A Horácio de Carvalho
O AMOR É UMA ESCADA que tem uma extremidade na glória e outra no abismo, — disse-o Matias de Carvalho.
Vezes há que essa escada devendo resvalar na glória, resvala abruptamente no abismo.
E ai daqueles que se tem librado a ela.
O amor é uma torrente de circunstâncias anormais.
Quanto maior é o amor, maior deve ser o sacrifício.
O amor faz gigantes e faz anões, ilumina e entenebrece os espíritos nervosos e doentios.
É como o cáustico; cura mas deixa os sinais evidentes.
Daí as incompatibilidades, as duras idiossincrasias do amor.
Daí as monstruosidades e os abortos morais, os perigos e as aberrações sociais.
O amor, o amor que se consubstancia no dever, na harmonia, no bem-estar, no sossego de espírito, na probidade e na lisura, é o maior elemento higiênico da moral da família.
Para a felicidade doméstica, o agente que mais influi é o amor, mas não esse amor gasto que anda a suspirar pelos madrigais, pelas belas noites de luar, pelos suntuosos saraus de onde se sai com o estômago encharcado de maus vinhos e a consciência cambaleando, pelo efeito das luzes, das flores, das músicas e das pompas.
Não! Não!...
Mas o amor sadio, limpo, asseado, o amor que sabe ter energias e sabe ter heroísmos, o amor que ri com a esposa e soluça com o filho, o amor que mostra a camisa rota do operário, o arado do aldeão, mas que à noite, nas suavíssimas meias sombras do lar, lembra-se que tem de almoçar no dia seguinte e que a mulher já lhe disse, abraçando-o expansivamente, entre as harmonias alegres e francas de um sorriso, que não há lenha em casa.
É esse o amor.
O amor que faz bem, que corporifica os sentimentos da alma, que se multiplica de vitalidade pelos sentidos, pelos olhos, pelos ouvidos, pelos gestos, por todos os atos e complementos psicológicos e fisiológicos.
O amor que é a filosofia dos seres bons, honestos, o amor que é o oxigênio da temperatura do afeto humano.
Assim como o ar atmosférico tem influência sobre os pulmões, o amor tem influência sobre o trabalho, sobre o dever, sobre a virtude.
Da temperatura do amor depende a temperatura da felicidade conjugal.
Há desgraçados que deveriam ser felizes, assim como há felizes que deveriam ser desgraçados.
Os primeiros porque trabalharam para ser felizes; os últimos porque nada fizeram para isso, não deixando, porém, de ter a consideração de — zelosos de seu bem-estar e trabalhadores do seu futuro.
O verdadeiro amor, aquele que é para as crianças o imaculado tesouro, o verdadeiro amor, aquele que é para os cegos a benéfica luz, aquele que é para os mortos o miraculoso surge et ambula, esse, esse amor, supremo como as supremas harpas do infinito, claro, magnífico como as vestiduras brancas dos justos, imponente como a memória de Camões cortando a monotonia de gelo de trezentos anos, esse amor é a afinação das almas pela música da natureza criadora.
Fora preciso que a humanidade não cuidasse tanto das funções peristálticas do estômago, para abrir o grande livro da virilidade universal:
O amor.
Fora preciso que as consciências expelissem de si todos os fetos e aleijões que elas produzem e que, tomando uma nova seiva, uma porção de sangue, uma boa parcela de massa encefálica, uma intuição muito direita, muito outra, dos admiráveis problemas que a filosofia derrama na flor, na árvore, no infinito, em toda a criação, em toda a natureza, sintetizassem no amor a concretização de todos os fenômenos e acontecimentos animais.
— O amor, tem razão o poeta, é uma escada que tem uma extremidade na glória e outra no abismo.
Casaram-se.
Ela muito limpa sempre, muito asseada, sabendo ler bem, costurando à noite, na máquina, paletós, calças, coletes, sacos de aniagem; fazendo à mão toalhas de rosto, bordando, toda alegre, com os seus pospontos muito bem acabados, delicadamente feitos; indo ao quintal de manhã cedo, aos raios mais firmes do dia, ver a alacridade doce de suas plantas, de suas flores, de sua horta muito galante, dando de comer, milho moído, aos pintos, que vinham, vinham, vinham, em pequeninos gritos, em expansões castas, abrindo o bico, rufiando as asas tenras, roçando as pernas pela macia plumagem das mães, umas galinhas gordas, satisfeitas, parecendo donas de casa, amarelas, rajadas de branco e preto, levando os grãozitos de milho ao bico e dando aos pintos todos contentes de sua vida.
Uma alegria das pobres aves.
Ele um pintor boêmio, sem apreço à honra; casara-se por amor, mas depois uns amigos maus, hipócritas, transformaram-no inteiramente. Mesmo dizia-se que nunca tivera juízo.
Mas, como — quem vê cara não vê coração, a pobre da moça amou-o muito, com toda a força de sua crença e casaram-se.
Depois ele tinha um vício.
Era pobre, pobre e amasiara-se com uma mulher com a qual banqueteava-se.
Às vezes, ia para a casa com o sorriso alvar de animalidade alcoolizada.
Não era barulhento, não era de instintos ferozes, mas bestializava o seu proceder.
A honesta mulher sabia de tudo, mas ah! grande luz do seu imenso coração, envergonhava-se, não queria escândalos, chorava no escuro, baixinho, toda pesarosa, toda magoada; lembrava-se do filho que tinham, sabia que era ele o pai e que se esse pai os abandonasse, seria desairoso para ela e então suportava tudo.
Pois se ela era tão honesta!
Ah! o seu filho, o seu querido filho tão bonito como ela o chamava.
O seu querido filho tão bonito!
Oh! as mães, as mães!
E no entanto a criança era raquítica, não parecia ter seis meses; o crânio muito comprido e achatado, o frontal muito largo, de uma saliência enorme, abaulado, deixando aparecer muito no fundo, dois olhos sem expressão, quase sem movimento, davam-lhe o aspecto de uma caveira; o corpo mal desenvolvido, o rosto amarelado e de uma pele seca, as pernas em arco, magras, tudo emprestava àquilo que ela chamava o seu querido filho tão bonito, uma aparência sinistra e má.
Não obstante ela o adorava!...
Oh! as mães, as mães!...
Que sacrifício profundo e sacrossanto é maior que o coração das mães?!
— O espetáculo estupendo do sol, faiscando pelos espaços intérminos, como um colosso de fogo, iluminando as esferas, dando umas tonalidades claras ao espírito das cousas, abrindo e fecundando as grandes almas de tudo, não é mais deslumbrante de eloqüência que o amor das mães!...
Elas se imortalizam na memória dos filhos, quando eles se chamam Dante, Shakespeare, Vítor Hugo e Zola.
As mães são o compêndio infinito de todas as ciências, a irradiação maravilhosa de toda a luz filosófica.
Por isso ela estremecia muito o seu querido filho tão bonito.
E ele, o marido, andava fora, ou no trabalho ou em casa dela.
E ela, a mulher, essa outra — ela — tão modesta, tão santa, tão trabalhadeira, ainda nova, na manhã transparente dos seus vinte e dois anos, sentia a necessidade, umas abundâncias de extremos, de umas exuberâncias de afeições puras, revolvia-se toda, às vezes, como uma freira na sua cela, ficava nuns letargos mornos, sensuais, num sonambulismo etéreo, fechando os olhos numa dormência calada, como se cedesse ao poder de um magnetismo soberano.
Tinha necessidade de adulterar mas o seu querido filho e tão bonito ali estava, fisicamente feio, como a atalaia da sua honra, como a porta de bronze a lhe interceptar a entrada no palácio silforamático da prostituição.
E então ela erguia-se em toda a majestade do seu dever e abraçava e beijava o filho, numa aluvião delirante de carinhos enternecedores.
Aquele filho livrava-a de ter uma Waterloo na batalha renhida da sua existência.
E então trabalhava, trabalhava muito.
Ele já pouco ia ver a mulher e o filho.
O pão, no entanto escasseava, o fogão estava negro e calado.
O proprietário da casa onde moravam já lhes falara uma vez, duas, três vezes.
Tinham-se atrasado um tanto... uns cinco meses.
O fornecedor o vira entrar em casa diversas noites, cambaleando, e mastigando frases desencontradas.
Dissera que não fiava a bêbados, desconfiava que não seria pago e depois atirava os seus dichotes canalhas à sua freguesa e desejava-a, mas o único meio de a obter, pensava ele, era tornando-se desapiedado e negando-lhe o alimento, porquanto ela assim cederia, já que o marido pouco parava em casa.
No entanto, a vida dela caía, caía como as pétalas de uma rosa ao chegar o inverno desabrido e úmido.
As papoulas de sua face desbotavam dia a dia.
Ele já não trabalhava quase, desmoralizara-se de todo c negavam-lhe trabalho.
Deixava, dez, quinze dias de ir ver a família.
Uma ocasião foram dizer-lhe, um pequeno aprendiz seu, que o filho fora atacado de varíola.
Achava-se ele em casa da concubina.
Ela ao ouvir o recado do pequeno, sorriu-se com um sorriso de vingança, pois dizia — que ele lhe prometera casamento, que a enganara, mas que ela se vingaria; e, terminantemente ordenou-lhe que não aparecesse em casa, que não fosse ver o filho, que ela faria as despesas da moléstia e do enterro, caso a criança morresse.
E pegando da pena escreveu, imitando o quanto possível a letra do amante: — "Minha querida — sinto extremamente o estado do nosso filho, mas como não encontro trabalho na cidade e é absolutamente preciso que eu parta hoje para a vila de..., a um magnífico negócio onde poderei ter mais prontos resultados de dinheiro, desculpa a precipitação com que te escrevo e olha bem o nosso filho.
— Tu és boa, perdoa-me, pois, os dias que não tenho ido à casa.
— Para que nada falte ao pequeno, aí te envio uma sofrível importância; a sua doença não há de ser nada; daqui a pouco te mandarei lá o médico. — Teu marido A."
Meteu o bilhete num envelope, puxou de uma bolsa, colocou dentro umas cinco notas de mil-réis e deu ao pequeno que saiu.
Ele, bestializado com tudo aquilo, meio parvo, fechava de vez em quando os olhos, como que para não ver ou não desvendar a profundidade do seu abismo.
No entanto ela ria canibalescamente e redobrava de afagos para com o seu louro — como lhe chamava.
Era viúva, herdara alguma cousa para a sua subsistência e sabia atrair os ladinos e triunfar dos seus caprichos, corno fazia com ele.
E enquanto a viúva pantera explosia as suas paixões venenosas, a honesta mulher, só em casa, desamparada como uma criança nua numa estrada, por uma noite negra, muito negra, aos uivos de um temporal cruel, sentindo ao longe, lá ao longe o monótono grasnar das aves agoureiras, via que o médico não chegava, que seu filho se sumia, se sumia, como a asa de uma andorinha na última extrema do horizonte.
Parecia que um prédio tinha desabado sobre ela.
Estava abatida, desconsolada, desfalecida.
Não ia ao quintal para não ver as suas aves, não ia à janela para não ver o sol percorrer satisfeito as amplidões serenas da serena luz.
Não ia porque nas aves e no sol, ela via seu filho contente adormecido aos seus beijos.
E o aprendiz, pinoteador, travesso, acriançado, não fora lá, logo no mesmo dia.
Mas no dia seguinte, de tarde, quando no éter calmo se esbatiam as tintas crepusculares, e que a sinfonia da natureza, os límpidos turíbulos das florestas, derramando perfumes suaves, convidavam o raciocínio a um recolhimento poético, morria-lhe nos braços o filho, como um Cristo menino nos braços de Maria.
E então, ela, numa angústia despedaçadora de mãe dolorosa, lembrando-se daquele corpo, daqueles olhos, daqueles lábios que iam talvez rebentar numa explosão de boninas, de cravos e de violetas, viu abrir-se a porta e entrar o aprendiz com um objeto que lhe entregou.
Era a bolsa da concubina!!