Perto da casa de Veloso, num terreno cheio de vassourinha, de cuja massa emergiam algumas laranjeiras andrajosas, carregadas de ervas parasitárias, e alguns arbustos de jardim esgalhados e pensos, agachava-se um casebre de porta e janela. As paredes, rachadas aqui, esfuracadas ali, mostravam por toda a parte a ossatura podre dos barrotes e ripas. A janela, pequena e baixa, estava arrombada, e por ela se via o compartimento da frente, de chão batido, com um resto de fornalha a um canto e todo negro de fumaça. Do teto de telha-vã e dos caibros que se lhe cruzavam por baixo, tudo crespo de picumã e teias de aranha, jorravam, em vários sentidos, largas réstias oblíquas de luz doirada, pois o dia estava claro e lindo. Num dos lados do compartimento, outra janela escancarava-se para o quintal, e por ela espiava, como a querer invadir a casa vazia, um tufo de maravilhas roxas.

- Sabe quem morou aí? perguntou Veloso ao padre.

- Tenho uma idéia vaga. Um latoeiro, creio...

- Não, um ferreiro. Conhece o caso desse homem e sua gente?

- Já ouvi qualquer coisa...

- Errada, sem dúvida. Ninguém sabe como eu essa história.

Ali morou o Manuel da Costa, um homem lá do litoral, de Cananéia ou Xiririca, sujeito esquisitão, mas honrado e bom. Gostava de viver em casa, entre a forja e a família, e só o viam na rua quando havia festa grossa na igreja, ou sessão do júri para que ele fosse sorteado. A família era a mulher, - uma mulher pouco interessante, gorda e feia, com ares de virago, que fazia sequilhos para vender; um filho, o Paulo, de seus dezesseis anos, que o ajudava na tenda; e uma filha, a Raquel, criaturinha linda, com uns olhos muito grandes, uma carinha fresca e doce, a flor da casa. Nunca vi chefe de família tão exemplar - tão severo e tão meigo, tão diligente e tão piedoso. Era opater familiasprimevo, respirando uma bárbara segurança do seu papel, satisfeito de carregar a sua gente às costas, contente da sua suave e terrível missão de povoar o mundo, e de dar aos filhos o pão e o ensino, provido e austero.

Também nunca vi casa mais feliz. De manhã muito cedo, passando-se por aqui, era certo ver-se a Raquel, nos seus tamanquinhos e no seu avental de chita, a varrer a testada até o meio da rua, com uma vassoura de guaxuma, deixando ali um retângulo de chão todo arranhado e brunido. La dentro, sinh'Ana, esperta, sacudia as banhas, a preparar o café, a ralhar com o Paulo que era dorminhoco, a rachar lenha, a dar milho à criação, que entrava familiarmente pela casa a reclamar a ração matinal. E durante o resto do dia era a mesma atividade alegre e a mesma ordem.

Manuel da Costa vivia, desde o romper do dia até à noitinha, à beira da fornalha e da bigorna, com o seu avental de couro sobre a camisa de algodão, as mangas arregaçadas até o cotovelo. Às vezes parava para descansar, chamava a Raquelinha, punha-a entre os joelhos, envolvia-lhe o rostinho na onda áspera das barbaças negras, perguntava-lhe coisas, mandava-lhe ler a cartilha, e alisava-lhe com a mão calosa os cabelos cor de mel. E então a sua cara severa, barbaçuda, tostada pelo bafo da forja, ficava como a cara de um santo, de São Pedro ou São Paulo, venerável e doce... O enlevo em que ele caía, junto dessa criança!

Depois, mandava-a entrar, e voltava à forja, e gritava ao filho que não dormisse na corda do fole, e malhava, malhava sonoramente, repicando, a estremecer tudo, a despedir faíscas para todos os lados... E cantava. A casa era pobre, os petrechos primitivos, o piso de terra, o teto de telha-vã, as paredes negras, mas ali dentro vivia a simplicidade, o amor e a saúde. E o bom vulcano cantava, pontuando o canto a marteladas - e como estas e aquele era tudo expansão da mesma força e da mesma alegria, podia-se duvidar se ele cantava por obrigação ou se martelava por prazer.

Quando não tinha muito que fazer (o que era raro) o ferreiro fabricava o que lhe dava na cabeça - umas rosetas de espora, para as oferecer a um amigo do sítio, uns ferrolhos de porta para o compadre Fulano. Aquela tenaz que eu tenho, com a qual a Teresa traz a você, às vezes, uma brasa para acender o cigarro, foi presente do Manuel da Costa.

Um dia, lembrou-se de fazer uma pulseirinha para a filha, coisa de brincadeira. Começou-a, numa hora de folga. Com o trabalho veio-lhe o desejo de aperfeiçoar a obra. A mão pesada, afeita ao serviço grosso de uma forja primitiva, os instrumentos imperfeitos de que dispunha, como que conspiravam para lhe quebrar a pequenina e graciosa ambição. Tomava um pedaço de ferro, afilava-o, polia-o, e tanto se esmerava que, de repente, ei-lo torto, lascado, partido. Afinal, num momento de mais calma, sempre conseguiu bater e rebater uma vergazinha até deixá-la numa fita estreita e lisa. Depois, aproveitando com todo o cuidado outros momentos de sossego, tornava a pegar a pulseirinha, e punha-se a repolir-lhe as asperezas, devagar, devagar, paciente e amorosamente. Ao mesmo tempo, forcejava por dar à curva do aro a maior suavidade possível, e só isso quanto lhe custou! Quanta suada pachorra, quanta marteladazinha nas unhas! Afinal, um dia, deu por terminada a conformação, e tratou de fechar a roda ajustando por cima das duas extremidades unidas um anelzinho também de ferro, onde se abriam as quatro pétalas de uma flor quimérica, de sob as quais partiam dois filamentos a enroscar-se pela haste da pulseira, até certa distância, como gavinhas.

O trabalho que lhe deu esse arremedo de jóia! O tempo que lhe levou! Lavrou-o, a princípio, nas horas de lazer, como por brinco e distração. Depois, foi entrando aos poucos pelas horas de ocupação obrigatória, e ao dar os últimos retoques quase não fez outra coisa, por muitos dias. Quando chamou a Raquel e enfiou-lhe no braço a sua linda pulseira, a filha estava com dezesseis anos..

Tinham-se passado cinco.

Mas, como se não houvessem passado, a mocinha recebeu como menina a sua pulseira de ferro, e remirou-se encantada, como se houvesse ganho uma pulseira daquelas que o Martinho, o mascate judeu, andava a vender aos ricos na sua caixa atafulhada de ouro e pedraria.

Por esta altura ausentei-me de Candeias. Negócios vários chamavam-me a São Paulo, onde me demorei meses. Nas vésperas do regresso, lembrei-me do meu amigo Manuel da Costa, e lembrei-me da Raquel. Fui a uma loja, comprei uma grande boneca para a minha amiguinha, que tantas vezes me servira um café aromático, numa tigelinha de louça com riscas vermelhas e azuis, ali na oficina, onde às vezes eu ia conversar com o Costa.

Voltei. Chegando à casa com as malas, imaginei que ia dar uma grande alegria à mocinha, que eu sabia que conservava o gosto de brincar com bonecas, pois via-a muitas vezes entretida a vestir e desvestir umas pobres bruxas de trapo, com olhos de linha preta e boca de linha vermelha, a cara chata e o corpo mole. Informando-me, porém, com a Teresa do que se passara cá na terra em minha ausência, soube que a Raquel era morta... Senti um grande soco cá dentro.

Nada disse à Teresa, mas peguei na boneca, escondi-a em baixo do paletó e dirigi-me ao poço velho no fundo do meu quintal. Afastei a tábua que o cobre, e arremessei lá dentro a boneca, na própria caixa de papelão, como num esquife, com umas pedras nos cantos. A caixa bateu na parede limosa do poço, toda crespa de avencas, e caiu na água, abrindo uma infinidade de círculos concêntricos, cada vez mais lentos na fuga..

Quando a água voltou à serenidade, meu amigo, vi lá dentro o meu rosto, pálido, carregado, e tive a impressão de que alguém, de um outro mundo, severamente, me condenava tanta puerilidade. Mas eu saí dali com o coração transtornado.

Acusada por línguas danadas de ser demasiado complacente aos agrados de um velhote (esse velhote era eu...) que "inexplicavelmente" lhe freqüentava a casa e de repente "fugira" da vila sob esfarrapados pretextos, a desgraçadinha ficou numa grande tonteira, não soube sequer como se justificar, não teve mais coragem de aparecer a ninguém. O velho Costa, vendo a sua casa assaltada pela calúnia, e vendo sua filha enrolada na teia torturante, perdeu a cabeça, e procurou o autor da infâmia para lhe enterrar uma faca na cernelha; mas não encontrou senão portadores inocentes de uma notícia ouvida. Caiu numa grande tristeza. Dias houve em que o foram encontrar sentado numa tripeça, calado, o olhar duro fincado no chão, o punho sumido na barba, junto da fornalha fria. E com isso a pobre rapariga ainda mais se desesperava.

Depois, um domingo, a Raquel aguardou a costumada visita do primo Eduardo, um rapagão que a adorava e com quem a casamenteavam desde criança. Penteou com vagar os cabelos cor de mel, enxugou as lágrimas, calçou umas meias e o tamanquinho novo, e pôs no braço a sua pulseirinha de ferro. Foi para a porta, encostou-se ao batente, e ali ficou, a enrolar e desenrolar o lenço de ramagens entre as mãos nervosas. O Eduardo não apareceu...

No dia seguinte, o ferreiro mandou acender a fornalha. Era preciso forjar - forjar o pão para a boca.

Pôs-se a trabalhar, trabalhou até a hora do café. Chegada essa hora, como de costume gritou para dentro: "Eh! Raquel!!" Ela já sabia.. . Daí a pouco viria com a tigela fumegante, e com um pedaço de broa ou uns doces secos numa cestinha de taquara... Manuel da Costa gritou mais uma vez, a mão em concha junto à boca, voltado para o interior da casa: "Eh! Raquel!..." E como ela ainda não viesse, largou o malho ao pé do cepo da bigorna, atravessou a casa deserta e foi falar à mulher, que lavava umas peças de roupa junto ao poço, no fundo do quintal. A mulher também não sabia da filha, e perguntou surpreendida:

- Pois não está lá dentro?... Não está no quarto?... Não está ali em frente, no vizinho?

Saiu com o marido, a procurar, ambos numa aflição extrema. Procura que procura, indaga que indaga - depois de duas horas foram dar com a menina lá em baixo, numa curva do ribeirão, enroscada nos galhos de um ingazeiro que ainda lá se debruça por cima da água: boiava como uma folha caída... Perto, sobre um espinheiro, o seu xale de lá cor de rosa e, sobre ele, pousada delicadamente, a pulseirinha de ferro.

Manuel da Costa e sinh'Ana ficaram como dois fantasmas - vagueavam por dentro de casa, na sombra e no silêncio, magros e doentes, a suspirar e a gemer. O Paulo saiu à busca de emprego. A forja nunca mais se acendeu.

Meses depois do desastre, aquele ferreiro robusto como um touro caia para não mais se levantar, desfeito por um sopro... A mulher não tardava a segui-lo.

A casa, posta em praça, não encontrou quem a quisesse. Dentro de pouco tempo começou a esboroar-se e a rachar-se, a encher-se de barrigas e corcovas. O jardinzinho ali ao lado, onde sinh'Ana cultivava uns canteiros de dálias, sempre-vivas e cravos - flores de pobre - mirrou, encheu-se de mato e de formigas. O poço esbeiçou-se e revestiu-se de limo, afogado no vassoural. Um dia, meninos vadios arrombaram essa janela. Hoje a casa é lugar de divertimento para esses animaizinhos; e por ela entram com os meninos os tico-ticos e as corruíras; e as borboletas, aos pares, vêm namorar-se e bailar nesta ruína, no meio desta tranqüilidade da natureza...