Passaram-se doze ou quinze dias, e o dono da criança não apareceu. Padre Guilherme indagou, matutou, rastreou indícios e nada adiantou.
A única testemunha conhecida era o Chicão, que fora quem falara, na igreja, com os portadores da criança: mas o Chicão, era um semidemente (dizia o padre), não sabia senão repetir as duas ou três coisas vagas que dissera no primeiro dia. O Vito ignorava tudo: declarava que, na hora em que "os tais" estavam a falar com o sacristão na frente da igreja, ele andava a varrer a "sancristia" e de lá não saíra até que o padre chegasse. A opinião da Rosa concordava com o depoimento do sacrista: aquilo foi arte de gente que queria enjeitar o. "provezinho" e, isso feito, raspou-se por esses mundos de Deus. O que tudo somado, ficou o padre, de pedra e cal, na intenção de adotar o pequeno por filho. Levou-o à pia nos braços da Rosa, todo embonecado no seu comprido vestido branco, a touca ataviada de fitinhas azuis, fechando-lhe, como a casca de uma semente grossa, a cabecita redonda e cor de cuia.
A escolha dos padrinhos, e com ela todas as minúcias do ato, foram amorosamente pesadas e repesadas pelo padre. Antes de tudo, a fixação do nome. Na véspera, padre Guilherme chamou a Rosa à sala de jantar e, comunicando-lhe que no dia seguinte se batizaria o menino, consultou-a, numa doce complacência:
- Diga-me uma coisa: que nome você lhe poria?
A Rosa sorriu enleada e lisonjeada pela atenção, e, afinal:
- Não sei, não, senhor.
- Ora, diga lá, vamos a ver.
- Tubia! ejaculou a mulata muito depressa.
- Tobias? Sim, não é mau nome... Mas não se lembra de outro?
- Migué!
E o padre repetia o nome, olhos no ar, como se lhe estivesse a tomar o gosto:
- Miguel... Miguel.
- Venanço! Purfiro! Benedito!
- Espere, espere. Porque não lhe havemos de pôr o nome de Chicão, coitado! Além do mais é uma homenagem que presto a esse bom amigo de tantos anos, tão fiel, tão bonachão...
- Ih! "seu" padre, Chicão é muito feio.
- Chicão não é nome, mulher, Chicão é Francisco, Franciscão.
- Eu sei, mas pensava.
- E você nem sabe que o nome do Chicão não é Francisco! Chicão era o pai, e a alcunha passou ao filho. Foi a única herança, além daquela cabeçorra de moganga, que o Chicão velho lhe deixou. Seu nome de batismo é Matias.
- Matias é bonito.
- Pois prepare o nosso Matiazinho para amanhã, às nove horas.
Padre Guilherme deu umas passadas pela sala, preocupado, o beiço superior entalado entre os dentes, as mãos enclavinhadas uma na outra, a estalar os dedos. De repente, parando:
- Rosa, você que acha?
- "Seu" padre...
- Eu tinha pensado em escolher S. Benedito para padrinho do rapaz. Acontece, porém, que eu também tenho vontade de o ser... Não lhe parece que o santo pode ficar zangado?
- Acho que não. Santo não se zanga à-toa. Por isso mesmo é que é santo.
- Você fala como uma teóloga, Rosa.
- Bem, o padrinho sou eu. E a madrinha, Rosa?
- Não pensa que deve ser Nossa Senhora das Candeias?
- Não hai madrinha mió, seu padre.
- Sob o ponto de vista mundano, haveria, talvez...
A cozinheira não compreendeu, mas o padre não insistiu.
- E as roupinhas, Rosa? Estão prontas as roupinhas?
- Nhá Maruca prometeu entregar hoje de tarde o vestidinho e os sapatos. Depois da "janta" vou lá. A touca já está aí. O senhor já viu, não já?
À tarde, a Rosa "foi lá" e voltou sem o vestidinho e sem os sapatos: faltava pôr uns laços ao primeiro e rematar os segundos: juraram mandá-los no dia seguinte bem cedo. Padre Guilherme irritou-se:
- O diabo, queira lidar com costureiras! Essa droga devia estar aqui há três dias! Espere, que eu vou ver isso.
Envergou a batina, pegou o chapéu, pô-lo meio atravessado, enfiou o guarda-chuva embaixo do braço, e ia saindo em chinelos.
Advertido pela cozinheira, consertou o esquecimento, meio envergonhado, e partiu ardendo de ânsia, mas fingindo perfeita calma.
- Eu vou lá... Preciso mesmo falar ali com o Evaristo da loja... não custa.
E saiu, com as mãos nas costas, e devagar, como quem não tinha pressa.
No dia seguinte, o batizado fazia-se à hora designada e, de volta, padre Guilherme não pôde conter-se que não pegasse numa das mãozinhas do pequenito, e não a levasse aos lábios espichados em bico, num beijo sonoro.
- Você sabem? - disse ele à Rosa e ao Chicão, na sala de jantar, a descalçar os sapatos. - Eu só não gostei de uma coisa: o pequeno não chorou ao levar a água fria no coco... Dizem que é mau. Vocês que acham?
- Qual, "seu" vigário! eu não acredito nessas histórias, - disse a Rosa, muito firme, num muxoxo.
E o Chicão sentenciou, com a mesma superioridade serena:
- Tem muito tempo "pra chorá", "seu" padre!