Um domingo, acabada a missa, padre Guilherme foi para casa e, como habitualmente, lá encontrou sobre a sua mesa de jantar aGazeta de Candeias,jornalinho de pouco mais de palmo, "literário e noticioso", dirigido por Albano Gomes, mas de fato orientado e escrito por Salomão Camacho, o mestre-escola. Leu-o ao almoço. Pouca matéria: quatro noticias locais, outras tantas da Corte, algumas de São Paulo, umas "Variedades" de almanaque, e um pequeno artigo - "Aniversário natalício", que rezava assim:
Ainda é recordado com saudades por toda a sociedade candeiense, assim dohigh-lifecomo das classes mais modestas, o ilustre sacerdote e emérito pregador, o Revmo sr. frei Antônio Jeremias de Sant'Águeda, que há meses nos visitou, no seu árduo e santo mister de missionário.
Verdadeiro tipo de ministro da sublime religião do Mártir do Gólgota, o Revmo frei Antônio alia às suas peregrinas virtudes de apóstolo os dons de um intelecto majestoso como o de Mont'Alverne e outras águias da palavra que sabem agradar e convencer ao mais exigente auditório.
É, pois, muito diferente de certos ministros de Cristo que, ou por falta de competência, ou por excesso de comodismo, não gostam de subir ao púlpito e ensinar as almas sedentas de verdade a verdadeira doutrina de nossa santa religião, que tantos transviados necessitam dela não só para sua salvação como também para serem elementos úteis à sociedade.
Além de tudo, o Revmo sr. frei Antônio é excessivamente modesto, não se dedignando de atender com angélica bondade todos que dele se aproximam, quer por necessidade, quer por mero prazer, sem distinções de fortuna, de posição social ou de cor. Todos encontram no virtuoso capuchinho a mesma atenção, sem as soberbias que tão mal assentam em certos levitas, aliás bem precisados, quem sabe, da tolerância e magnanimidade dos homens sensatos.
De fluindo hoje a data natalícia do venerando pregador, aGazeta de Candeias,que nunca se esquece de prestar homenagens a quem na sua consciência merece-as, envia a frei Antônio Jeremias de Sant'Águeda muito saudar, desejando-lheex-imoainda longos anos de existência com as bênçãos do céu.
Padre Guilherme nunca soube que o autor desse artigo, que não podia ser outro senão o professor Camacho, fosse tão amigo de frei Antônio. Frei Antônio fora hóspede do vigário, havia cinco ou seis meses, e passara menos de uma semana em Candeias, onde nunca estivera anteriormente... Era, pois, com alguma estranheza que o vigário presenciava aquela torrente de encômios, tão calorosos e tão inesperados.
Não tardou que Veloso aparecesse. Falou-lhe no artigo e na sua surpresa.
- Já li. Não há que estranhar. Você, padre, é como lhe digo sempre, você vive fora deste mundo... Olhe, quando vir um cavalheiro muito entusiasmado com um seu semelhante, a tecer-lhe panegiricos ardentes, pode estar certo, noventa vezes num cento, de que esses elogios são feitos "contra" alguém. Isto na hipótese simpática de que não se trate de meras adulações! "Eles", em regra, são incapazes de abrir a boca para louvar um indivíduo, se a pena de o fazer não é compensada ao menos pela esperança de machucar com isso um outro indivíduo. Demais, meu caro reverendo, a intenção desse Camacho é tão clara!
- Acha?
- Mas entra pelos olhos, meu amigo! Frei Antônio Jeremias é apenas um venerável cabide, onde esse mono imbecil dependura as qualidades de que despe o vigário de Candeias. Pois você não viu logo isso?
- Desconfiei.
- O maroto procede justamente como meu pai - santo homem! - quando eu fazia alguma das minhas, em pequeno. Se eu fugia da escola, se me ia às guabirobas com a molecada do meu tempo, se não aprendia a lição de catecismo, ou se brigava com os meninos da vizinhança no jogo do pinhão ou do pião, meu pai, em regra, não me castigava pelos processos ordinários. À hora das refeições, quando aos pequenos não era permitido arredar pé da mesa, meu pai fazia, simplesmente, o elogio dos pirralhos vizinhos, da minha idade: elogiava todos, até os piores, catando neles as virtudes que a seu ver me faleciam, catando-as com a pachorra de quem catasse piolhos na gadelha dura de um bugre... E como eu sofria!... Esse processo, depois o verifiquei, é universalmente adotado - entre os adultos. É o processo que lhe aplica o nosso ilustre Camacho. Não há neste artigo uma linha, uma frase, cujo avesso não se projete sobre a sua pessoa...
Padre Guilherme quedou-se edificado. Depois de uma longa pausa, sorriu acremente, e declarou a Veloso:
- Tem razão... Agora me explico, veja você! Agora me explico o formidável elogio que ele me fez, o Camacho, nesta mesmaGazeta,há três para quatro anos, quando brigou com o juiz. Como deve lembrar-se, eu e o juiz, sem sermos propriamente inimigos, não nos podíamos aproximar, porque ele era um caráter autoritário e eu, um caráter resistidor. Espiávamo-nos de longe, com pouca simpatia, mas com mútuo respeito, e íamos vivendo. Um belo dia, Camacho rompe com o juiz, e passa-me um tremendo elogio; eu era, positivamente, a primeira personalidade de Candeias, e a todos os aspectos... Nunca pude saber o motivo de tamanha gentileza. Sei-o agora.
E o padre quedou-se silencioso, com a cara amarrada, a ruminar mais essa decepção retrospectiva.