A bandeira nacional (Eduardo Prado)/Introducção

INTRODUCÇÃO


 

A 15 de novembro de 1889, a guarnição e a força naval do Rio de Janeiro effectuaram a mudança da fórma de governo do Brasil.

A bandeira e as armas da nação, symbolos da Patria até aquelle dia, foram mudadas. Entendeu-se que a Patria tambem tinha mudado. No logar das instituições abolidas ficou um governo, por sua origem, por seus processos, por suas theorias, por suas praticas e por seu pessôal, inteiramente diverso do governo supprimido. O governo representativo e constitucional desappareceu. O chefe supremo do Estado, até então hereditario e limitado nos seus poderes, deixou de ser hereditario e deixou, até hoje, de ser limitado. Ficou assim creada a Republica dos Estados Unidos do Brasil.

No dia 15 de novembro, voltando os regimentos para os quarteis, os alferes enrolaram as bandeiras e, atiradas sobre uma carreta, foram ellas recolhidas aos armazens do exercito, como trastes já sem uso, symbolos mudos, que já nada diziam aos corações. A força desfilou pelas ruas, sem que sobre as baionetas rutilantes ao sol fluctuasse o velho symbolo da Patria. Têm o seu destino as bandeiras: pela manhã, o exercito lhes fazia continencias; á tarde, eram largadas, talvez, a um canto escuso do quartel. Hontem, palladio sacrosanto do patriotismo, a que foram feitos os juramentos mais solemnes; hoje, pedaço de panno, que o soldado teve de abandonar e de esquecer.

No mesmo dia, foram içadas novas bandeiras. Eram de listras horizontaes verdes e amarellas, tendo a um canto vinte e uma estrellas de prata em campo azul. Essas primeiras e ephemeras bandeiras desappareceram, dahi a cinco dias, quando o Diario Official publicou o decreto n. 4, de 19 de novembro[1], conferindo ao Brasil nova bandeira e novas armas[2].

Não agradou a todos esse decreto. O sr. Raymundo Teixeira Mendes, em defesa delle, publicou, no Diario Official de 24 de novembro, um escripto[3], a que chamou Apreciação Philosophica e uma carta posterior, datada de 21 de Frederico de 101 [4].

O sr. Raymundo Teixeira Mendes [5] pretende, segundo diz, patentear as eminentes qualidades moraes e politicas do pavilhão republicano do Brasil. «Esse pavilhão — diz o sr. Teixeira Mendes — coincide essencialmente com uma patriótica inspiração do denodado chefe do governo actual» e «da força publica de terra e mar, única parte da nação em que o culto fetichico [6] da bandeira foi systematicamente mantido».

Um simples exame da bandeira e uma leitura da Apreciação Philosophica mostraram-nos que, no plano da bandeira applaudido pelo sr. Teixeira Mendes, houve certamente:

1.º Desprezo, ou ignorancia da tradição histórica.

2.º Erro capital de astronomia.

3.º Grave menoscabo da esthetica.

Destacaremos, segundo essa ordem, e examinaremos, uma por uma, as principaes proposições da Apreciação Philosophica, documento que, no repositorio das nossas leis, dará à posteridade uma curiosa impressão de alguns homens e de alguns factos brasileiros, neste fim de seculo.

Não fazemos parte da força publica de nossa Patria, a quem o sr. Teixeira Mendes attribuira o privilegio do amor á bandeira nacional. Não são do exercito nem da armada perto de quatorze milhões dos nossos compatriotas. Nós, porém, como todos os brasileiros, temos pela insignia gloriosa de nossa nacionalidade o mais ardente amor. O culto que lhe consagramos, embora chamado hoje de fetichismo no orgam official, é um culto commum a todos os filhos do Brasil.

Esse amor do symbolo supremo da Patria é que nos leva a assignalar e a deplorar os erros desconhecidos e até elogiados pelo sr. Teixeira Mendes e acceitos pelo Governo Provisorio, no que diz respeito á nova bandeira do Brasil.

 

Paris, outubro de 1890.

 

  1. Annexo n. 1.
  2. Em Lisbôa, dous officiaes da marinha brasileira, ignorando a mudança, arvoraram, a bordo do Alagôas, a bandeira das listras, que já não era a da nova Republica, no dia 8 de dezembro; era, comtudo, a bandeira á qual, na occasião, deviam a mesma fidelidade que haviam jurado á antiga.
  3. Annexo n. 2.
  4. Annexo n. 3.
  5. O sr. Teixeira Mendes tem a gentileza de, ao subscrever os seus artigos, informar o publico de que mora ao n. 10 da rua de Santa Izabel e de que nasceu no Maranhão (Caxias), em 5 de janeiro de 1855.
  6. O fetichismo é a adoração de um objecto qualquer considerado Deus, exercendo as funcções e revestido do poder de um Deus. É preciso não confundil-o com a idolatria, que é a adoração de uma imagem, ou de um objecto, considerado como a representação, ou a morada occasional, ou habitual, de uma divindade, independente do objecto. A bandeira do Brasil nunca foi considerada Deus. Póde, até certo ponto, dizer-se que era idolatrada pelos patriotas, como a representação da Patria. Esta distincção entre fetichismo e idolatria é elementar. É de extranhar a confusão feita pelo sr. Teixeira Mendes.