Era num jardim público, reservado a nobre exploração da caridade pública, em indeciso dia do mês de julho. Afinal, após quatro domingos de chuvas intempestivas, que tinham o mau gosto de começar sábado, a noite, para terminar ao anoitecer dos ditos domingos, realizava-se a grande festa em favor do Dispensário da Irmã Adelaide. O céu estava nublado. Um vento úmido soprava pelas árvores. Mas o longo reclamo dos jornais, a longa expectativa tinham de tal forma enervado a curiosidade, que um temporal desfeito não impediria uma grande venda de bilhetes sem resultado.

Pela manhã os portões do jardim não se abriram. Desde cedo começaram a estacionar em frente carroções trazendo o fornecimento para os botequins e os restaurants. Logo depois do portão havia uma armação de cetim vermelho, que dividia a entrada em dois, tapando a vista dos que passavam na rua. Ociosos, e gente do povo, os passageiros dos tramways paravam ou voltavam-se curiosamente. De cada lado do portão, por trás das grades, havia cubículos, onde eram vendidas entradas. Pregado a um venerável tamarinheiro irradiava um cartaz de três metros do mais brilhante caricaturista contemporâneo representando uma senhora elegante espalhando carinhos a pequenos famintos de pés grandes. E o cartaz, o tapume, os carroções, os carregadores que entravam, tudo indicava o inicio de um dia caritativamente mundano.

Mas que trabalho!

Os rapazes mais elegantes e mais dedicados tinham passado a noite no jardim, dirigindo os trabalhadores e numerando os presentes da grande tômbola, em número superior a dois mil. O Chagas com o seu bom gosto, o Dória e cinco ou seis do mesmo quilate encarregavam-se desse trabalho exaustivo. Havia no meio de tanta inutilidade dádivas de valor, até mesmo jóias. A ilustre Sra. Argemira de Melo e Sousa deixara o local às duas da madrugada. D. Malvina Pedreira tivera um começo de nevralgia, graças a um impertinente golpe de ar. As damas do comité, incansáveis, tinham saído pouco antes da Sr.ª Argemira. E para o fim da madrugada o programa fora definitivamente traçado; todas as bandas militares cedidas pelos comandantes dos corpos, barracas de doces, de buffet, de cartões postais, de flores, de chá, tenda de pitonisa croata, números infantis compostos de corridas a pé, corridas do copo d'água, corridas do ovo com prêmios, concurso de batéis enfeitados sobre os lagos, tômbola às cinco horas, baile ao ar livre no magnífico terraço, e a grande resistência: o teatro. O teatro era dividido em duas partes. Na primeira uma comédia de salão, escrita em francês pelo amador literário Gomensoro, e representada por três das mais distintas senhorinhas e o Belmiro Leão, cuja dicção parisiense era estupenda. A comédia intitulava-se discretamente Ohé! les petites! Depois: Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde, em romances franceses; dois atores portugueses, comendadores de S. Tiago, que sabiam vestir casaca; versos de Musset, pela grande atriz francesa; a ária da Boêmia, pelo notável tenor Zenaro; as canções da Judic, pela atriz portuguesa. A noite, os fados portugueses, pela excepcional Etelvina Gomensoro e uma orquestra de bandolins de cem meninas (eram de fato oitenta e três), vestidas de branco, com uma fita azul a tiracolo. E, como fecho de ouro, os quadros vivos com projeções elétricas, em que figuravam Cristo e a Adúltera, A Samaritana e outros motivos santamente bíblicos.

Essa importante parte da festa era por inteiro obra de Godofredo de Alencar. Mas dera-lhe decerto menos trabalho diplomático que o arranjo das comissões das barracas à Sr.ª de Melo e Sousa. Nomeadas as chefes, com o desejo de não suscetibilizar ninguém quanto ao local, outra dificuldade surgiu, quanto às caixeiras, às vendedoras. Era preciso saber as relações das meninas, as zangas, as amizades. Uma das famílias - precisamente a família do médico milionário, que dera uma forte soma ao Dispensário - tinha tão má vontade das outras, que foi preciso juntá-la num lote a vender cartões postais autografados. Depois, se umas queriam vender doces e vinhos, outras achavam deprimente um tal mister, mesmo por brincadeira.

— São as que têm merceeiros na ascendência! - sentenciava a Muripinim, velha relíquia da monarquia, à velha Ataíde, esmaltada progenitora de Etelvina.

Uma palavra, de resto, bastava para desconcertar uma barraca, e muitas desistiram à última hora, retiradas pelos pais extremosos e pouco civilizados. Quando a Argemira viu a sua lista concluída ainda pensava que era mentira.

As barracas estavam, aliás, muito bem dispostas nas aléias, de emboscada as de flores e cartões; bem à vista as de doces e bebidas. Os números de teatro realizavam-se no próprio tablado junto ao botequim, cujo proprietário prometera, nos últimos momentos, fazer também funcionar o biógrafo nos intervalos da noite, - grátis. Aquelas damas arranjavam tudo grátis. Até o biógrafo.

D. Malvina apareceu no jardim, ás onze horas, julgando ser a primeira. Acompanhavam-na cinco criados. À porta já havia um esquadrão de polícia e uma turma de guardas-civis. No jardim, só uma barraca estava ocupada, a da esposa do médico com as suas respectivas filhas, moçoilas de uma fealdade esplêndida. D. Malvina concorrera com doces feitos em casa. Era a última abencerragem da nossa remota civilização patriarcal. Os grandes cestos que os criados traziam eram de bolos, balas e outras guloseimas familiares. Quando chegou ao buffet não havia nada arranjado. Apenas o Chagas e o filho dos Viscondes de Pereira tomavam vermouth, uma das garrafas oferecidas por conhecida casa comercial, que só oferecera por ser conhecida e solicitada e ter reclamos nos jornais - o que redundava em lucro para o seu negócio. Os dois mancebos estavam em mangas de camisa e desculparam-se vexados.

— Trabalhamos toda a noite!

— Estou que não posso! Mas venha ver, a senhora que tem gosto!

D. Malvina acompanhou-os ao lugar onde teria lugar a tômbola. Era uma azáfama. Meia dúzia de jovens trabalhava a gritar e havia brinquedos e coisinhas dependuradas em toda a volta.

— Vai ser um sucesso, D. Malvina.

— Se Deus quiser. Estou com medo da chuva. O povo tem medo. E até agora nem sombra de sol.

— Não chove, aposto - gritou o Dória. - Já intimei o sol a aparecer. A pouco e pouco, entretanto, iam chegando as senhoras encarregadas das barracas, fazendo os preparativos, "tomando conta", como aconselhava, D. Malvina. Ao meio-dia, já três bandas de música tinham aparecido, três só. Os rapazes que faziam parte da roda e tinham as famílias nas barracas, entravam naturalmente. Uma alegria ainda débil desabrochava com timidez nas aléias úmidas de chuva. As meninas riam na intimidade dos flirts, preparando-se. Era em tudo como nas caixas de teatro, antes do sinal de prevenção para o primeiro ato. A uma menos um quarto saltou de um coupé Godofredo de Alencar, acompanhando o tenor Zenaro. Fora o maior sacrifício da sua vida aproximar-se do tenor, conseguir a sua presença, ele, que odiava os tenores. Zenaro, quarentão com atitudes de efebo, as sobrancelhas avivadas a khol, hesitara, mostrara o seu enorme sacrifício, consentira na publicação do seu célebre nome nos programas, mas, como bom tenor, esperava a promessa de um cachet. Na véspera, desejara experimentar a voz no local, pedindo ao egrégio crítico a gentileza de acompanhá-lo. Godofredo fora buscá-lo. Zenaro queixara-se da umidade. Aceitou o coupé, depois de almoçar, e saltava com um ar de soberano de corte decadente.

— Não está ninguém.

— Estou eu...

— Digo que nenhuma das senhoras veio receber-me.

— Ainda é cedo.

Com a face fechada, o célebre tenor foi até ao botequim, fixou o tablado e exclamou:

— Mas é ali que eu vou cantar?

— Meu caro, você vai fazer uma obra de caridade. Ao seu lado comparecerão grandes artistas.

— Eles virão mesmo?

— Creio que vêm, mesmo porque está toda a sociedade metida na festa.

— Ah! Acho muito desabrigado. A voz perde-se.

— Qual! Experimente.

No momento em que Zenaro se dignava soltar uma nota de sua garganta-tesouro, um tramway passava na rua a toda a velocidade, guinchando as rodas na curva dos trilhos. Zenaro estacou.

— E os tramways param?

— Param - mentiu Godofredo.

— Bem. Então, se o tempo não me fizer mal, virei. Mandam-me buscar?

— Claro.

— É possível, é muito possível que venha. A questão é do tempo. E da minha saúde.

Depois pigarreou, olhou hostilmente aquele lamentável meio de café-cantante com cadeiras de folha e bandeirolas, estendeu a mão:

— A rivederci...

— Até logo.

Godofredo acompanhou-o até a porta, convencido de que o efebo quarentão não voltaria. Acompanhou com uma secreta vontade de sová-lo. A quantas humilhações descia inutilmente! Mas vingar-se-ia, anotaria pelos jornais a decadência daquele tenor de que com tempo perdido, se apaixonavam as mulheres.

Entretanto, na bilheteira o aplaudido cronista recebeu um embrulho e uma carta.

O embrulho eram os petits souvenirs para os artistas, carteirinhas vazias de cinco mil-réis. A carta era da grande atriz francesa, que se desculpava com uma terrível dor de cabeça, por não poder comparecer. A sua raiva secreta, aumentou. Que papel iria fazer? Talvez não viesse ninguém. Estavam os seus créditos de crítico a periclitar, a sua influência na perspectiva de se mostrar nula nos bastidores. Também com aquelas senhoras, que davam carteiras de tal ordem, e não vinham receber um tenor de fama mundial!

Era, porém, uma hora. Ouviu-se uma sineta que soava ao longe. Os portões abriram-se. Um magote de gente precipitou-se. No magote Argemira e Alice, apressadas, com o aspecto de quem falha a cena. Alice contrariada por não poder mostrar um estupendo vestido de rendas brancas, em virtude do tempo.

— Bom dia, diretor dos teatros.

— Então, choverá?

— Que chova a potes. Agora...

— Olha, noutra não me pegam.

Godofredo quis acompanhá-las. Mas o receio de fazer um fiasco, de outros artistas mandarem desculpas, fê-lo parar. Não teria uma festa, teria um dia de aborrecimento e preocupações. A banda de música rebentara a tocar. Ao magote curioso sucedera, entretanto, plena calmaria. Gente passava fora, olhando com desconfiança. Outros chegavam aos guichets da bilheteria e recuavam diante do preço. Os mais ousados, um, dois, de vez em quando, entravam meio acanhados. Eram na maioria gente domingueira, atraída pelos reclamos, mas prevenidos. Imediatamente partiam da feia barraca do médico cinco vendedoras de cartões postais, e da barraca de flores duas meninas armadas de cestinhas, com agonizantes espécies florais. Como não eram gente conhecida, essas meninas muito bem-educadas (quase todas em Sion, quando os pais tinham o alto posto, há tempo) tomavam uma atitude impertinentíssima, e ofereciam as flores ou os cartões, numa frieza de cartel de duelo. Os que entravam, ou esquivavam-se a balbuciar, ou aceitavam de vergonha. As meninas não davam troco e não diziam obrigado, amarrando a cara como se acabassem de receber uma ofensa. Uma delas correu a um sujeito gordo, cheio de brilhantes e malvestido.

— Qual, minha menina, não vou nisso - regougou ele. - Já comprei à porta...

A pequena ficou vermelha. A mãe chamou-a severa.

Godofredo mordia o castão da bengala, assistindo àquela lamentável cena de um bando de esnobinetas tolinhas. Contudo, acercou-se, concordou com elas, ouviu-as. Em ambas as barracas esperavam as boas relações, os conhecidos. As meninas tinham apostado a ver quem havia de fazer maior quantia e contavam com a generosidade dos amigos da família. Apenas. Podiam contar com os flirts. Os flirts, porém, eram grátis, e haviam de ter quantas flores desejassem sem despender vintém.

O dia continuava escuro. Mas, de repente, sem que ninguém esperasse, um raio de sol filtrou-se por entre as nuvens de chuva. Esse imprevisto fez as meninas das barracas soltarem exclamações de alegria, e a todos pareceu que era a vida vindo em auxílio da festa.

De novo recomeçou a entrada em massa. No elemento anônimo havia já personalidades conhecidas: três ou quatro deputados, dois membros do Supremo Tribunal, um grande construtor. Reporters novatos, armados de tiras e lápis, surgiam e iam perguntar a lista das diretoras das barracas. As senhoras gostavam muito de nome no jornal, mas não podiam dar a confiança de uma resposta amável. Eram muito delicadas para tal. Na barraca das feias, as meninas não responderam. Foi a mamã, seca de voz e gorda de corpo.

— Ponha: primeira barraca de cartões postais. Mme. Silva e suas filhas.

— Mesdemoiselles? - indagou o menino informador, esforçando-se por parecer elegante.

— Basta o que lhe disse - regougou Mme. Silva, como se falasse ao seu copeiro, ela que se dava com o dono do jornal de que o petiz era noticiarista.

— E tem vendido muito?

— O senhor não vê que começo agora?

— Desculpe V. Exa..

A feia dama dera delicadamente as costas ao pobre rapaz. Era imprensa! E que metediços! Ainda se fossem os donos do jornal...

Na outra barraca, na das flores, a mesma senhorinha a quem o homem abrilhantado respondera com grosseria, tomou um ar altivo e olhou a promessa jornalística como assombrada que um pequeno gazeteiro tivesse o topete de falar a pessoa da sua importância tão sem respeito. Foi preciso Godofredo prestar as informações. Um dos meninos dos jornais estava furioso.

— Que insolentes.

— É de família, filho.

— Como se chama aquela?

— Zuleika.

— Troco-lhe o nome.

— Fazes bem, porque ela adora o nome nas seções mundanas. É o único meio de seres cumprimentado amavelmente, e se o teu patrão não te puser no andar da rua a pedido do pai. Erra-lhe o nome sempre e passa por ela sem a saudar, encarando-a.

Mas nesse momento entrava Arcanjo dos Santos. As pequenas caíram-lhe em cima. Os reporters foram-se. O pelotão de Mme. Silva avançava. O deputado disse baixo apertando a mão de Godofredo, para as meninas:

— Depois. Não dou agora para não dar também ás feias. - E agarrou do pálido homem de letras.

— Estou receoso. Imagina que venho da casa da Fanga.

— Bem, e então?

— E então é que quase todas as cocottes estão com vontade de vir.

— Que tem isso? Acontece o mesmo em todas as festas de caridade. As cocottes fazem sempre melhor figura. Depois a caridade e as cocottes... Olha a divisa é a mesma: recebe sempre e não olhes de quem...

— Sempre paradoxal! Mas não deixo de estar assustado.

Em razão desse estado, viu o Chagas e repetiu o acontecimento; viu o Pimenta e fez o alegre representante da alegre pátria passar adiante, achando o caso imensamente parisiense. Em dez minutos na roda, os casados com aquelas damas ou pais daquelas meninas ou amantes de fato e de esperança, mas todos freqüentadores da Fanga, souberam que a linda italiana apareceria com os exemplares mais belos do seu colégio. Era uma chegada tão sensacional como a do presidente da República ou a do cardeal. Quando Jacques entrou com Belmiro Leão e Bruno Sá, foi a primeira coisa que lhe disseram.

— Sim senhor! - fez Bruno Sá, sem dizer se achava bom ou mau.

— Estamos no nosso elemento.

— Homem sem princípios!

— Quem almeja os fins não olha a princípios. Ainda assim estamos com a filosofia do meio.

E cada um foi tratar da sua vida. Haviam chegado mais duas bandas de música. A concorrência era agora franca e larga. O portão sorvia ás centenas as diversas classes de que se compõe uma sociedade que se preza. Na aléia preparada para o programa infantil, começava o primeiro páreo de crianças a pé, menores de oito anos, e ganhara longe a filha de Mme. Gouveia, inscrita como prestes a entrar na casa dos oito, mas infelizmente para as concorrentes, maior de dez anos havia seis meses. Nesse trecho do jardim era um brouhaha de pequenos e pequenas, com a viva alegria que os jardins infiltram nas crianças. E já os petizes bem vestidos, mostravam uma educação prometedora, as meninas com pretensões, os rapazes mais insolentes, desses que fingem de filhos de rei e só cedem à ameaça de um puxão de orelhas.

O Dória, que, à última hora, dirigia a criançada, sentia bem o juízo que dele faziam os maiores pelo tonzinho com que a ele se dirigiam. Pobre Dória! Alguns pais e algumas amas mesmo dirigiam-se à sua ex-elegante pessoa como a um bedel carinhoso.

— Ó Dória, cuidado com o Juca...

E os meninos, à primeira necessidade, vinham a ele, imperiosos. Na corrida do copo d'água a filha de Mme. Zurich ainda não divorciada, correu, mas entornou o copo inteiro na sua linda roupa, e chorou furiosa. O Dória teve que acalentá-la, prometendo-lhe uma boneca na tômbola - o Dória que não se dava com o marido da mãe, desde um incidente, ao jogo.

Pelo jardim, porém, nem todos tinham os encargos do arruinado ex-engenheiro. O movimento pelas aléias era difícil e lento. Em cada barraca, organizara-se um ranchinho, o rancho das vendedoras e dos seus respectivos flirts, desde os flirts de que elas gostavam mais até os flirts serventuários, meninos que se encarregavam de pequenos serviços. A excitação do jardim e da turba foi como que propagada por esses focos de elegância. As maneiras um pouco faubourg do princípio, iam num crescendo de feição americana. Havia risos, gargalhadas de troça, segredinhos, passeios de algumas senhorinhas a outros pontos pilotadas pelos rapazes. Quando chegava algum conhecido era o ataque.

— Conselheiro Filgueiras, esta flor!

— Dous tostões.

— Oh! conselheiro.

— Então marque o preço.

— Cem mil-réis.

— Só a flor?

— Exija, tirano do dinheiro.

Uma dúzia de homens ricos e viajados trouxera mesmo maços de notas novas, para dar sem exigir troco. O autor de Smart-Ball, com colete à fantasia do pior gosto, já ficara reduzido à expressão mais simples. No grande buffet, onde estavam as maiorais do comité, os preços chegavam a excessos. E aí, ao lado de Argemira e de D. Malvina e de Luísa Frias, segura a Bruno Sá, Alice dos Santos, lançada sem freio, estava como enebriada do seu triunfo. Um industrial dera-lhe um bilhete de quinhentos por um cálix de porto; um senador, que viera servir-se de uma sandwich, atacado por ela, dissera:

— V. Ex.ª de mim tem o que deseja.

— Em troco de quê?

— Do que desejar.

— Então deixe ver duzentos.

— Tê-los-ei ainda!

— Dê-mos que não se arrepende.

O homem consultou a algibeira, retirou quatro notas de cinqüenta, as últimas com que pretendia comer mais quatro sandwiches e talvez beber um cálix de vinho. Entregou-as. E Alice estendeu-lhe a face.

— Beije!

O senador ficou perplexo. Em torno todos voltavam-se divertidos. Alice ria. Era assim que ela lera num romance. Reproduzia fielmente a cena e obscurecia por completo o provincianismo não dela, mas das outras. O senador, tonto, pousou-lhe os lábios na testa.

— Arcanjo e Deus perdoar-me-ão em nome dos pobres.

Belmiro Leão na algazarra que sucedeu ao beijo, decidiu-se.

— D. Argemira, não acha que os pobres devem ter também?

— Sei lá...

Alice sorria. Ele apertou-lhe os braços. Ela excitadíssima olhou-o com uma chama nos olhos belos.

Mas, caminhando para o terraço a segurar o braço da Malperle viu de repente Jacques. Então quis ousar mais, chamou-o alto, com um ciúme raivoso da linda Malperle de branco-cinza com os seus corais de girl new-yorkense. Jacques ia subir ao terraço, Alice gritou. O lindo rapaz apressou o passo, fingindo não ouvir, desapareceu. Ela ficou com o coração a bater. Belmiro Leão aproximou-se. Era uma confusão tão grande que além dos criados, as próprias senhoras serviam.

No terraço, porém, a cena tornara-se de uma empolgante beleza. Aquele movimento de turba numa confusão de cores surdas, sob o cinza do céu que se ligava na linha do horizonte ao verde-negro do oceano, empolgava. Uma banda militar tocava valsas. A maioria do povo chamada ali para concorrer, apenas com o seu dinheiro, assistia ao valsar de alguns pares elegantes, e era uma delícia ver o Gouveia com um enorme chapéu florido rodopiar pelo braço, leve de um tenente da Marinha, Mme. Zurich deixar-se levar como uma sílfide pelo filho do antigo merceeiro Teotônio, e Gaby Nolasco e Germana Guerra e a Viuvinha Pereira cada uma com seu par distinto na ebriedade do ar livre e da valsa langorosa. Jacques não perguntou a Gina Malperle se dançava. Enlaçou-a, rodopiou. Era uma das suas muitas qualidades: valsava deliciosamente, com autoridade sobre o par. As damas passavam a pequenas coisas animadas por ele. Gina sentia-se possuída, e a valsa era como um rosário de suspiros de gozo.

Entretanto, enquanto na tômbola, o homem de gosto, Chagas, preparava um sorteio genial, Godofredo de Alencar penava com a sua parte teatral, correndo entre a porta e o botequim. As quatro horas a rotunda que forma o bar estava repleta. Os impacientes batiam com as bengalas, as pessoas amigas vinham tomar informações.

— Então, quando se começa?

— Já, vamos começar.

Era que nenhum dos artistas chegara ainda. Godofredo tremia de cólera. O público estava ainda mais impaciente. Então o marido de Etelvina teve a idéia de começar logo a comédia: Ohé! les petites.

— Pelo menos começamos. O público está impaciente.

— Depois é mesmo do programa...

— Boa idéia.

Um quinteto de cordas tocou a ouverture. Godofredo correu à porta. A comédia (ninguém sabia de quem a tomara o Gomensoro) era a história de três meninas, que querem casar com o mesmo rapaz tímido. O rapaz propõe casar com as três. Mas recebe uma carta da prima, mais velha dez anos e prefere-a - porque o seguro morreu de velho... A maioria do público, ignorando o francês, não compreendeu a graça esfuziante dessa obra-prima. Os mundanos bateram palmas. Quase junto ao tablado o Barão Belfort cumprimentava Gomensoro chamando-o à cena. Gomensoro não veio. Era inteiramente do tom. Mas apareceu Godofredo enfim, com os três artistas portugueses. Estava salva, mais ou menos salva a primeira parte. O literato parecia lívido de cólera. Ninguém recebera as artistas, e os amadores de salão, sabendo que eles vinham graciosamente tomavam ares superiores e frios...

— Por aqui, por aqui - fazia ele.

— Ai filho, que complicação!

E as amadoras mundanas olhavam d'alto, sem ao menos agradecer o obséquio da gente da rampa lisboeta. Idiotamente insolentes, pensava o cronista. Mas um dos artistas, deslocado, para se afirmar um pouco, falou alto:

— Ó Godofredo dá-me esta música ao maestro. Faze-me esse favorinho, sim?

E Godofredo enraiveceu mais porque os artistas tratavam-no por tu, à vista da alta sociedade. Assim a sua entrada foi atroz. Quem liqüefez o gelo entre artistas de sociedade e artistas de palco foi Angelina Mora.

A estrela portuguesa trazia um vestido estupendamente rico e punha o face-à-main para olhar as petites do Ohé de Gomensoro com um ar de amadora numa exposição de quadros. Era célebre. Célebre e meia doida como todas as mulheres célebres. Estava convencida de que ia triunfar.

De fato.

Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde, cantara apenas versos de Verlaine, música de Debussy, e Angelina Mora, com um talento muito maleável, impunha-se. O público fez-lhe uma ovação. Godofredo, entusiasmado foi beijá-la.

— Tenho uma prenda para oferecer-te.

— É jóia, filho?

— Não, é uma carteira vazia...

— Estas tuas damas de caridade são sempre muito cascas. Apresenta-mas ao menos.

Godofredo tinha receio, mas enganava-se. Desde que Angelina triunfara e a roda de cavalheiros a saudava, o high- life admitia-a logo. Etelvina, para mostrar que não se esquecera dos centros artísticos de Paris, foi encantadora; Gomensoro, a que a prudência diplomática fizera reservado, veio beijar-lhe a mão. E as meninas aproximaram-se sorrindo. Angelina apertou-lhes a mão com intimidade e para uma:

— Sabe que é bonita?

— Bondade sua.

— Linda, mesmo. De estalo! Deixe dar-lhe um beijo! - E precipitou-se, ardente.

A noite descia já sobre as árvores. Uma das lâmpadas elétricas sacudiu-se e a luz branca explodiu, fixou-se. Imediatamente outras lâmpadas abriram. O jardim de súbito se encantara de luzes. Ao mesmo tempo uma fanfarra tocou, e as bandas começaram o hino nacional.

— O presidente! - gritou Godofredo.

— O presidente!

Várias vozes repetiram a palavra mágica. A multidão precipitou-se. Era realmente S. Exa. que chegava para dar maior brilho à festa. O comité, Arcanjo, Jacques, Malperle, estava à porta para recebê-lo. Os grandes nomes da política, da indústria e da finança, dependentes de gestos seus, mostravam um sorriso amável. E a multidão seguia-o como na rua se acompanha um andor.

Godofredo só pôde apanhar a comitiva perto do lago onde, sem concorrência, uma pequena barraca vendia sorvetes e balas. O senhor presidente resolvera visitar todas as barracas tendo para cada uma vendedora a frase de gentileza justa. Era aristocraticamente democrata. Intimidadas, as vendedoras nada lhe ofereciam. S. Exa. sorria e pedia:

— Uma flor...

Todos queriam ter o prazer de oferecer uma flor, ou mesmo um ramo de flores, ao detentor das concessões e dos dinheiros públicos, ao senhor do progresso do país. Ele, porém, discretamente, deixava nos açafates uma nota nova e agradecia ainda por cima. Chagas reparou que eram bilhetes da Caixa de Conversão de cem mil-réis e foi somando, ao lado. No buffet, um momento pararam. S. Exa. com um flute de champagne na mão, disse algumas frases sobre a caridade, cumprimentou Mme. de Melo e Sousa, cuja família era uma das nobres tradições do país, saudou com respeito íntimo, Alice dos Santos. Estava, precisamente, ao lado do grande chefe político, que se curvava para Luísa Frias. Jacques, bem perto, teve uma inspiração:

— Apresenta-me ao presidente - disse a Arcanjo, tão alto, que S. Exa. ouviu, voltou-se sorrindo.

O deputado também sorriu. D. Malvina ria.

— V. Exa. a permite? o Dr. Jacques Pedreira, filho do ilustre Dr. Justino Pedreira.

— Já formado? Tão moço! Meus parabéns. Sou muito amigo do seu pai.

— Foi a admiração por V. Exa. que me fez desejoso de apresentar a V. Exa. os meus cumprimentos.

— Ah! muito obrigado - disse o estadista presidente, olhando-o com simpatia.

E a visita continuou. Mas Arcanjo, com receio, notou que não tinha apresentado Jacques ao Grande Chefe, e o Grande Chefe vira. Era mau para ele Arcanjo, era mau para Jacques. Uma desconsideração talvez... Então, apanhou Jacques pela aba do frack. E para o homem importante, de que dependiam a sua reeleição e o seu reconhecimento, assim como a reeleição, e o reconhecimento de todos os seus colegas, chamou:

— General, aqui tem um seu admirador.

O general voltou o olho apenas, sorriu superior.

— Conheço já o menino. É filho do Justino? Um dos nossos amigos.

Jacques sentiu-se à vontade e sorrindo:

— Papai fala tanto do senhor e o Arcanjo conversa tanto a seu respeito, que eu já de muito lhe quero bem.

Aquilo saíra-lhe naturalmente, sem esforço. Ele próprio admirou-se, vendo o olhar grato do Arcanjo. O hábito da sociedade e o contato com a política já o faziam mentir com uma segurança deliciosa. O Grande Chefe é que não respondeu, acostumado à ambrosia da lisonja.

O presidente dirigia-se para o teatrinho. Havia um lugar reservado, com tapete sobre a areia, para S. Exa. e os ministros. Só três ministros haviam comparecido. Mas os lugares foram todos ocupados. Imediatamente, fez-se ouvir o hino, e em seguida o pano subiu, deixando ver trinta e cinco meninas (afinal tinham comparecido só trinta e cinco das cem) vestidas de branco e azul e armadas de terríveis bandolins. Iam tocar fados, essa emocionante cantilena, essencialmente nacional no pais irmão. E com os plongeons do Rambouillet e todo o chiqué das grandes artistas, Etelvina Gomensoro, née d'Ataíde, surgia para cantá-los.

Jacques ficara entre Gina Malperle e uma pequena morena, com um olhar de maravilha, que tremia, olhando-o. Era a filha da Viúva Monteiro, Lina Monteiro, inteligente, bastante morena, sem dinheiro, sem proteção, que se agarrava à sociedade considerada por uns semivirgem, considerada por outros uma infeliz. Jacques que já beijara a Malperle na nuca e juntava a sua perna à dela, foi se deixando pender para Lina Monteiro. A jovem, cujos olhos ainda pareciam maiores, tremia e deixava aproximar-se o mancebo. Naquele momento, era provável que muitos fizessem o mesmo. Jacques fixou-lhe a medalha modesta que ela trazia à guisa de pendentif.

— Que olha? - fez ela tímida.

— A sua medalha.

— É feia, não?

— Estou-lhe com inveja.

— Ah!

— Queria ser medalha, essa medalha.

— Ah!

— Sim, para estar onde ela está.

Mas os fados bisados tinham acabado e iam ter lugar os quadros vivos, a nota sensacional. Apagaram-se repentinamente as luzes. Era como no cinematógrafo. Jacques agarrou sem hesitar a mao de Lina Monteiro, que parecia querer ser pegada e deixou que a Malperle lhe caísse no braço, curvando-se, excitando-o com o seu cheiro capitoso. Outros, talvez, estivessem fazendo o mesmo. Houve um tremolo no quinteto e apareceu o primeiro quadro: a "Caridade", um anjo estendendo a mão a uma criancinha, que devia ter fome e estava quase nua. Era a filha de Mme. Gouveia, a que continuava a não ter oito anos, já tendo passado dos dez. O presidente bateu palmas. Todas as autoridades civis e militares também. Os projetores elétricos apagaram-se e a orquestra tocou. Em seguida foi a "Samaritana", segundo o Veroneso, assegurava o Chagas. A "Samaritana" de azul, com o costume oriental dava, de beber por uma bilha ao Cristo, que era o Dória, o Dória, em pessoa, mostrando os seus belos músculos. A Samaritana era Alice, extasiada. Esse quadro causou sensação. O último, porém, eletrizou. Era mais ou menos, segundo o mármore de Bernardelli, "Cristo e a Adúltera". Alice estava apenas um pouco mais vestida, mas mostrava uma admirável composição de medo, agachada aos pés do Deus Homem, e o Deus Homem estendia a destra num gesto definitivo. O Dória parecia mais do que Deus.

Entretanto, nesse momento, para os lados da tômbola em que se procedia ao sorteio, entre o formigamento das crianças, Fanga, Liana, Concha, a d'Amboise e outras cocottes surgiam para tomar champagne em companhia de Jorge de Araújo que as trouxera num dos seus automóveis. O filho dos Viscondes de Pereira logo que as viu precipitou-se.

— Viva a gente de gosto!

— Com que então você na tômbola? - indagou Jorge. - A apostar que fazes tratantada.

— Deixa de brincadeira.

— Ora! Então os melhores objetos não ficam para a comissão?

— Talvez, por sorte - sorriu o outro cínico.

— Arranja ao menos um leque para a d'Amboise.

— Espera. Tomo o champagne, e é já. Que número é o seu?

Mas nesse momento Bruno Sá passou apressado. Jorge chamou-o. O elegante cavalheiro não atendeu. Logo depois assomaram na escada do terraço o marido de Mme. Zurich, e Belmiro Leão que o acompanhava gesticulando.

— Ainda um escândalo - fez o Pereira. - A Zurich estava dançando escandalosamente.

— Dizem que tem muito mau comportamento - fez a Fanga.

E o grupo emborcou os copos de champagne.

Só, por entre os grupos, simples espectador, o Barão Beffort passeava. Gostava mais de ver só, o Barão. E a festa linda, como o céu se alimpara e havia um esplêndido luar, tomava um aspecto inédito.

Era no conjunto, um misto de encanto de feira, de impalpável luxúria, de contrariedades enervadas, de promiscuidades confusas. No alto do céu lavado, a lua derramava um luar de oiro calmo e sereno. Embaixo, a poeira levantada pelo movimento intenso, fazia como a atmosfera do jardim, onde as árvores pareciam saudosas do quieto silêncio. Nos tabuleiros de relva, a luz do astro punha reflexos e infiltrações de opala. Em alguns, repuxos coloridos de verde, vermelho, roxo, atiravam ao ar a fantasia cambiante de plumas d'água irisadas. Nos lagos de um sujo esverdinhado, os batéis enfiorados de copinhos multicores pousavam com um ar de mágica e de legenda. Pelas aléias, pespontadas pela luz das lanternas de cor, acesas na palpitação das grandes lâmpadas elétricas, a turba movia-se policroma e agitada: chapéus, gazes, cabeças nuas, paletot, capas, uma confusão de corpos a passar devagar ou a correr, enquanto um rumor feito de mil rumores, de sons metálicos das bandas, de gritos, risos, frases perdidas, conversas multiplicadas, subia ao ar aberto em clamor. Nas grandes festas, em que há multidão, sempre em dado momento, estala um surdo incêndio de apetites, de animalidade que a civilização retém a custo. É o momento turbilhão das pequenas licenças, dos olhos acesos, dos apertos febris, dos desejos imediatos, que nem sempre se realizam. Então, por um fenômeno de projeções odicas, como que o ambiente, as cousas imóveis, o inanimado, as luzes, as árvores, o ar se embebem de sentimento geral, e há como um frenesi de posse final, mesmo nos menos aptos e nos mais fracos. É o fim dos bailes, é o fim das kermesses. Era o fim também para aquela festa de caridade e de mundanice.

Realmente, depois dos quadros vivos, o presidente da República, acompanhado da sua casa civil e militar, retirava-se. Com ele saíram os políticos de monta. Depois dele sairiam os grandes mundanos. O comité, Godofredo, Arcanjo, vinha trazer sua excelência até o portão. O primeiro magistrado da Nação dizia gravemente palavras de cumprimento estudadas pela manhã. Estava encantado. Quando passou o portão, em frente ao parque estendia-se no percurso da tua inteira a força de linha, de calças vermelhas, tendo por trás a turba curiosa. Um toque de clarim varou o ar. Cem caixas rufaram a um tempo. Na semitreva um pavilhão nacional adejou. Uma fila de automóveis, com os refletores possantes projetados em triângulo de sangue estacou mesmo em frente ao portão. S. Exa. mandou arriar a capota do seu. Os trintanários empertigados faziam a continência. Depois, com um gesto airoso subiu, sentou-se. O general que o acompanhava entrou também para o veículo, que logo rodou macio e lento. Ao mesmo tempo rompeu o hino nacional, que se propagou, cresceu, acompanhou o automóvel, explodiu na rua inteira o seu clangor triunfal.

— Viva o presidente! - berrou um sujeito.

— Viva! - responderam algumas vozes.

O comité, intimamente orgulhoso mas achando ridículo o patriotismo, tinha um sorriso de satisfação irônica. Para aquelas damas e aqueles cavalheiros, os homens de Estado só eram compreendidos com a significação de lhes dar lucro ou o brilho oficial. No torvelinho da saída o barão deu com o Chagas e Arcanjo.

— Magnífico, hem? - exclamou o deputado vegetarista. - O presidente esteve chic. Deu para mais de três contos em notas novas.

— Não aumentes. Acompanhei-o e somei. Foram só dous contos e quatrocentos - clamou o Chagas.

— E achas pouco?

— Também pelo que lhe custa...

O barão apenas sorriu. Godofredo tomava-lhe o braço.

— Partamos. Estou esgotado! Um dia inteiro a suportar esta gente.

— Com efeito, estiveram todos...

— Todas as senhoras, que fingem de caridade à custa dos outros.

— Sim, todas... Mas falta uma, meu caro, a única de verdade, que lhes serviu de pretexto.

— Qual? - fez o literato.

— A Irmã Adelaide.

— Homem com efeito, foi a que não veio. É que não era este o seu lugar.

E os dous homens caminharam, enquanto a turba golfava do portão, no alarido dos cocheiros dos automóveis, das buzinas, dos retintins elétricos, dos tramways, das corridas desencontradas, dos gritos, das exclamações...