não são verdadeiras.

Alice ficou pasma. Não ser verdadeira ela, uma criatura nature por excelência. Caminhou para o marido, ofendida sinceramente.

— Dizes que eu minto?

— Pois eu sou lá o teu querido?

— Que bicho te mordeu?

— Que bicho, hem? Um bicho que esmagarei, podes ficar certa.

— Mas falas por enigmas, homem de Deus, dize logo o que tens a dizer.

— Digo que vamos partir, que seja como for, ouviste? nunca me prestarei a um papel ridículo...

— Ridículo?

— Sim, ridículo. E não negues, não negues. Tenho a prova.

Os criminosos e as senhoras inteligentes têm um poderoso self control. Aquelas palavras noutro ambiente fariam a perturbação. Alice compreendeu, entretanto, que o perigo estava longe e afastá-lo de todo, imediatamente seria preciso.

— Queres ver que tens ciúme de mim? Provas, provas! Mas perdes. te a cabeça. Onde a prova? Prova de quê? Exijo a prova. É a primeira cena que temos. Será a última. Ah! Este Rio! Bem não queria vir. Mas ou me dás a prova ou não fico mais nem um minuto aqui.

Ela gritava. Arcanjo teve que dizer, indo fechar a porta:

— Fala baixo, olha que escutam.

— Que importa? Hei de falar como quiser! A prova! vamos ver a prova de um crime, que ainda não sei qual seja!

Ele tirou a carta do bolso, estendeu-lha, com uma penosa sensação de ridículo, a sensação de que tinha feito uma enorme tolice. Alice pegou-a febril, leu-a de um jato. Era numa meia dúzia de insultos com péssima ortografia, o seu caso, o nome de Jacques, o escândalo. Ficou um instante, olhando o papel imundo a ver o que devia fazer. Soltar uma gargalhada seria teatral. Achou melhor atirá-la com um gesto de nojo.

— Isto? Mas é vergonhoso o que acabas de fazer, vergonhoso!... Uma carta anônima! Todas as senhoras da sociedade, todos os homens de posição recebem cartas anônimas. Nós estamos na terra da carta anônima. Sabes o que é isto? Inveja. Inveja de ti, da tua felicidade. E deste importância a essa cousa asquerosa! Nem vale a pena defender-me. É idiota. Jacques então, o filho de D. Malvina, uma criança. Que diabo! Tu não és um imbecil. Jacques é tão teu amigo, está sempre conosco. Quando? Onde? Havias de descobrir um gesto ao menos que denotasse mais do que amizade... Pela mesma razão serei amanhã amante do Chagas, do Dória, do marido da Frias. Francamente, sempre fiz outro juízo de ti.

Falava alto, agitada.

— Mas, Alice...

— Cale-se, cale-se ao menos. O senhor dá-me inteira liberdade, sabe que eu gosto de ser admirada. O Jacques é, entretanto, como de casa. Nunca pensei, meu Deus, nunca! Pobre rapaz! De resto, o senhor naturalmente seguiu-me...

Ela disse a frase que desde o começo lhe apertava o coração com um esforço enorme. O marido ergueu-se.

— Oh! Alice, isso nunca!

— Tinha a carta no bolso, podia acompanhar-me.

— Recebi-a ao sair há pouco. Sou incapaz.

— Oh! oh! conheço-o bem. Guardou a infâmia, acompanhou-me dias e dias e não achando o que dizer, veio lançar-me uma injúria sem fundamentos.

— Mas não, Alice, não digas tolices...

— É triste, é muito triste, depois de tão pouco tempo de casada... Se papai soubesse!

Caiu numa poltrona. Arrancou o chapéu num gesto de desespero. O marido, lamentável, procurava palavras.

— Não, tudo, menos pensares que te segui.

— Mas se acreditaste nesta infâmia!

— Quem te disse que acreditei?

— Acreditou, acreditou...

E de repente prorrompeu em soluços. Os seus olhos vermelhos choravam. Era uma verdadeira artista. As mulheres são assim: nascem feitas. As que têm o temperamento de honestas, nunca aprendem a mentir. As que, embora boas, são mais lealmente filhas d'Eva, não precisam de curso, de aulas, de experiência. Revelam-se no campo de batalha de chofre, generalíssimas. Alice era encantadora, boa, gostava mesmo de Arcanjo, como em geral gostava dos homens, sentia que o pobre marido sofresse, talvez o enganasse mais pela cabeça do que pelo coração, mas mentia, mentia sempre e naquele momento gozava em se ver acreditada, queria vê-lo submetido. Arcanjo, nervosíssimo com as lágrimas, aproximou-se, afagou-lhe os cabelos.

— Não chores, não chores... que é isso?

Os soluços redobraram. Então curvou-se, falando baixo, comovido, com as palavras que se têm para as crianças, com o gesto que para com elas temos, quando as consolamos de males imaginários, beijando-a, animando-a.

— Meu bem... então, então... seu maridinho... não foi por mal. Enfim, compreendes, eu também fiquei fora de mim... Bom, acabou-se, acabou-se, dê um beijo no seu marido.

— Não... não, nunca mais!

— Louquinha, vamos, um beijo...

A vida na sua essência é feita de palavras que se não dizem. Nas cenas mais sérias de uma existência, há uma série de cousas que se sentem, outras que se esboçam, outras, cujas palavras erram nos lábios sem serem pronunciadas. O resto é o que se fala. Quase sempre o inútil. Há homens que morrem ignorantes do seu próprio eu, porque nunca tiveram a coragem de dizer alto o que talvez pudessem ter pensado. Arcanjo pensava muita cousa de modo vago. Era raiva, medo de escândalo, credulidade, desejo, exasperação, luxúria, pena, amor, vontade física de se afirmar. Viu-se de joelhos a acariciar a esposa, que soluçava baixinho; beijou-lhe as mãos, beijou-a no colo por cima do vestido, beijou-a na testa, beijou-a na boca, afogando-lhe o não de recusa. E aquele beijo, num caos de dúvida vaga, foi decerto o melhor beijo da sua vida de casado.

Ela talvez o tivesse sentido um pouco - que o amor é superior sempre. Depois ergueu-se como uma convalescente, macerada, pisada, triste. A cena de minutos antes passava a velha recordação de um pesadelo, tão afastada estava.

— Almoças?

— Não sei.

— Deixa arranjar-me. Estou sem apetite.

— Eu também.

— Vais à Câmara?

— Tenho de ir.

— Até já.

— Adeus, meu amor.

Como Alice estava macia e boa! Foi vagarosamente, com um gesto de saudade desolada até o seu toucador. E aí, ainda vestida, sentou-se, escreveu três ou quatro linhas a Jacques, mandou-as pela criada de quarto, vestiu-se só, pensando em Jacques, na boca de Jacques, no moreno rosa da sua face glabra, mais sua do que antes. A entrava da carta excitava-a. O amor é um sport.

Arcanjo foi à Câmara. Era preciso votar uma ordem do dia cheia de concessões e de pensões. As concessões passariam todas com pedidos de grandes influências políticas, que de algumas seriam mesmo futuros diretores. As pensões, só passariam duas para senhoras bem de fortuna mas também com esplêndidas relações entre os situacionistas. As outras, as das viúvas pobres e sem conhecimentos seriam cortadas. O país precisava fazer economias. Ele coitado, ia acabrunhado. Parecia-lhe, vagamente, que toda gente era autora da carta e por conseqüência, que toda gente sabia, desconfiava, caluniava-o, insultava-o. A frase mais vazia parecia-lhe uma alusão clara, definitiva. Meteu-se no recinto, evitando conversas, a fingir que ouvia o discurso de um célebre orador empolado e soporífico. Quando Jacques apareceu, viu-o logo. Mas fingiu não o ver. Um estado esquisito, como se lhe estivessem apertando o epigastro e torcendo a nuca, dava-lhe uma raiva surda contra o rapaz. Achou-o tolo com a sua elegância; achou-o idiota, fingindo-se importante no seu anonimato; analisou-lhe a insignificância de jovem pavão, com desprezo, com mordacidade, com ódio. E sabendo-se esperado, vingava-se, vingava-se, não sabia bem de quê, mas deliciosa, lenta, enebriantemente. Ao ouvir o contínuo, estava resolvido a não falar. O homem de sociedade, porém, dominou. Veio. Veio e foi pela primeira vez com aquele adolescente, o superior, o maior, o mais velho, o homem. Estava aliviado. Terminadas as votações, voltou a casa, reintegrado. Se alguém lhe dissesse alguma frase dúbia, reagiria a bofetada. Ninguém lha disse. Alice recebeu-o ainda mais convalescente. Passara a tarde inquieta e ao mesmo tempo desejosa de saber quem teria tido a lembrança infame da carta. Jacques não lhe mandara dizer nada e pela primeira vez, vendo o marido entrar da rua, sem uma comissão sua, indagou:

— Então?

Ele esquivou-se:

— Votações, um aborrecimento...

— E eu que nunca fui à Câmara!

— Fazes o que alguns colegas conseguem.

— Deve ser divertido.

— E cacete. Saíste?

— Oh! não. Fiquei para ai, lendo um romance. O dia está tão úmido! Mas vamos, à noite, à casa do Pedreira.

— Para quê? - fez ele brusco.

— Oh! filho, a festa de caridade! Já nem te lembras que sou de várias comissões. E tu também. Temos reunião do comitê hoje.

Ele não disse nada. Estavam sós, era um tête-a~tête. Pela primeira vez, depois de chegar ao Rio, tinham um tête-a~tête, sem nada para dizer, com Alice tão submissa.

— Por que não vais ao chá do Gouveia?

— Vai tu. Eu, não.

— Prefiro ficar.

— Ficaremos os dois. Um five-o'clock a sós. Queres?

Ele sorriu, vendo-a retornar à menina. Há quanto tempo não tomavam chá os dous sós! Desde o Rio Grande, chá com torradas à noite, enquanto o sogro estancieiro bebia erva... Ficou. Leram os jornais da tarde juntos. Um deles esquecera o nome de Alice na notícia da grande festa de caridade. Era oposicionista. Jantaram sós, como quem come depois de uma viagem. Não tinham comido o dia inteiro. Alice já estava vestida para ir aos Pedreira. À sobremesa pediu para dar antes um passeio pela praia, no automóvel.

— Faz uma noite tão úmida.

— Que tem? É fechado.

Foram. Eram oito horas da noite e a Beira-Mar estava deserta, angustiosamente deserta no banho de luz dos combustores e das lâmpadas elétricas. De quando em quando passava um automóvel rápido ou uma vagarosa tipóia com gente suspeita arrulhando no silêncio o amor que por ser a hora não deixa - nem mesmo esse! - de ser doloroso. Todo aquele deserto parecia crescer sob a chuva deslumbrante das luzes. Era como se do céu um turbilhão de estrelas se despegasse e levemente viesse pousar por aqueles postes, fazendo uma colossal apoteose de luz. A distância as luzes eram brancas, eram verdes, eram azuis, eram de um verde pálido, de um jalde apagado, e reunidos aos grupos de cinco e três, recamavam as largas avenidas de um dossel de pedrarias irradiantes, de um estranho desenho feito de raios de astros. Casas graves e fechadas, palácios que pareciam villas de Florença estragadas pelo arranjo de arquitetos bisonhos, aumentavam a tristeza fúnebre. Em algum banco esquecido, um labrego, um par, o vazio.

— É tão bonita a luz.

— Lindo.

Ela reclinara-se. Ele, naturalmente, pegara-lhe na mão quente. Era a primeira vez que naquele automóvel o marido tomara uma deliberação tão pouco na moda para os maridos. Na casa do Dr. Justino Pedreira, quando chegaram, já a sessão começara. Estavam todos, inclusive Godofredo de Alencar, que precisamente gabava um grill-room montado com estrondo na Avenida, por uma dama das melhores relações do meio - como proprietária de uma pensão em Petrópolis, onde se aboletavam diplomatas.

— Esplêndido. Parece o Ritz, o Rumpelmeyer - dizia o literato, que nunca estivera nem no Ritz, nem no Rumpel, repetindo frases da crônica do dia seguinte.

— E resistirá, meu caro?

— É verdade, neste país de selvagens...

— Somos nós, apenas.

— E nós não vamos todos os dias...

— Ah! Eu que estava com o Dr. Inocêncio Guedes, logo disse: não dura um mês!

O inexorável e incontinente recitador do Smart-Ball sorriu satisfeito.

— Com efeito. Eu também disse. Outro meio, a Argentina, Montevidéu...

— É, é uma vergonha.

Alice procurava descobrir Jacques. Jacques estava a uma das janelas, conversando alegremente com a Viuvinha Pereira e Belmiro Leão. O jovem conquistador avançou. Ele também, naturalmente. Se o casal viera, as suspeitas tinham declinado. Estava soberbo de indiferença. Ao receber o golpe da carta de Alice, ficara meio aturdido. Mas o adultério era das muitas coisas que julgava sem conseqüências. Apanhado em flagrante, fugiria. Interrogado, mentiria por mais provas que houvesse. Não escrevera, porque custava escrever e seria pouco prudente mesmo. Esperou. Sangue, tiros, palavrões, só na gente baixa. Não havia receio. Gente do seu meio vingava-se de outra maneira. Se Arcanjo tivesse acalmado, teria por ele um pouco mais de consideração e continuaria com a Alice, segundo as disposições do marido. Estava acostumado com o caso por vê-lo praticar; estudara-o como alguns estudam o inglês sem mestre. E o adultério sempre foi mais fácil do que o inglês. Só haveria uma dificuldade: largar Alice. Na sua roda ouvira muita vez a frase de Bruno Sá:

Quando tenho uma amante de cá, antes de começar já estou a ver como hei de acabar.

De resto, Arcanjo tinha responsabilidades e Alice era um pouco adida ao núcleo. Estendeu a mão e foi logo a dizer:

— Ainda há instante falávamos mal de vocês.

— De nós?

— Sim, mamãe indagava o que se tinha feito pela política.

— E então?

— Pergunte a seu marido. Arcanjo estava tão preocupado que quase me recebe mal.

— Não é possível.

— Ora! Queria até que eu assistisse a sessão!

As damas e os cavalheiros sorriam. Arcanjo estava meio acanhado. Seria verdade? Seria mentira? Mas não perdeu o seu ar de superior a Jacques.

— Estes meninos pensam que a vida é só brincar...

Dous dias antes não teria tido tanta coragem, Jacques nunca fora tratado assim, senão por seu pai. Mas tinha culpa e achava-se na obrigação de ser gentil, meio vencido. Com o seu temperamento, tratá-lo d'alto era exasperá-lo, mas dominá-lo. Às duas horas da tarde achava aquele sujeito um imbecil que precisava taponas. As quatro estava sem opinião. As nove já não fazia um mau juízo de Arcanjo. No dia seguinte entregar-se-ia sem sentir, como se entregara a Jorge de Araújo, a Godofredo, ao Barão Belfort. O pobre Arcanjo estava nas mesmas condições de fraqueza de vontade, como de resto a maioria dos presentes, mais ou menos os doentes de impotência psíquica generalizada. Apenas o decorrer dos fatos dera-lhe a superioridade. Foi levado a ela num tremor de desastre. O outro aceitou-o. Ficariam sempre assim; ele, a mulher e Jacques.

Quem ganhara de resto com o decorrer dos fatos fora ele. O marido, em noventa e nove vezes sobre cem, é o mais feliz dos três. A mulher, por mais indiferente, trata-o bem porque o marido é uma tabuleta. O amante ainda melhor, porque teme o futuro onde se anunciam em escala desagradável desde a violência, até a responsabilidade. Respeitado, descansado, o marido é a autoridade e o primeiro, e em lugar de ser um pobre escravo a satisfazer a sua dona, é o cavalheiro desveladamente conservado e prestigiado pela esposa e pelo seu maior amigo.

— Brincar? - fez Jacques. - Você faz muito pouco na minha capacidade. Verá quando começarmos. Esvazio a carteira dos seus companheiros.

Fê-lo sentar, ficou um instante ainda prestando atenção à discussão. Tratava-se de arranjar bandas de música e de forçar Godofredo a fazer uma conferência10 sobre a caridade. Era uma reunião animada. Estavam todos dispostos como Jacques a assaltar a bolsa alheia em proveito dos pobres. Até mesmo a gentil Viuvinha Pereira, sempre tão generosa para os ricos, até mesmo Mme. Zurich, Mme. Gouveia, as irmãs inimigas, ambas a disputar o bastão da beleza.

Godofredo ia sair. Aproveitou para partir também. Alice, em palestra com Belmiro Leão, deu-lhe menos importância do que de costume.

O marido prometeu que no dia seguinte apresentaria os deputados para a colheita. D. Argemira marcou a hora.

— Não, o Dr. Arcanjo está na Câmara, às duas.

— Às ordens, minha senhora.

— E você, Jacques, passa lá por casa antes, para as últimas instruções.

A ilustre dama queria apenas saber do que ocorrera. Jacques despediu-se, saiu. Ainda no portão Godofredo rebentou.

— Querem teatro, conferência, tudo grátis.

— É uma festa de caridade.

— Caridade! Eu já assisti a dez festas de caridade para a construção do altar-mor de Nossa Senhora da Conceição. Mas essas senhoras não repararão que é demais?

Depois no tramway:

— Estive hoje no escritório do velho.

— Está danado. Não me fala há uma semana.

— Também não vais mais lá.

— Para fazer o quê?

— Oh! filho, para aprender, para exercitar, por sport, como ias ao football, como vais aos Estrangeiros. Depois não é possível perderes o tempo de enriquecer.

— Enriquecer! Enriquecer! Oh! Godofredo, não fales nisso. Sempre que tratavam de persistir num ato sério, Jacques ficava nervoso. Porque de fato tinha uma grande vontade de fazer um bonito, ganhar dinheiro, ter nome, e só não se atirava, porque levava tempo. Então ficava querendo ouvir os conselhos e querendo ao mesmo tempo que não lhe falassem nisso.

— Queres então ser pobre?

— Qual. Há de se ver, depois.

— Mas se tens tudo para entrar desde já?

— Advocacia não. Abomino autos.

— Outras advocacias.

— Custa tanto.

— Ora, ainda agora...

— Há alguma coisa? - perguntou ansioso.

— Precisamente não há, isto é, depende. Coisa para ganhar uns contos.

— Como?

— Da melhor maneira. Sabes que... não, não sabes, mas é o mesmo... Cartas na mesa. Há uma concessão que deve passar quinta-feira na Câmara.

— Bem.

— Mas não passa porque o Grande Chefe não quer.

— Então?

— É preciso demovê-lo. Só um deputado está nas condições de o fazer, se pedir com insistência.

— Quem?

— O Arcanjo. É uma das maiores influências da Câmara: não faz discursos.

— Mas eu não posso pedir nada a Arcanjo.

— Como? Sempre pensei...

— Agora, mais do que nunca.

— Houve alguma desinteligência?

Jacques calou-se. O cronista sorriu:

— Diabo. Olha que não se deve perder a amizade de Arcanjo. Dentro em pouco será uma das mais prezadas figuras do nosso grande mundo. Perdeu anteontem dez contos no CIub da Avenida, de que já é sócio. É comensal do Grande Chefe, tem uma linda e distinta esposa.

— Ora...

— Não sei...

— Pede sempre.

— Não tenho a certeza.

— Mas repara, Jacques, que fui eu quem te arranjou a chave da casa do barão.

— Por isso mesmo. Está tudo acabado. Ele sabe tudo.

— Quando soube?

— Não imaginas como estou incomodado.

— Está-se vendo. Mas quando soube?

— Hoje.

— Oh! então é um homem superior, um homem que a todos nós dará lições. Nunca pensei! Que sangue-frio dá a alimentação vegetariana! Olha. Pedes amanhã, impõe-te a Alice. Para ser amado é preciso dominar. Impõe, ouviste? Ou ele é um tipo - o que não acredito - ou fará tudo para mostrar à mulher a sua influência neste momento. Aceitas?

— Tens umas idéias...

— Esplêndidas. Amanhã venho buscar-te, trazendo tudo escrito. Com certeza estás amanhã com ela? Bem. Amanhã. Mas que acontecimento! Vem a calhar. Está notável o nosso Arcanjo. Não sei se conheces um ditado que diz: o mais feliz dos três é o marido.

— Homem, parece-me...

— É, não há dúvida, quase sempre. No momento é ele. Mas todos nós podemos ser. Os pequenos acontecimentos são a causa de grandes coisas. O dia de hoje podia ter sido aziago. É um começo de vida. Ah! meu caro, estás te fazendo homem. Teu pai ainda não te compreendeu.

— Estou me fazendo, não; vocês é que estão fazendo.

— Uma obra admirável. Até logo. Salto aqui.

Jacques seguiu. Tinha a sensação física de quem se entrega sem vontade. Era como se fosse desaparecendo num lameiro e transformando em carne a melhor parte do limo. Reproduzia socialmente a criação do homem feita por Deus, omnisciente e potente. Aquelas infâmias rodas eram a vida. Saltou no Casino e foi ver o espetáculo, certo de que Alice obteria tudo de Arcanjo e que na quinta-feira próxima não estaria, de smoking e peitilho, apenas com alguns níqueis no bolso bem cortado do colete irrepreensível.

— Não achas? Uma linda esposa que é um instrumento político de primeira ordem. Deves acabar com as infantilidades. Depois não é preciso falar a Arcanjo. Basta pedir a Alice.