Naturalmente nós todos começamos a rir. A pequena tinha jeito para a coisa. Cada gesto seu era um modelo de topete e de cinismo, deste cinismo de bombonière em montra de confeiteiro, um cinismo que se oferecia, que se ofertava, que estava ali. No meio das outras, os cabelos louros repuxados para trás como a crina de uma poldra, o dorso cilhado pelas barbatanas do colete que lhe comiam o ventre, pondo em relevo a linha das ancas, o busto empinado, as mãos adejantes, a garota dançava como ninguém a vertigem do cake-walk. Fora Cinira Polônio, a estrela coruscante, que com seu faro de teatro descobrira na linha de vinte coristas aquele diabo.
- Olhem - fazia ela - por que não dançam vocês com a pequena?
Imediatamente, todos os olhos convergiram para o bichinho, minutos antes anônimo. O maestro parou: "- Homem, realmente, estou vendo isso mesmo!" O empresário coçou a cabeça, e todo o teatro, naquela hora de ensaio, em que a crua violência do sol do terraço tomava um esmorecido ar cerúleo para os lados do palco, esperou com um sorriso pregado na face. As coristas, algumas conservavam as mãos no ar e eram uma galeria de caras empapuçadas ainda do sono da manhã, mas bem moças, bem fortes. Cinira Polônio fez um gesto.
- Venha cá você.
A pequena sorriu e aproximou-se num passo de footing, o passo esporte inaugurado por certas cocotas nas fatigantes exibições do Castelões. Tinha um enorme chapéu de palha-do-chile com fitas de veludo, e era a única de lábios pintados.
- Pronto.
- Nunca trabalhaste em teatro?
- Não senhora, agora é que estréio.
- Ah! estréias agora, - sorriu a estrela acentuando o verbo. - E donde vens?
- Venho da casa de Chica Pereira, estou lá por causa de um sujeito que me queria explorar. Compreende, eu não sou dessas. Foi lá que eu aprendi o cake-walk com os ingleses, uns diabos, madame, que é chegar e é vestirem-se com a roupa da gente.
- E que idade tens tu?
- Eu vou fazer quinze.
- Bom, - fez o empresário - vamos vê-la dançar o negócio, mas só.
O maestro fez soar os primeiros acordes, e ela empinou-se, e como estava sendo observada, exagerou, caricaturou a dança num delírio que era uma pândega, brandindo a sombrinha e gritando away! Naturalmente, então, nós começávamos a rir, quando um empregado trouxe desdobrado um papel da Justiça para o ensaiador.
Embaixo, na platéia, um magote de agentes secretos e de soldados da polícia olhava o ensaio.
- Quem é aqui a Etelvina dos Santos? - indagou o ensaiador.
- Sou eu, sim senhor. Ainda esses canalhas!..
- É, o juiz manda entrega-la aos agentes. Você é menor, vai ser depositada numa casa de família.
- Imbecis! Já me mandaram buscar três vezes à casa da Chica. Não querem deixar a gente ser o que deseja. Mas eu os arranjo!
Todo o pessoal do teatro, coristas e carpinteiros, atrizes e atores, não teve uma pilhéria. A pequena tomou o seu ar mais arrogante, desceu à platéia, sumiu-se no terraço com os agentes, como quem vai esbofetear alguém.
- Mas que juiz esse que deseja moralizar uma pequena de tanta força.
- O diabo é que a rapariga tem jeito. Bom! A postos, minhas senhoras. Maestro, repita.
De novo o piano começou o cake-walk e as mulheres de capa larga, com a face desbotada pela noite em claro, moveram-se num rumor de sedas roçadas. Eu, a um canto, vendo passar no palco aquele punhado de mulheres, que à noite acenderia desejos na platéia, pensava na vida curiosa das coristas nacionais. Ah, as coristas! Neste país em que as mulheres não têm grandes necessidades, o posto de corista era positivamente dado às infelizes. Os autores nada lhes faziam nas peças alegres, nem as punham em relevo. Eram damas ou muito gordas ou muito magras, lamentavelmente sem graça. Quando aparecia uma criatura mais moça, ou não demorava, ou morria, ou era logo artista empurrada pelos cômicos, jungida às ligações violentas. E era uma tristeza ver mulheres velhas com famílias numerosas, o ventre enorme, o corpo numa elefantíase de linhas, cambando os sapatos e sujando as gazes, clamarem nos revistões cariocas: "Nós somos as ninfas", ou outra qualquer afirmação ainda mais escandalosa, para ganhar cinco mil-réis... Era angustioso. Nos ensaios, os ensaiadores esgoelavam-se para fazê-las compreender um gesto comezinho, nos intervalos, algumas davam de mamar aos filhos enquanto as outras se remordiam numa inconsciente miséria entre os carpinteiros bastante maus para atirar-lhes cenários e maços de cordas. As coristas! Eram os canhões de bucha, enquanto a estrela mudava de roupa e o ator principal punha outro colarinho. E não havia quem quisesse ser corista. Algumas tinham vinte anos de trabalho efetivo, talvez mais. Algumas eram contemporâneas da primeira revista nacional.
E agora, com a transformação das ruas, a cidade escamava de súbito a indignidade e o vício, mostrava todas as furnas do caftismo e nós víamos, ao desejo do luxo, ao contato com o horror, uma flora precoce de pequenas depravadas, galgando o tablado com uma ânsia de bacanal e piscando de lá o olho, na idade em que deviam brincar o ciranda-cirandinha das estalagens onde nasceram... Era ou não a civilização, era ou não o Rio reflexo de Paris, era ou não a cidade igual a todas as outras cidades, com as mesmas necessidades, a coréia de cinismo e o mesmo apetite pelos frutos ácidos, pela mocidade que todas as cidades velhas possuem? De embrulhada, o teatro também se transformava, e no gênero alegre nós iríamos ouvir as graças (sim, as graças, tudo é possível...) dos revisteiros apimentadas, esquentadas por todo aquele excesso de provocações fesceninas...
Mas que iriam fazer as outras, as velhas, as mães de família? Que iriam fazer esses bonecos de música desafinada, que durante decênios se estatelaram em cena, cantando como que a mesma coisa sempre? Como se alimentariam as pobres, agora, depois de uma vida inteira passada a dizer - "Nós somos, nós somos...", num coro vazio e lamentável, vestindo em cetins baratos todas as fantasias desde a de flor à de animal?
Oh! Era a reforma das coristas, reforma desoladora apenas para as reformadas, mas com um bando de recrutas, em que se sentia todo um exército feito por um sorteio indireto e lambanceiro.
O cake-walk acabava. Deixei o teatro, subi a Rua do Espírito Santo. Mais adiante outro buraco dramático. Enfiei, e oh! Deus do céu. Dei exatamente noutro escândalo da reforma.
No terraço, sob o riso dos carpinteiros e do pessoal barato, um tipo baixinho, magro, de calça larga e bigode torcido, espumava pragas contra uma menina de vestido curto, mal-ajambrada, ainda pouco limpa, com os olhos de animal e uma boca vermelha, uma boca sangrenta, uma boca que parecia um fruto. Já tinha mandado chamar o diretor, o tipo. Estava decidido.
- Mas o que é? - fiz, intervindo.
- Que tem com isso? - indagou ele. Venho buscar minha mulher.
- Quem é sua mulher?
- Sou eu - chorou a pequena. Sou eu, mas estou separada há seis meses dele, porque mamã disse que homem sem trabalho não é marido. Eu casei, não foi por gostar; foi porque o delegado obrigou. Burro!
- Desavergonhada!
- Mas que é isto? Você, menina, que idade tem?
- Quatorze, sim senhor, mas já sou maior e separada; e não vou, não vou, porque quero representar e ganhar a minha vida.
Deu uma rabanada e partiu para o palco, num bamboleio feroz de todo o corpo, enquanto o marido batia o pé, danado.
Neste momento, porém, apareceu o diretor.
- Não repares, filho. São as coristas novas. a reforma. Tudo voluntário, mas uma desorganização feroz.
- Sinto pelas outras e compreendo a miséria, o vício, o horror desses destroços precoces.
- Bonita frase! Anda daí, vamos tomar um grogue. Ó José, ponha esse marido lá fora...
E fomos tomar grogue gelado com algumas atrizes maduras e loucas de riso - porque os incidentes da reforma eram realmente alegres - enquanto o marido, empurrado pelos carpinteiros, saía aos trancos, praguejando...